sexta-feira, 29 de julho de 2011

Poesia e política: "Gota d'água" - anotações de uma montagem


Primeiras conversas sobre poesia e política em "Gota d'água" - anotações de uma montagem
Em primeiro lugar caberia afirmar que, para nós, um mesmo texto dramático encenado em momentos históricos diferentes se traduz em diferentes encenações, que – evidentemente – acabam por não dar a ler o mesmo texto. Entender diferente disso exigiria justamente aquilo com o que a encenação não tem compromisso, a fidelidade seja ao texto, seja a uma tradição de representação.
Nossa proposta é entender Gota d’água passando além dos liames comparativos já tão discutidos a partir das suas relações intertextuais com a tragédia Medéia, de Eurípides, E para isso partimos da idéia de teatro intercultural trabalhado por Patrice Pavis no seu livro O teatro no cruzamento de culturas (2008).
Uma encenação mediante uma perspectiva intercultural é vista como aquela que não tem por fim a fidelidade de uma obra adaptante à adaptada, mas que sugere um dialogismo em prol do surgimento de algo novo, estética e culturalmente, como propõe Pavis.

Por isso vamos operar filtros e reconstruções. Nossos tempo, lugar, sociedade, cultura e contexto são outros. A contemporaneidade, como pensou Linda Hutcheon (2006) altera a maneira como a história é recebida, principalmente no que tange à sua (re)interpretação. Assim, ao abandonar o “nacional-popular” e focar na ineficácia e conseqüente impossibilidade de uma “solidez” nas instâncias sociais, o que Zygmunt Bauman chamou de modernidade líquida queremos perguntar qual seria, então, o lugar do amor nessa configuração social? Haveria lugar, na dinâmica de atualização do desejo, de mudanças constantes e ininterruptas, de fluidez e afetos em trânsito intenso, para o discurso de amor eterno, tal como o de Joana por Jasão?
Se o texto Gota d’água sustenta a ideia de que seja extremamente difícil imaginar outros modos de auto-realização pessoal numa cultura em que o amor se tornou sinônimo de quase tudo que entendemos por felicidade, nossa encenação plasma outras soluções formais que se erigem de um enredo igualmente ressignificado, adequado ao público-receptor, cuja visão de mundo imporia outras regras de verossimilhança. Aquilo que se passa ali, no centro da cena, poderia se passar com qualquer um da platéia. O que nos interessa é que naquele tempo de encenação, a vida por inteiro, naquilo que ela tem de mais essencial, se manifeste através da lapidação do mito: resultado da purgação do terror e da piedade suscitados pela encenação.
Mesmo compreendendo a grande diferença entre Medéia e Joana, as protagonistas das duas peças se assemelham em um ponto crucial: são mulheres. Ao se envolverem na paixão, a idéia que possuíam delas mesmas transformou-se na idéia do relacionamento. Todas as suas forças foram canalizadas nas conquistas dos seus amados, esperando, em troca, receber deles o carinho, a atenção e, principalmente, a fidelidade. O “eu”, a individualidade, converteu-se no “eu e ele”. Nesse ponto de vista, existe o significado dramático, quando as personagens perdem-se durante a trama e, nesse ato, tragicamente suicida, resta numa estratégia da encenação, uma reflexão sobre os relacionamentos contemporâneos, sobre a construção cultural do amor. Não se trata de aprender a não agir errado fazendo isto ou aquilo especificamente, mas de aprender o que a cada vez significa agir e isso de modo universal.

Para tanto, não há filiação estética imutável e inalterável possível de descrever o que pretendemos. Nossa proposta é a de realizar um processo de bricolage. Nosso estilo é o mestiço, feito de empréstimos sucessivos, da multiplicidade nascida do encontro, uma tal “predação incorporante”.
Assim, embora enxerguemos que, nesse caso, o texto Gota d’água seja o núcleo orgânico do espetáculo trágico, se aproximando, dessa maneira, daqueles que acreditaram que o palco seria apenas o local de “exalação do texto”, também queremos fazer coro com Grotowski em busca do teatro-acontecimento, aquele capaz de, “fazer o público chorar”, colocando-o mesmo numa situação de risco, de insegurança, dentro do jogo brechtiano – que é o palco, carregado de teatralidade, de diversificação vertical dos planos, de simultaneidade de ações e do poder sugestivo da iluminação simbolista, bem ao modo de Appia.

Djalma Thürler é Cientista da Arte (UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado “Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira contemporânea dos anos 90 e depois”.

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