domingo, 11 de setembro de 2011

Fotografia, história e memória: lembranças permanecem “vivas” no referente fotográfico.





“Em relação a muitas dessas fotos, era a História que me separava delas. A história não é simplesmente esse tempo em que não éramos nascidos? Eu lia minha inexistência nas roupas que minha mãe tinha usado antes que eu pudesse me lembrar dela. Há uma espécie de estupefação em ver um ser familiar vestido de outro modo. (destaque do autor) Eis, em torno de 1913, minha mãe em traje de passeio, gorro, pluma, luvas, tecido delicado que surge nos punhos e na gola, de um “chique” desmentido pela doçura e simplicidade de seu olhar. É a única vez que a vejo assim, apanhada em uma História (dos gostos, das modas, dos tecidos): minha atenção desvia-se então dela para o acessório que pereceu; pois a roupa é perecível, ela forja para o ser amado um segundo túmulo. Para “reencontrar” minha mãe, fugidiamente, é pena, e sem jamais poder manter por muito tempo essa ressurreição, é preciso que, bem mais tarde, eu reencontre em algumas fotos os objetos que ela tinha sobre sua cômoda, uma caixa de pó-de-arroz de marfim (eu gostava do ruído da tampa), um frasco de cristal bisotado, ou ainda uma cadeira baixa que hoje tenho perto de minha cama, ou ainda os tecidos de ráfia que ela dispunha sobre o sofá, as grandes sacolas de que ela gostava (cujas formas confortáveis desmentiam a idéia burguesa da “bolsa”).
Assim, a vida de alguém cuja existência precedeu um pouco a nossa mantém encerrada em sua particularidade a própria tensão da História, seu quinhão. A História é histérica: ela só se constitui se a olharmos – e para olhá-la é preciso estar excluído dela... (destaque do autor) Para mim, a História é isso, o tempo em que minha mãe viveu antes de mim (destaque do autor) (aliás, é essa época que mais me interessa, historicamente).” [1]

Neste trecho da sua última obra Barthes resume, envolvido nas lembranças despertadas pelas fotografias de sua mãe falecida, a relação do historiador com a sua ciência, com possíveis fontes e também a condição basilar do nosso ofício.

Diante das fotografias experimenta a realidade da aplicação na atualidade das analises e interpretações dos referentes presentes nas imagens para a escrita da História, desta definida como Nova História Cultural; assim observa “apanhada [sua mãe] em uma História”, com tal intensidade que o induziu a desviar sua atenção da figura materna para os acessórios que a acompanharam na fotografia.


























Percebe-se nitidamente e conscientemente distante no tempo e no espaço, “era a História que” o apartava no instante recente e real do momento efetivado em cada fotografia. Na atualidade, mesmo a História do tempo presente, percorre um campo de pesquisa onde o evento ou objeto estudado encontra-se pelo menos a alguns passos no passado. “Somente a História e a consciência histórica podem introduzir a necessária descontinuidade entre passado e presente: História, com efeito, é a ciência da diferença.” [2]


Barthes sentiu uma “espécie de estupefação” diante da imagem de sua mãe em uma fotografia, e eu, uma grande surpresa após reconhecer inicialmente o meu avô Mario de Castro Reis e a minha avó, Zeni Reis e depois, a seu lado, a jovem que anos mais tarde seria a minha mãe, Marlene Reis Mattos. (acima da direita para esquerda, circundados de amarelo).

Esta fotografia do acervo da Rádio Três Rios era desconhecida de todos nós seus familiares. Inicialmente Marlene não conseguiu encontrar em sua memória informações quanto à data e o que estava fazendo no CAER – Clube Atlético Entre-Rios, reconhecido pelo seu salão principal. Lembra-se apenas que era comum a apresentação de cantores e artistas contratados pela rádio para eventos, que, como se observa no registro, sempre bastante populares. Segundo os arquivos desta empresa, a fotografia foi realizada em 14/12/1956 – minha mãe estaria então com 16 anos, durante a apresentação do Programa “A Hora do Pato”.

As feições de meus avós encontram semelhança com as imagens anotadas na memória, mas esta jovem, na verdade, apesar de reconhecê-la na figura materna, não a havia percebido, assim, com todas as características possíveis de observar na fotografia, até o momento do primeiro olhar interpretativo sobre a imagem.

Não vivenciei na minha existência uma relação direta com ela, nas lembranças que trago na memória não havia uma moça como esta, eu a desconhecia; mas esta fotografia guardou em seu referente uma imagem que agora permite não só pela semelhança na aparência, mas também anexada a tudo que está sedimentado como conhecimento ligado aos signos e índices relativos à juventude e especificadamente, a maternidade e a relação de amor e admiração, ser incorporada às todas as memórias que possuo sobre a minha mãe.

As memórias e as lembranças são constituídas nas experiências de relação e nas diversas formas de percepção destas experiências, podendo ocorrer entre sujeitos no mesmo tempo ou em tempos e espaços distintos; as fotografias são lugares de lembrança das experiências de relação de outros, que permanecem “vivas” no referente fotográfico, possibilitando não só uma leitura rememorativa de fatos e ações dos sujeitos históricos em seu tempo, mas também, através do olhar no presente, delinear as lembranças em comum. Esta característica que torna o distante tão presente possibilitou-me incorporar as lembranças que trago com relação a minha mãe, um pouco das memórias e das lembranças de sua juventude.


[1] BARTHES, Roland. “A Câmara Clara”. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira. 2008, pp 96 a 98.
[2] MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. “A História, cativa da memória? Para um mapeamento da memória. No campo das Ciências Sociais.” Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), São Paulo, n. 34, p. 12, 1992.

 

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André Luiz Reis Mattos é Mestrando em História Cultural pela Universidade Severino Sombra – Vassouras/RJ

A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.

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