sábado, 3 de setembro de 2011

o "Sentimento de Mundo" drummondiano



Devemos ter em mente, antes de iniciarmos uma análise e leitura de qualquer poema de Sentimento do Mundo que este livro desponta como um reflexo da pobre condição humana no mundo. Considerando o projeto ideológico surgido a partir de 1930, podemos entrever nos poemas que compõem este livro uma verdadeira reflexão da vida do homem, da realidade na qual se vive, além de crítica ao social e um engajamento político – principalmente se considerarmos que tal obra foi lançada em 1940 no período em que a Segunda Guerra Mundial acontecia – há também, para Abgar Renault (1978, p. 79), a representação de um profundo amargor, o que proporciona que “a ‘humanidade’ do poeta debruça-se, comovida, sobre a ‘humanidade’ alheia e com ela sofre”. O resultado desse novo momento vivente por Carlos Drummond de Andrade é a criação de “uma poesia que anda, viva, no ar, na terra, nas águas, nos corpos e nas almas: poesia que acontece...” (RENAULT, 1978, p. 80).

Drummond em variados momentos criticou a literatura inútil, vazia de vida e de utilidade. Talvez, porque para ele a literatura necessita de um estudo, de um engajamento, uma vez que ela, bem como o poeta, têm deveres a serem cumpridos. Muitas vezes a palavra nos poemas drummondianos é um instrumento de luta, reivindicação. A universalidade da poesia teorizada por Theodor Adorno encontra campo fértil em Sentimento do Mundo, uma vez que neste livro há a transposição do minimamente pessoal, para um campo mais coletivo para problemas que transcendem o Eu e remetem ao Nós. Dois exemplos que refletem a condição humana, o amargor e a impotência humana diante do mundo são os poemas “Sentimento do mundo” e “Confidência do Itabirano”. Vejamos cada um desses poemas na íntegra.
O primeiro deles:
Tenho apenas duas mãos 
e o sentimento do mundo, 
mas estou cheio escravos, 
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige 
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu 
estará morto e saqueado, 
eu mesmo estarei morto, 
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram 
que havia uma guerra 
e era necessário
 trazer fogo e alimento. 
Sinto-me disperso, 
anterior a fronteiras, 
humildemente vos peço 
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem, 
eu ficarei sozinho 
desfiando a recordação 
do sineiro, da viúva e do microcopista 
que habitavam a barraca 
e não foram encontrados 
ao amanhecer
esse amanhecer 
mais noite que a noite.




O segundo:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

 De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; 
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

 Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Em “Sentimento do mundo”, nos deparamos com um retrato e uma reflexão acera da Segunda Guerra Mundial (que pode, obviamente, remeter aos tantos conflitos do ser humano). Já na primeira estrofe nos é apontada a prostração do ser humano perante o mundo que o circunda em “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”. O eu lírico nos apresenta um quadro de vivência pessoal (obviamente se faz universal), no qual sente as aflições mundanas, os danos e as injustiças que se alastram pelo planeta, ao mesmo tempo nada pode ser feito por ele, que perante as angustias que lhe afiguram possui as mãos atadas. Em “Confidência do Itabirano” também a figuração do sofrimento e da angustia que perpassam ao homem “Alguns anos vivi em Itabira/ Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.”. Itabira ensinou ao eu lírico a sofrer, o fez forte e mostrou principalmente que o mundo não é um local onde somente existem acontecimentos agradáveis e este aprendizado também faz com que o sujeito lírico (em extensão, a humanidade), muitas vezes, se subjugue diante de certos eventos destrutores e se veja impossibilitado de intervir.

Em meio à vil população mundial, há ainda elementos que de certa forma conseguem levar o eu lírico de ambos os poemas analisados para caminhos aparentemente melhores nos quais ele consegue tocar a vida, decifrá-la e, de certa maneira, aproveitá-la, como nas passagens a seguir: “mas estou cheio de escravos,/minhas lembranças escorrem/ e o corpo transige/na confluência do amor” ou ainda “A vontade de amar que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem/mulheres nem horizontes”. Os elementos encontrados nos caminhos percorridos acalmam, mas refletem a tristeza da condição humana, a escravidão e a falta de horizontes, por exemplo, conseguem minimante representar o “Sentimento de mundo” que grita no interior do poeta, que o impele em direção ao combate até mesmo de pulsões que carrega dentro de si.

Ambos os poemas encerram um enorme sentimento do social, ao se vislumbrar os acontecimentos que o rodeiam, o sujeito poético, como dissemos, aprende a sofrer, mas nem por isso aceita o sofrimento em silêncio, ao contrário, nos deparamos com uma constante aflição, com um desejo implícito de parar a guerra, de parar o mundo e cessar “esse amanhecer/ mais noite que a noite”, “este orgulho, esta cabeça baixa...”.A derrota do ser para o mundo o faz sentir-se “[...] disperso,/ anterior as fronteiras”, além de contribuir para que “E o hábito de sofrer, que tanto me diverte” seja apenas um divertimento irônico, uma vez que não só o poeta, a vida, as ruas são, em sua grande parte, constituídos de ferro, de impossibilidades, de atamentos e de reflexões que não resolvem os problemas do mundo.

Não somente Itabira como fotografia na parede dói, dói também o corpo, a alma, dói tudo que o rodeia, uma vez que por mais que possa entender e lutar por algo, o eu líriconão o alcançará na sua individualidade e principalmente na sua impotência diante do mundo frio e mecânico que reduz as pessoas a objetos de manipulação.

No que diz respeito à estética dos poemas analisados, arriscamo-nos a afirmar que muitas conquistas da geração de 22 são utilizadas magistralmente pelo poeta, como o verso livre, que muitas vezes se aproxima de uma narração, ao mesmo tempo o poeta não se deixa guiar pelo espírito de destruição que caracteriza a “primeira” geração modernista. Vislumbramos o verso livre de Drummond próximo à narrativa nas seguintes estrofes:
Os camaradas não disseram
Que havia uma guerra
E era necessário
Trazer fogo e alimento.
Ou ainda:
“Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou um funcionário público.”

Carlos Drummond de Andrade proferiu algumas vezes que sua preferência pela corrente Modernista se deu, principalmente, pela sua “falta de jeito para ‘versejar conservadoramente” e da incapacidade de estudar, [...], os compêndios da metrificação” (MORAES, 1978, p. 98).  Ele, muitas vezes, deixou clara também a sua insubordinação mental a qualquer corrente, o que propiciou o fato de, em sua lírica, haver rumos próprios traçados, ou melhor, maneiras particulares de se jogar com as palavras, dentre as quais se destacam uma “técnica de composição consistente na perturbação das formas líricas tradicionais” relacionado à quebra do ritmo interno das palavras relacionadas. Isso não significa que os poemas drummondianos não possuem ritmo, este elemento é muito empregado pelo poeta e de maneira original, como no emprego de repetições, como na repetição da palavra morto no poema “Sentimento do mundo”, “Quando me levantar, o céu/ estará morto e saqueado,/ eu mesmo estarei morto,/ morto meu desejo, morto/ o pântano sem acordes”, ou ainda na repetição do vocábulo Itabira no poema “Confidência do Itabirano”, “Alguns anos vivi em Itabira./ Principalmente nasci em Itabira”.  Através da repetição o poeta alcança o ritmo desejado, de maneira que a composição lírica não se torne monótona.

Emanuel de Moraes (1978) ainda aponta o uso de rejet nos poemas de Carlos Drummond e exemplifica com a passagem já citada do poema “Sentimento do Mundo”, “eu mesmo estarei morto,/ morto meu desejo, morto/ o pântano sem acordes”. Para o crítico em questão, o rejet é responsável pela pausa que acontece entre segundo e terceiro versos, o que é responsável pela beleza lírica desta estrofe.

A linguagem utilizada pelo poeta é extremamente enxuta, sem excessos, sem preocupação com a forma, também existe o emprego de elementos comuns de que se revestem os meios expressionais. Tal linguagem permitiu que os poemas drummondianos possuam “fragmentos em que a música, o poderio pictorial, a força de sugestão, o inédito das imagens, a criação rítmica, a encarnação poética em quantidade reduzidíssima de verbos não podem deixar de ser notadas” (RENAULT, 1978, p. 76).

Referências bibliográficas:
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de Literatura I. 34ª ed.  São Paulo: Duas Cidades, 2003, p. 65 - 90.
DRUMMOND, Carlos.Sentimento de Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1995.
MORAES, Emanuel de. As várias faces de uma poesia. In: BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p. 98 - 122.
RENAULT, Abgar. Notas sobre um dos aspectos da Evolução da Poesia de Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p. 73 - 82.


Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.

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