O Juízo Final de Lars Von Trier: “Melancolia” resolve os conflitos exterminando a humanidade
O planeta Melancolia. |
No lugar de alienígenas que explodem a Terra ou de sobreviventes que andam se arrastando sujos e maltrapilhos em cenários insípidos, Lars Von Trier nos presenteia com duas belas mulheres (Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg) as irmãs Justine e Claire, para levar-nos de forma incisiva ao “fim os tempos”. Lars explorou a sensualidade, o corpo nu e o olhar de Kirsten Dunst para construir Justine; linda, talentosa, bem empregada e prestes a se casar com um homem que a ama. De Charlotte Gainsbourg, o diretor explorou a delicadeza, a fragilidade e a meiguice, características estampadas nas feições de Claire. As duas personagens protagonizam a história trazendo uma oposição interessante à trama. Claire, por ser mais velha e casada com um homem muito rico, tenta cuidar de Justine, que parece frágil e inconseqüente. Nada mal para nós, espectadores, irmos ao encontro do fim do mundo acompanhados destas duas estrelas e ainda ter a oportunidade de vivenciá-lo num cenário amplo, com belas paisagens que circundam a mansão de Claire, lugar onde ocorre a maior parte das cenas. Tudo parece muito perfeito para Von Trier que, como sempre, zomba da burguesia e expõe as relações familiares com ironia e vigor. Aqui não é diferente, a beleza resvala na hipocrisia, na dor e na melancolia do ser.
A bela Kirsten Dunst como Justine |
Charlotte Gainsbourg como Claire |
Protegidos pela fantasia |
A escolha deste lugar afastado do povoado, das metrópoles e sem qualquer intromissão midiática (raramente INTERNET), contribui muito para dar a “Melancolia” uma atmosfera de sonho, isolamento e algo de atemporal. Como numa historia infantil de contos de fadas, “Melancolia” nos remete a um tempo qualquer, em um lugar qualquer no meio do nada, em que o tempo caminha devagar e onde a rotina é sempre acompanhada de momentos de contemplação. Alias contemplar é a palavra do filme. Olhar atento as coisas, as relações, o céu, as paisagens e para nós mesmos.
O filme é composto por um Prólogo e duas partes, sendo uma dedicada a Justine e outra a Claire. Logo no Prólogo é possível perceber que as belas imagens em câmera lenta, que se assemelham as pinturas de Rossetti (pintor pré-rafaelista), possuem algo de dantesco ao se moverem com dificuldade na imensidão da linda paisagem, sentimos logo que o filme irá explorar a contemplação. Nestas imagens, Justine aparece linda, de noiva, tentando caminhar na paisagem imensa e insólita, vencendo lentamente as cordas escuras e emaranhadas que repuxam seus passos. Desperta-se uma sensação de morbidez, que se completa com a cena da noiva imergindo em águas. A sensação de beleza é mesclada ao sentimento de perda e finitude, sugerindo dor, tristeza e melancolia.
Justine corre para se libertar das amarras |
“Melancolia” não é, em tese, um filme sobre o fim do mundo. Não é essencialmente fatalista, pois está recheado de questões que abrangem as relações humanas, como a família e o trabalho, tendo como foco o sofrimento humanitário de todos, sejam eles ricos, pobres, bonitos ou feios, todos são igualados por esta essência humanitária que parece maior, muito mais relevante que o próprio fim do mundo.
É evidente que Lars faz referência a “Festa em Família” (1995) de Thomas Vinterberg, seu companheiro no Dogma 95, para tocar e discutir sentimentos como hipocrisia, covardia, ciúmes e mesquinhez, ilustrados como um rejunte às avessas das relações familiares. São pessoas ligadas por algum sentimento, nem que seja o mais execrável deles. De forma complementar, Von Trier trata da esfera do trabalho, ressaltando o domínio hierárquico e calculista que o mesmo impõe ao individuo.
Justine entregue ao planeta Melancolia |
Justine, linda e deslumbrante em seu casamento é acometida por uma supra consciência que a faz pensar e rever seu posicionamento mediante o mundo, enquanto Claire admite que a família, seu marido rico e o seu lindo filho, poderão lhe orientar e lhe dar segurança para continuar sem pensar muito sobre si mesma e seus medos. Outros personagens colaboram com a trama, representando a covardia, a indiferença e o desencantamento. A hipocrisia é um traço forte de John (Kiefer Sutherland), a indiferença está em Dexter (John Hurt) e o desencantamento em Gabi (Charlotte Rampling). Como numa “Commedia dell’Arte”, Von Trier traça o perfil dos personagens sem receio de parecerem chapados ou superficiais pois seus sentimentos são extremamente autênticos. Lembrei-me de Fellini e de Almodóvar, ambos possuem esta mesma maneira, este mesmo movimento caricato em direção ao personagem. Execução de extrema maestria.
No dia de seu casamento Justine encontra no céu, Melancolia |
Imagens de sonho lembram as pinturas pré-rafaelistas. A imensidão do universo perante a fragilidade humana |
Algumas cenas me emocionaram muito como a que Claire delicadamente tenta convencer Justine, em extrema depressão, a entrar na banheira para banhar-se. Justine tenta mas, num momento de extrema fraqueza, se recusa e solta o corpo devagar e um grito débil de dor sai quase sem propósito de dentro do seu ser. Outra cena que me tocou foi a da limusine branca, enorme, perfeita entalada nas alamedas lindas e floridas do caminho por onde Justine e seu recém marido precisam passar.
As imagens de “Melancolia” são fortes, representativas e amarradas pela musicalidade de partes da ópera “Tristão e Isolda” de Wagner. A escolha desta Trilha Sonora fortaleceu a dramaticidade do filme. Confesso que o filme me emocionou pela grandiosidade das imagens, pela interpretação dos atores e pela sensibilidade de Von Trier em não condenar apenas um ou outro personagem, mas sim a todos.
O sofrimento extremo sofrido por Selma Jekzova (Björn), personagem de “Dançando no Escuro” (2000) punida duramente por tentar salvar o filho da cegueira, é incomensurável. Para ela lhe sobrou apenas a sentença de morte. Grace (Nicole Kidman) em “Dogville” (2003), sofre muito por se doar sem limites, ela é punida duramente pelos atos de extrema bondade. Em “Melancolia”, Lars é mais democrático com o sofrimento, pois condena a todos à pena de morte. O que fica do filme pra mim: O extermínio da humanidade, da forma como Lars pressupôs, seria um lindo presente do Universo - do Planeta Azul Melancolia.
O fim dos tempos |
“Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase cego, levantou-se da cadeira e ficou de pé, tremendo de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Finalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças disse: “Das Gefühl für Humanität , hat mich noch nicht verlassen” _ ‘O senso de humanidade ainda não me deixou’” (PANOSFSKY, 2001:20,21).
Leandro Daniel (Musseque) |
Poesia realizada após assitir o filme
"Melancolia"
Melancolia
Em instantes repetitivos
selados por passos desconhecidos
uma gama de personagens posta-se
em volta
de volta
em círculos concêntricos
FúriaDecepçãoAutopuniçãoRancorDorFatalismoMelancolia
cada vez mais próximos de si
em laço de forca
vão de encontro ao pescoço macio
destruir a traquéia e cessar a fala
causando uma embolia externa
um cérebro desoxigenado
um coração petrificado pelo veneno
composto de enzimas
Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO, na FPA no Curso de Artes Visuais e na UNIP nos Cursos de Comunicação. É integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.
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