terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um esquecimento imperdoável



Em Cuiabá. Evidente que haveria escalas em outros países e cidades. Fato que retardaria a chegada... Não. Fato próprio da vida dos viajantes: escalas, espera em hotéis, atrasos. Talvez seja com isso que Osmar contasse. Ele precisa de tempo. É o que parece. Anahy logo estará em casa.

Conexão Tóquio-Cuiabá. Depois de seis meses de estágio em uma empresa japonesa, Anahy Igawa volta a ensolarada Cuiabá. Sorte grande acompanhar o trabalho de uma excepcional estilista dark toy (Em off: Aqui, vejamos, uma invenção despropositada do autor. Um disparate). Na volta, tudo indicando que o namorado a pedirá em casamento.

Pedir é um passo difícil. Osmar se lembrou de comprar um anel. De diamantes, talvez. O que é sabido é o valor do objeto, em torno de doze sálarios minímos. Momento apavorante. Falar de sentimentos, fazer um pedido de casamento. A expectativa pelo sim e o obscuro desejo de ouvir um não. Livre e decepcionado. Triste e reconciliado.

No aeroporto. Anahy sofre os efeitos do clima arenoso da cidade. Cuiabá prima-irmã do deserto do Saara. A jovem gozava o seu sucesso. Mínimo, mas seu. Osmar não estava no aeroporto. A mãe viera buscá-la. Um lapso? Um compromisso? Há três horas espera para revê-lo.

Preparando tudo. Osmar tem o discurso ensaiado. Nada de ficar de joelhos. Seria uma posição aviltante? Romeu se declarou de joelhos à Julieta? A "japinha" aceitaria, ele se ajoelhando ou não. Eís a certeza absoluta de Osmar (Em off: O autor escreve sabendo que a certeza masculina é pura vaidade, não uma asserção científica).

Integralmente, Cuiabá. Cidade verde sempre acolhedora para Anahy. A "gueixa", como alguns a chamam, para seu bem ministrado e disfarçado, é óbvio, repúdio. Ainda aguarda Osmar que não se reunira aos amigos para a calorosa recepção. Entre vinho, pizza, o carinho dos pais e um portentoso cigarro de maconha, Anahy via as horas passarem e nada de Osmar.

Hesitação. Osmar circulou pela cidade, aproveitando as cafetarias e livrarias, para espairecer em meio a multidão. Seis meses sem ver Anahy e a euforia em revê-la tinha se perdido no correr do tempo implacável, que a tudo esmaga. Em alguns momentos, esquecera o rosto dela. Um esquecimento imperdoável. As fotografias socorriam a memória nesses instantes de angústia.

Pensamentos resgatados. Anahy, na espera que se prolonga por um sinal de vida de Osmar, recordou-se que, em Tóquio, sabia que ao voltar para Cuiabá se casaria com ele. Para o que ela não encontrou resposta, no Japão, foi do porquê se casar. Antes de viajar, para a Cidade do Sol Nascente, Osmar e a moda eram tudo para a moça. Uma vez em Tóquio, Anahy e a moda são tudo para ela. Se Osmar não chegasse logo, para reabiltar a situação de outrora, ela temia que tudo que ocorresse dali para a frente confirmasse a mudança. Um esquecimento imperdoável, esse de não de não conseguir lembrar porque se ama alguém, pensou Anahy.

Cuiabá em pedaços. Osmar sentado em uma cafeteria toma um capuccino e lê "A Insustentável Leveza do Ser". Café, leite e Kundera. Reflexão e a caixa com o anel pousada na mesa ao lado da xícara de capuccino (Em off: O autor reflete à seco e sem estimulantes para o cérebro: "A mente é desobediente ou falta força a vontade que acalentava um amor considerado indestrutível?").

Sonho do tango da desilusão. A música invadiu Anahy. Um aviso importante. O tango que rasgava um cetim vermelho com uma navalha. Ela chorou. Sozinha refletia como tudo desmorona se o vento é favorável a um afã oculto, irremediável. O CD chega ao fim.

O encontro na cafeteria. Osmar permanecia absorto no ruminar da decisão que se sentia impelido a tomar. Isabella, a loira que ele ama em segredo, mas tão secretamente, que a si mesmo esconde o sentimento por medo de ser descoberto, assomou à porta do estabelecimento. Quando os seus olhos encontararam o dela, o homem repeliu a caixa que continha a sua fortuna ou o seu desastre.

Via SMS. (Em off: Aqui o autor compartilha a informação que um relacionamento de anos que resvalou no casamento acabará por meio da impessoalidade de um aparelho eletrônico. Osmar se esqueceu que o rosto de Anahy era o que ele deveria enfrentrar com destemor. Um esquecimento imperdoável que desmente o seu propalado romantismo). Osmar: "Eu não posso mais. Não posso me casar com você". Anahy: "Fale isso olhando para mim". Osmar: "Não dá. Me perdoe". Anahy: "Eu me esqueci porque amava você". Osmar: "Eu acreditava que te amava acima dos meus medos". Anahy: "Creio que seus medos são náufragos que agora não posso suportar". Osmar: "Acabou. Você me perdoa pelo meu ato de fraqueza?". Anahy: "Adeus e vá para o inferno".

A jornada um ano depois. Osmar viverá um romance com Isabella. Se casarão? Terão filhos? Dando-se tempo ao tempo e não restringindo o espaço um do outro, quem sabe? Anahy estará no Japão trabalhando como assistente da criadora da moda dark toy, que será dark angel toy. Alguns romances à vista e olhos nos olhos para as coisas importantes que deverão ser ditas. (Em off: Seria um esquecimento imperdoável do autor se ele não se lembrasse de abolir lágrimas e sangue da estória para que a citada estória não fosse somente mais uma tragédia a se abater sobre uma composição literária).

Moral da história. Um lapso de memória. Um lacuna numa inabalável convicção. Uma fenda no contínuo espaço-tempo. Um esquecemento imperdoável.






Wuldson Marcelo, cuiabano, nascido em 1979. Graduado em Filosofia pela UFMT e mestrando em Estudos de Cultura Contemporânea – ECCO/UFMT. Editor do “Caos Sophia”, jornal dos alunos de Filosofia, de 2003 a 2005. Possui artigos e contos publicados em jornais e sites de Mato Grosso e demais estados brasileiros, entre eles contos no site www.releituras.com.br e no jornal “Bom Dia” de circulação em cidades do interior de São Paulo e no Grande ABC. Disponibiliza regularmente contos no site www.overmundo.com.br Autor do livro de contos Obscuro-shi (no prelo, Editora A Fábrika, a Santa Casa da Criação).


A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.

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