VIAJANDO NO PASSADO
Eu estava voltando para casa outro dia, ouvindo um CD de uma coletânea de músicas dos anos oitenta. Distraída, eu me deixei levar pelo som em um tobogã de rápidas lembranças. A música tem esse poder. É uma prece que nos coloca em contato com o celestial, levitando nosso corpo e permitindo que nossa alma liberte-se das terrenas preocupações. Eu gostava muito daquela música, mas foi somente agora que percebi o solo de violinos. Eu que amo violinos, os ignorava quando mais jovem. A infância é assim, nunca estamos em silêncio. Envelhecer tem suas vantagens.
Naquela época, as crianças andavam soltas pelas ruas, encontrando-se após as aulas para brincar ou fazer trabalhos escolares. A maioria das mães não trabalhava fora, então o café da tarde era normalmente com bolinhos de chuva ou bolo de chocolate, feitos na hora. A educação das crianças era quase tribal: aprendíamos umas com as mães das outras. Na saída, uma mãe costumava dizer: “Não toque a campainha insistentemente, apenas uma vez e aguardem!”. A outra, mais preocupada: “Nunca conversem com estranhos”. Os avôs nos contavam histórias enquanto nos deliciávamos com o cheiro de café com leite e pão quente – caseiro, claro − com manteiga.
Havia também a casa dos avós, muitas vezes no mesmo quintal. Alguns que haviam partido, outros que moravam com os filhos, mas o lar permanecia ali, um museu de móveis antigos e cristaleiras de diamantes. Na casa de algumas amigas, estudávamos nessas casas desabitadas, desde que prometêssemos não mexer em nada. E não mexíamos! O passado assoviava em nossos ouvidos que aquele templo merecia respeito.
Quando não bastava consultar na Enciclopédia Barsa, íamos à biblioteca emprestar livros, fazíamos cópias e passávamos a tarde elaborando aquela tarefa. Uma de minhas amigas, a Sônia, a mais habilidosa de todas, desenhava muito bem. Lembro-me de um Padre Anchieta que ela pintou na capa de veludo preto, belíssimo. Não havia obviamente internet, “copiar e colar” como hoje. A criatividade, o trabalho em grupo, o aprendizado com as diferentes famílias nos tornavam pessoas emocionalmente mais maduras.
Eu sempre fui péssima em artes, mas adorava estudar. Outra amiga gostava muito de desenhar, ela fazia meus mapas e eu corrigia a lição dela de matemática. Isso foi antes do ensino médio, quando eu ainda entendia a matéria. Depois, deixou de ser algo que eu dominava e até hoje me perco em álgebra e equações de diversos graus. Tínhamos uma professora japonesa – quem nunca teve um professor ou professora oriental? – que “deixava” todos os alunos de recuperação de inglês. O inesquecível nome dela era Tieko, uma senhora franzina e delicada de meia idade, mas para nós – alunos −, era como se um dinossauro entrasse na classe quando a víamos, de puro medo. Tudo besteira, ela gostava de disciplina, mas era carinhosa com os alunos. Eu gostava de idiomas e era sua assistente nas épocas de recuperação.
Nós alunos nos ajudávamos, não podíamos pagar professor particular. Havia interesse em passar de ano e respeito, muito respeito pelos professores. A diretora da escola era a figura máxima de autoridade. Ser convidado a conversar com ela era sinal de problemas muito sérios. Hoje, as crianças não respeitam nem os pais, que passam pouco tempo com elas, e muitas vezes não sabem como foi o seu dia, se tinham trabalhos escolares, se comeram bolo no café da tarde ou se choraram a tarde toda porque brigaram com um coleguinha. Os pobres professores são atacados verbalmente – quando não fisicamente – e os pais quando chamados protegem os filhos e procuram culpar os outros.
Pensando nisso, Deus fez o domingo para pais e filhos se confraternizarem e resgatarem um pouco desse contato cotidiano que hoje não é mais possível. E para que nós, adultos, saibamos a importância da infância, Ele fez a música, que tem o poder de nos transportar no tempo num piscar de olhos, desconectando-nos de nossas preocupações e permitindo que reflitamos sobre o que desejamos para os nossos pequenos.
Simone Alves Pedersen nasceu em São Caetano do Sul e hoje mora em Vinhedo, SP. Formada em Direito, participa há três anos de concursos literários, tendo conquistado inúmeros prêmios no Brasil e no exterior. Tem textos publicados em dezenas de antologias de contos, crônicas e poesias. Escreve para jornal, revista e diversos blogs literários. Escreveu o primeiro livro infantil em 2008, o “Vila felina” seguido de Conde Van Pirado, Vila Encantada, Sara e os óculos mágicos, Coleção Pápum e Coleção Fuá. Para adultos lançou “Fragmentos & Estilhaços” e “Colcha de Retalhos” com poemas, crônicas e contos: http://www.simonealvespedersen.blogspot.com/
Hoje excepcionalmente, publica na Coluna Incontros.
Hoje excepcionalmente, publica na Coluna Incontros.
1 comentários:
Verdade. Uma música bastou para ser o fio condutor de tantas lembranças...
20 de outubro de 2011 às 16:12Esse é o poder da arte: nos tira do chão e nos levas a tantas memórias e cantos...
Bela crônica, amiga... Parabéns por mais essa entrada no túnel do tempo... bjos
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