sábado, 10 de dezembro de 2011

Resenha de "A Paixão da Nova Eva", de Angela Carter





Como aponta o próprio nome da obra analisada A Paixão da Nova Eva, há inegavelmente uma paródia quanto ao livro bíblico de Gênesis, que trata do mito da criação do homem. Pós-moderna em sua rede fragmentada, ao misturar tradição e contemporaneidade, criando uma nova roupagem para a história tida como verdadeira, essa obra questiona a cultura heterossexual, falocêntrica, europeia, difundida por milênios. Em meio a esse questionamento, as personagens mostram-se em constante crise, sem saber nem mesmo quem são.
O enredo da obra em questão trata, especificamente, da transformação de Evelyn, um homem branco, altamente machista, que se encaixa no modelo patriarcal tradicional, em mulher, através de uma cirurgia realizada por uma seita feminista, transformando-o em Eva.
A obra de Ângela Carter é dividida em dois momentos: o primeiro dele focaliza a personagem Evelyn, um homem, machista, que só pensava em si próprio, que guardava, ou melhor, carregava consigo todos os estereótipos do homem patriarcalista, eurocêntrico e falocêntrico. Evelyn é descrito como um homem branco, loiro, de olhos azuis, que vai para os Estados Unidos da América em busca de emprego, mas que não o consegue e vai fazer turismo por terras estadunidenses. Durante sua estadia em busca de emprego, Evelyn conhece uma mulher, Leilah. Ele utiliza-a como verdadeiro objeto sexual, amarrando-a, agredindo-a e, por fim, buscando prazer no corpo dela. Após Leilah engravidar, Evelyn propõe que ela aborte. Ela o faz, quase morre e, depois desses episódios, Evelyn a abandona e segue em sua viagem de “férias”. Durante essa viagem, Evelyn é preso por um grupo de mulheres (liderados por Mãe), que transformaram-no em um ser do sexo feminino, Eva.
Eva, nascida devido aos poderes das novas tecnologias nascentes e reinventadas constantemente, nasce em um conflito interno: ao mesmo tempo em que possui partes naturais, possui também outras artificiais, seu psicológico era de um homem, enquanto seu corpo fora transformado em de uma mulher. Considerando as proposições feitas por Donna Haraway (1991), podemos caracterizar esse novo ser como um verdadeiro Ciborgue, que para essa estudiosa seria um organismo cibernético, mistura de máquina e organismo, uma espécie criatura em que convivem uma realidade social e outra de ficção.
Eva, enquanto alguém que tem que aprender a ser mulher, foge do local onde a seita a criou e depara-se com um mundo totalmente opressivo ao feminino. Ao se perder no deserto, ela é capturada por um outro grupo de mulheres, mas que, dessa vez, é seguidor de um homem completamente louco, o poeta Zero. Por ele, ela é violada, além de perder a virgindade, perde também a liberdade, a individualidade, até mesmo os desejos. Ela passa a figurar como mais uma dentre suas esposas, por isso, sofre ameaças, trabalha para alimentá-lo, enfim, vive num mundo marcado pelo medo e terror, mas dele não consegue se libertar.
Eva, ainda quando era Evelyn, mantinha um grande amor e admiração por uma atriz chamada Tristessa. O que continua após a metamorfose. É relevante relembrar de Tristessa, na medida em que Zero odiava-a e caçava-a a fim de exterminá-la. Segundo ele, foi essa atriz que havia lhe tirado a fecundidade, porque ela seria lésbica e cultuava a infertilidade. Certo dia, Zero e suas seguidoras descobriram a casa de Tristessa em meio ao deserto. Após encontrarem-na, todos desvendam que, na verdade, Tristessa era um travesti, não uma mulher. Após essa descoberta, Eva é vestida de noivo, Tristessa de noiva e ambos se casam (após muitas ameaças) em uma cerimônia presidida por Zero. Nesse momento, Eva perde novamente sua virgindade, mas em relação ao prazer sexual, principalmente, se considerarmos a seguinte afirmação feita por ela: “Eu estava cansada de esperar. Rodeei-o [Tristessa] com as pernas e puxei-o para mim. Ele gozou imediatamente [...]. Rolou para o chão, soltando grandes gritos, enquanto eu me contorcia na cama dura, consumida pelo desejo insatisfeito” (CARTER, 1987, p. 133).
Eva e Tristessa conseguem exterminar o grupo de Zero e fogem de helicóptero. Elas (es) se vêem perdidas (os) no deserto, entregam-se novamente aos prazeres carnais, até o momento em que são descobertos por outro grupo e Tristessa é morta. Por fim, Eva vê-se obrigada a fugir e encontrar abrigo em outro grupo relacionado ao das mulheres que lhe profanaram anteriormente e lhe transformaram em mulher.
 Ao final da narrativa, Eva foge em um bote: “Cheguei àquele continente pelo ar, e deixei-o pela água; a terra e o fogo deixados para trás” (CARTER, 1987, p. 182). Ela descobre-se grávida de Tristessa e assumirá sozinha a maternidade, abdicando do padrão heteronormativo vigente. Nessa nova e última fuga, Eva sai renovada, através da paixão, um verdadeiro martírio, no sentido bíblico. Ela consegue reconhecer a si própria, tem a possibilidade de revelar a si mesma tudo o que estava enterrado em suas entranhas e mente.

Em relação à personagem Tristessa, é relevante analisar que ela era um ser andrógeno, que possuía ao mesmo tempo elementos contraditórios em um mesmo corpo, como seios e pênis. Alguém que, como aponta Donna Haraway (1997), após expor-se ou ser exposto às diversas representações difusas no meio, passou a estabelecer relações de semelhança, pertencimento a algum grupo como o qual identificou-se, no caso, o grupo do feminino, das mulheres. Apesar de exteriormente ter sido um dia pertencente ao gênero masculino, em seu interior Tristessa era uma verdadeira e autêntica mulher. O que é comprovado pelo fato de a Mãe ter-se negado a transformá-lo em mulher, alegando que “ele já era demasiado mulher” (CARTER, 1987, p. 166).
Nesse ponto, vale ressaltar que o ciborgue, representado tanto por Eva quanto por Tristessa, é uma imagem condensada de imaginação e realidade, que se juntam a fim de transformar a história (HARAWAY, 1991). Como nos aponta Donna Haraway (1991), esse ciborgue está fora dos parâmetros religiosos e de gênero, contribuindo para um mundo sem gêneros, sem fronteiras delimitadas. Ele “The cyborg is a creature in a post-gender world; it has no truck with bisexuality, pre-oedipal symbiosis, unalienated labour, or other seductions to organic wholeness through a final appropriation of all the powers of the parts into a higher unity” (HARAWAY, 1991, p. 150).

Bibliografia:
CARTER, Angela. A Paixão da Nova Eva. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
HARAWAY, Donna J. Simians, cyborgs, and women: the reinvention of nature. New York: Routledge, 1991.









Rodrigo C. M. Machado é mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa. Dedica-se ao estudo da poesia portuguesa contemporânea, com destaque para a lírica de Sophia de Mello Breyner Andresen.


0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.