Toda arte é ideológica?
Quando um
artista se expressa por sua criação, sua expressão é um produto ideológico,
simplesmente uma reprodução das relações vigentes, ou é uma expressão
idiossincrática de sua ideia mais interior? Ele (o artista) é livre para se
expressar da maneira que quiser? Pode expressar sua cosmovisão?
Tendo como base
inicial os Estudos de Uma Cultura Agonizante, de Christopher Caudwell, vou
tentar pontuar sobre esta questão.
De início, é
necessário colocar em papel as duas maneiras mais usuais de se utilizar a palavra
ideologia: 1) de maneira crítica, onde ideologia seria uma forma de dominação,
tendo como base o monopólio da produção intelectual de uma classe que, desta
forma, afirma seus interesses como interesses coletivos (e os naturaliza),
retirando a característica das relações sociais de relações entre sujeitos,
para transportá-la à relações em sujeito e coisa. Desta forma, evitando
qualquer tipo de conflito que poderia haver entre a classe detentora do poder
estatal e a classe explorada. 2) de maneira ampla, como a cosmovisão de um
indivíduo, de um grupo social ou de uma sociedade, sem a relação entre modo de
produção e defesa de um interesse de classe. Irei utilizar a primeira definição
ao longo do texto, conforme o próprio Caudwell utilizava.
A arte, em Caudwell,
é, antes de tudo, a sua função. Arte não é arte se não for reconhecida como tal
sob determinados símbolos sociais, ou seja, a expressão artística, em sua
tentativa de expressão, é colocada sob trajes sociais que permitem sua leitura,
esses trajes sociais fazem parte de um determinado campo de símbolos
socialmente reconhecidos e, portanto, quando são utilizados, se reproduzem. A
arte, então, seria a expressão do momento histórico, social, político e
econômico de uma determinada sociedade, sua função seria determinada pela
observação de como ela é assimilada. Para Caudwell, a arte causa aquilo que ele
chama de atividade afetiva, uma súbita e momentânea sublimação da moral
proibitiva, o ímpeto pela quebra de alguma regra social oculta, de algum tabu,
e, após essa fase, a natural tentativa de reintroduzir todos os trajes sociais
que, desta forma, foram sublimados. Arte é demonstração das contradições entre
a linguagem e as relações sociais materiais.
Desta forma, a
tentativa de se expressar de maneira totalmente original, de expressar a pura
individualidade sob a forma de arte, seria uma tentativa fadada ao fracasso,
pois o sujeito está limitado pelo momento histórico e social que vive, além de
estar situado em uma sociedade estruturada e, desta forma, também ser coagido a
ter como expressão tal estrutura em que vive e que somente com ela pôde
absorver a linguagem utilizada na sociedade correspondente. A arte de consumo,
arte para o mercado, desta forma, não seria arte, mas a sua negação, a negação
do mercado e a expressão individualista de arte, também não seria arte, seria
só “devaneio pessoal” do artista – no fim das contas, ambas são
ideologia, ambas são apropriação da arte como aparelho ideológico, sendo a
primeira como a demonstração última do mercado como relação entre sujeito e
coisa, como algo exterior que comanda nossas vidas, já a segunda, curiosamente,
seria a afirmação filosófica do individualismo liberal, a expressão artística
de um eu supostamente livre de associações condicionantes, mas que, em
última instância, está sendo condicionado pela própria perspectiva liberal –
ainda seria ideologia.
Se
conscientemente não há a tentativa de manter a ideologia vigente e simplesmente
reproduzi-la, essa tentativa acontece pela limitação do sujeito como artista-criador
pertencente a um determinado período histórico e do público que se organiza sob
determinados símbolos e, por eles, conseguem classificar a arte de inúmeras
maneiras. O espaço simbólico é mantido, a obra em si que é sempre modificada.
É por isso que,
para Caudwell, a pergunta deve ser: “Que função social a arte está
desempenhando?”. Esta pergunta pode ser recolocada em: ela está
demonstrando as contradições entre a percepção das relações sociais e a
expressão concreta das mesmas relações? Se sim, temos uma arte que participa do
processo social, senão, temos uma arte ideológica.
A análise da
função da arte vem como tentativa de distinguir aquilo que se pode chamar de
arte e aquilo que é reprodução ideológica pura. A arte é o que consegue
demonstrar o desalinhamento das relações sociais, a arte é aquilo que, além de
expressão, é expressão não-alienada, ou seja, é uma expressão consciente de si.
Ao demonstrar as contradições da linguagem e do mundo concreto, ela testemunha
um período histórico sob um viés de transformação, e sincero. Desta forma, os
diferentes quadros, livros e música de artistas de um determinado período
histórico que tentam, a todo custo, expressar uma suposta liberdade artística,
que fazem a arte pela arte ou que desdenham esses conceitos e fazem arte para o
mercado, são todos iguais. Todos são a reprodução um do outro e, conforme é
possível sua reprodução, a arte perde seu valor social, sua unicidade, sua
áurea – perde seu testemunho histórico.
Um exemplo
contemporâneo pode ser a apresentação de Arrigo Barnabé no Festival de MPB na
USP, de 1979, está apresentação foi aquilo que podemos chamar de atividade
afetiva emanada do público – os gritos de aclamação e as vaias, muito
divididos, demonstram como a música de Arrigo, em todos os detalhes, conseguiu
tocar uma ferida da linguagem e causar a sublimação momentânea da moral,
juntamente com a imperiosidade da ordem vigente se afirmando pela censura
àquilo que se expressava.
Vinicius Siqueira de Lima é pós-Graduando em Sócio-Psicologia, cursando extensão em História da Filosofia, escreve artigos freelance para o Artigo Mundo, tem uma página/blog na seção Lounge, da Obvious, colabora no site Os Cinéfilos e adora escrever sobre livros, filmes e sobre a sociedade em geral. Contato: vinicius.lima121@gmail.com
A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
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