sexta-feira, 20 de julho de 2012

Deixando para trás o cheirinho de café e o fogão de lenha

Katia Peixoto e Nicilmar Maria /

A música sertaneja de raiz é a lembrança do homem que vive na terra e tira dela seu sustento. São histórias comoventes de homens e mulheres que passam seus dias na labuta, de sol à sol, plantando, colhendo e cuidando das pequenas criações de gado.
Pela falta de incentivos governamentais e fatores climáticos, alguns pastos tendem a desaparecer e os prejuízos, com a perda do gado e das lavouras, motivam o grande êxodo rural. A carência de programas governamentais sérios ao pequeno agricultor,  continua fazendo os jovens se desencantarem com o campo, buscando na cidade  novas perspectivas, novos horizontes.


Até os médios agricultores sentem falta de melhor orientação e incentivo para produzirem. Faltam desde cisternas, para guardar a água da chuva, até fertilizantes. Sem técnicos de assistência agrícola e pecuária e sem um sistema eficaz de incentivo ao plantio do pequeno e médio proprietário, o Brasil continua colhendo os frutos do descaso, triste realidade que se mantém no decorrer das últimas décadas. 

Essa situação precária contribui cada vez mais para tirar o jovem do campo, que sem perceptivas de trabalho, abandona sua família e suas terras para morar precariamente na cidade. Muitos vão à cidade em busca de dinheiro mas o que encontram é desemprego, pobreza e humilhação.

Com o êxodo rural a cultura do homem do campo o acompanha até as cidades. Nesta coluna de hoje, a aluna Nicilmar da Faculdade de Música da FAC-FITO, veio contar-nos um pouco da dor da partida. Nossos estudos na disciplina Cultura Popular, vão atrás da música sertaneja de raiz e de suas transformações adquiridas pelo contato com o universo urbano, suas implicações e intervenções. Fiquem agora com o relato poético de Nicilmar.

FOGÃO DE LENHA



Nicilmar Maria de Oliveira Lima 1   

       Era uma tarde outonal, avermelhada pelo por do sol, que pouco a pouco se escondia atrás das montanhas. O gigantesco pé de boleiras, cujos galhos naquela estação, um pouco secos, quase cobriam a pequena casinha de taipa. A paisagem sonora era típica daquela hora: os passarinhos que faziam enorme barulho ao se aninharem nos arvoredos em redor. Tudo parecia normal, exceto pelo ar de melancolia, além daquele que para mim, sempre vinha com o crepúsculo da tarde. Era o outono de 1987, do qual nunca me esquecerei.

       Caçula de uma família de nove irmãos dos quais, alguns já haviam migrado para a cidade quando nasci. MInha mãe, pessoa simples, descendente de índios; pai, homem da lavoura, pele da cor da terra, com muito suor e calos nas mãos trabalhava para manter o sustento daquela humilde família.

       Naquela tarde, vi meu irmão partir, são vagas as lembranças da despedida, mas há uma paisagem que ficou gravada em minha memória para sempre. Quando vi meu irmão, filho do meio, adentrar o estreito caminho entre a relva que levava à cidadezinha. Carregava apenas uma malinha de couro marrom, não acenava, nem sequer olhava para trás, certamente porque sabia que minha mãe chorava ao ver mais um filho deixar o lar em busca de seus sonhos numa grande cidade. Seu destino,  a cidade de São Paulo, e seus sonhos não eram diferentes do grande número de pessoas que migraram, segundo  estatísticas, da zona rural para os grandes centros urbanos entre as décadas de 1960 e 1980.

       Por alguns dias perdurou aquele clima de despedida na pequena casinha naquele sertão do interior de Minas Gerais. Meu pai ficou alguns dias sem tocar a velha viola à luz do candeeiro e minha mãe não cantava mais as antigas cantigas que me faziam dormir. Não obstante se ouvia, no velho rádio à pilha, uma canção que fazia com que eu aumentasse o volume todas as vezes que tocava: Fogão de Lenha. A letra da música é como uma carta de um filho que partiu do sertão, com sonhos de grandeza, mas arrependido e talvez frustrado, decide voltar: “Pegue a viola e a sanfona que eu tocava, deixe o bule de café em cima do fogão. Fogão de lenha e uma rede na varanda arrume tudo mãe querida o seu filho vai voltar.” (Fogão de Lenha: Meu disfarce, 1987).

       Muitas vezes, vi meu pai ler as cartas dos filhos distantes para minha mãe que ouvia atentamente com os olhos cheios d’água, demonstrava saudades e ao mesmo tempo alegria e felicidade pois diziam estararem bem na cidade grande. Ela aos poucos compreendia que a nossa casinha estava ficando pequena para abrigar tantos sonhos e que seus filhos haviam crescido, embora, no próximo inverno houvesse mais um lugar vazio ao redor do fogão de lenha ao anoitecer.

       Hoje, vinte e quatro anos depois, ao ouvir Fogão de Lenha, me volto interiormente para essa história e para minha cultura de origem, minha verdadeira essência que não se rompeu, mesmo diante de todas às adaptações que tive que sofrer para viver nesta grande metrópole.

Fogão de Lenha (Chitãozinho e Xororó )
Espere minha mãe estou voltando
Que falta faz pra mim um beijo seu
O orvalho da manhã cobrindo as flores
Um raio de luar que era tão meu
O sonho de grandeza, ó mãe querida
Um dia separou você e eu
Queria tanto ser alguém na vida
Apenas sou mais um que se perdeu
Pegue a viola, e a sanfona que eu tocava
Deixe um bule da café em cima do fogão
Fogão de lenha, e uma rede na varanda
Arrume tudo mãe querida, que seu filho vai voltar
Mãe eu lembro tanto a nossa casa
As coisas que falou quando eu saí
Lembro do meu pai que ficou triste
E nunca mais cantou depois que eu partí
Hoje eu já sei, ó mãe querida
Nas lições da vida eu aprendi
O que eu vim procurar aqui distante

eu sempre tive tudo e tudo está ai


Referências bibliográficas:


DUBOC, Maurício; COLLA, Carlos; XORORÓ. Fogão de lenha In: Meu disfarce, São Paulo: EMI 1987 CD.



1- Nicilmar Lima é mineira do Vale do Jequitinhonha. Reside na cidade São Paulo há quinze anos, onde atua como cantora e professora de técnica vocal. E-mail: nicioliveiralima@gmail.com.



Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.