terça-feira, 11 de setembro de 2012

Agir

 


“Eu sou gay” – sujeito, verbo e orientação sexual em três palavras. Se hoje podemos iniciar um texto com esta frase, o livro “Eu, Pierre Seel, deportado homossexual” [Rio de Janeiro, Cassará, 2012] nos traz um relato de um momento adverso à aparente liberdade que a contemporaneidade proporciona. Publicado na França em 1994 e escrito com a ajuda do ativista Jean Le Bitoux, o livro se trata da autobiografia do homem que dá título à obra e tem como enfoque primeiro a sua relação com a homossexualidade e a repercussão social no período da Segunda Guerra Mundial.

Como a suástica rosa da capa da publicação mostra, esta escrita gira em torno da condenação de homossexuais aos campos de concentração nazistas. Pierre Seel possuía em sua ficha policial na cidade francesa de Mulhouse, na Alsácia, uma ocorrência acerca da perda de um relógio em um local onde era sabido que homossexuais flertavam. Durante a invasão alemã, portanto, ele é preso e enviado a um campo de concentração em SchirmeckSeus relatos, majoritariamente, descrevem os acontecimentos que sua memória ainda guardava de modo vívido com cerca de sessenta anos de espaçamento. O cotidiano de um campo de concentração, a humilhação, a sensação de ser empurrado e obedecer a ordens de modo involuntário são elementos centrais à sua fala, sempre tomados por questionamentos existenciais. O Seel jovem é sobreposto e se funde ao idoso que amargamente se vê a recorrer a uma nostalgia de chumbo.

Finito o regime fascista, retornando ao solo francês e na tentativa de erguer uma nova biografia que apagasse seus traumas da guerra, Seel constrói uma família. Casa-se com uma mulher, tem filhos e vive, como diz o título de seu quarto capítulo, “os anos de vergonha”. Qualquer esforço para ocultar sua homossexualidade era pouco e, segundo sua escrita, a depressão e inércia atingem seu corpo. Após se enxergar sem os membros da família ao seu redor, constantemente embriagado e rodeado de fantasmas do nazismo, ele esbarra, de modo torto, com um debate acerca da relação entre homossexualidade e nazismo em uma livraria. A audição de uma narrativa da História que perpassava a sua própria biografia acende uma luz no autor e alimenta a sua vontade da fala na primeira pessoa do singular. Entre as décadas de 80 e 90, ele se coloca a escrever e proferir palestras sobre o que viu e velou nos campos de concentração e na inserção dos homossexuais na sociedade francesa durante o século XX.

Ao finalizar a leitura deste livro, veio à mente uma pintura de Keith Haring, artista norte-americano de produção extensa durante o final do século XX. Três pictogramas típicos da produção de Haring se movimentam e ocupam a faixa central da imagem. Um tampa o que seriam seus olhos, ao passo que ao centro as mãos tampam orelhas e, por fim, a outra figura cobre a boca. Três frases estão presentes também. “Ignorância = medo”, “Silêncio = morte” e “Lute contra a Aids. Aja”. Um triângulo rosa ganha notoriedade aqui e os três homens representados tem também um X da mesma cor sobre seu tronco.

Penso em como a fala de Seel a partir dos anos 80, a década assombrada pela AIDS, pode ter sido importante. Mais do que isso, é interessante ler seu relato em um momento em que a homofobia é lançada nos holofotes dos debates públicos – se não pelas grandes empresas da comunicação (da televisão, precisamente), ao menos por mídias como a Internet e as redes sociais. Ler suas palavras é constatar que muito foi feito, mas que muito mais há por se fazer. Apenas como exemplo, recentemente o governo russo aprovou uma lei que proíbe manifestações públicas LGBT pelos próximos cem anos. Quão absurda uma lei pode ser? Como não aproximar este documento de uma postura fascista tal qual descrita pelo autor?

Vejamos, ouçamos e falemos. Levando Pierre Seel como uma espécie de mártir dos direitos dos homossexuais, ergamos nossas bandeiras em seus diversos tamanhos (longas como as que cortam a Avenida Paulista uma vez por ano ou pequenas como um ímã de geladeira) e lutemos em conjunto para que os triângulos rosa não voltem à tona. Tenhamos o verbo de Keith Haring como direção: agir.

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