terça-feira, 30 de outubro de 2012

BICHOS D'ALMA




Havia um limoeiro antigo no meu jardim. Todos os anos ele dava muitos limões, saborosos e azedos. Um dia, o jardineiro me procurou com a feição preocupada e disse:
– Eu precisei cortar o limoeiro e o joguei fora.
Senti uma dor no peito. Imagens da minha infância me deixaram tonta com seus flashes iluminados. Eu me vi menina, de pés no chão, escalando o alto muro da vizinha com minhas primas, para colher limões e depois comê-los com sal.
Com pesar, perguntei qual havia sido o motivo. Ele explicou que o limoeiro tinha sido infestado por bichos que foram se alimentado da seiva até que, completamente seco, perdeu as folhas, a cor e, por fim, a própria vida. Não pude evitar uma lágrima inoportuna. Não sei bem se pelo limoeiro ou pelas lembranças da minha infância. Fiquei refletindo sobre o fato: será que os limoeiros têm alma igual à gente? E será que a alma da gente tem bichos como o limoeiro?
Sem dúvida, algumas almas podem ficar “bichadas”. Inveja, mágoas e decepções são experiências tristes que nos sugam a energia vital, se alimentam de nossa esperança e nos fazem “secar” até perdermos a cor e a vida. Prevenir uma infestação me parece difícil. Só não sofre quem não vive. Lembrei-me de uma crônica de Rubens Alves em que ele diz que “a inveja é um bichinho que mora nos olhos e vai comendo por dentro as coisas boas que crescem em nosso jardim, o chamado ‘olho gordo’. Muita gente tem medo de ‘olho gordo’, mas não precisa, pois o verme da inveja nunca faz nada com os outros”.
Sim, o bichinho da inveja se alimenta da planta onde vive. Assim, enquanto tem fome da outra planta, olha para a sua como algo menor, deixando sua própria alma doente, perdendo o prazer da sua refeição, apesar de não ser capaz de devorar aquilo que olha além.  Inveja vem do Latim “invidia”, que significa “não ver”, no sentido de não querer ver o bem no outro. Mas o que realmente acontece é que a pessoa deixa de ver o seu próprio bem. A inveja anda de mãos dadas com a comparação, que é outro bichinho d´alma. Ela sempre elege um ganhador e um perdedor, mesmo que os dois sejam bons o suficiente. Alucinógena, cria uma ilusão de que o seu é muito, muito pior. Quem será que sofre com isso?...
Eu devo confessar que também sou um limoeiro. Na primavera, floresço, e quem me vê imagina que meus frutos são sempre doces. Doce mesmo, só a ilusão. Às vezes, fico carregada dos mais azedos limões. Procuro conviver com plantas de frutos doces para ter bons frutos em que me espelhar (não invejar). Toda planta pode ter bichos. Mas algumas espécies são mais azedas que as outras. Se for contaminada, que seja pelos bichos de um pé de laranja lima.
Eu não choro quando como uma laranja doce ou quando escuto palavras boas. Mas minha alma dói só de me lembrar do gosto do último limão azedo que maturei.

 Simone Pedersen é escritora. Escreve para crianças e adultos e tem vinte livros publicados.

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