Bumba meu boi do Grupo Cupuaçu no Morro do Querosene, São Paulo: Anotações sobre a prática instrumental
Sempre é muito bom publicar os trabalhos realizados pelos alunos da Faculdade de Música da FAC FITO. Suas experimentações,
indagações, trocas e aprendizado, na disciplina de Etnomusicologia, a qual
ministro há 3 anos, tem trazido para o âmbito da Pesquisa de Campo Antropológica e Musical, uma
contribuição importantíssima e urgente, visto que estudar culturas diversas deste
mundão de meu deus também inclui estudar nossa cultura em suas miscigenações e
hibridismos.
É bem vindo lembrar das citações do argentino, que estuda culturas de fronteiras, Néstor Canclini, para exemplificarmos como
entendemos a cultura em nossas inquietantes conversas e debates que são propostas e desenvolvidas nas aulas:
" ler o mundo pela chave
das conexões não elimina as distâncias geradas pelas diferenças nem as fraturas
e feridas da desigualdade"
2004:79.
"interculturalidade
remete à confrontação e ao entrelaçamento, ao que sucede quando os grupos
entram em relações e intercâmbios". Multiculturalidade, diz ele, apenas " supõe a
aceitação do heterogêneo; interculturalidade implica que os diferentes são o
que são em relações de negociação, conflito e préstimos recíprocos" (2004:15)
Quero agradecer a profa Dra. Neide Esperidião,
coordenadora da Faculdade de Música da FAC FITO, pelo apoio e incentivo que tem dado à
disciplina e também agradecer aos queridos alunos Emersom Gomes,
Marcio Gomes, Paulo da Silva Martins e Paulo Roberto B. Oliveira pela séria pesquisa realizada no Morro do Querosene em São Paulo. Um importante panorama da cultura trazida do Maranhão e ressignificada por Tião Carvalho e por todos os personagens que como co-autores propõem novos olhares e imbricações à cultura e prática do Boi.
Katia Peixoto dos Santos
Emersom
Gomes
Márcio
Gomes
Paulo da
Silva Martins
Paulo
Roberto B. Oliveira
A festa do Bumba meu boi realizada no Morro do Querosene, no bairro do Butantã, na cidade de São Paulo, é uma reprodução do bailado popular a maneira do povo maranhense. O Bumba meu boi é largamente praticado em todo o Brasil com suas variantes regionais, mas tendo em comum um enredo de muita simplicidade onde personagens arquetípicos dançam e cantam em torno de um boi que morre e ressuscita, animal este que para alguns autores é um elemento totêmico.
No Morro do Querosene a festa é hoje promovida pelo
Grupo Cupuaçu que comemorou seus 25 anos nesta edição da festa em 23 de outubro
de 2011, este grupo foi criado por Tião Carvalho, importante artista popular
maranhense, a partir das aulas de dança popular que ministrava.
O universo do Bumba
meu boi engloba além das danças, adereços e indumentárias confeccionados de
maneira tradicional com bordados esmerados, há uma culinária associada à festa
e uma parte musical que procuraremos abordar com mais destaque neste pequeno
estudo.
O enredo e as danças são
conduzidos por toadas puxadas pelo “cantador de boi”. São melodias que lembram
lamentos, as letras se repetem e são cantadas de forma responsorial pelo
cantador e o grupo. Construídas principalmente com notas longas, que contrastam
com as divisões rítmicas da percussão, encontramos nelas melodias criadas no
modo mixolídio, em tons maiores e utilizando pentatônicas menores.
O “cantador de boi” age como um mestre. Além do
canto, apoia-se num maracá de metal (fig.1) para criar uma referência rítmica e
de andamento para os outros instrumentistas, utiliza também um apito que
sinaliza o inicio e o final das toadas.
Maracá |
Os membranofônios são os instrumentos
fundamentais no Bumba meu boi: O “Onça”
(Fig. 2), uma cuíca de grande porte, de timbre grave, que se encarrega de um
papel de marcação, como se fosse um surdo, é executada com a fricção de um pano
umedecido em uma haste presa à membrana de couro deste tambor.
Tambor Onça |
tambores rasos, com aros idealmente de madeira de jenipapo, de diâmetros que variam de 14 a 22 polegadas, não
possuem tarraxas para a afinação da pele, para isso são esticados pelo calor de
uma pequena fogueira que permanece acesa durante toda a festa. São percutidos
com uma das mãos enquanto segurados com a outra. Há três sons básicos que
combinados formam os “toques”: uma batida aberta que é o som principal do
“pandeirão”, uma batida abafada e um tapa estalado. Os “pandeirões” têm
liberdade para executar variações rítmicas nos toques principais (sotaques) e é comum perceber entre os
muitos executantes diálogos e rítmicas diversas convivendo simultaneamente.
Aquecendo os pandeirões |
As “matracas” (Fig. 4), finalmente, providenciam os
timbres mais agudos da rítmica do Bumba
meu boi, são duas placas de madeira semelhantes a tacos, variando
ligeiramente de tamanho e consequentemente de timbre. Percutidas uma contra a
outra, com a função principal de marcar o tempo, ora de maneira binária ora
ternária e eventualmente com as duas células rítmicas combinadas
simultaneamente, mas nunca se afastando dessa função.
Matracas |
Dois sotaques
(maneiras diferentes de executar os toques) se alternam durante a festa. O
“Sotaque da Baixada” ou “Pindaré” caracteriza-se pela maneira de segurar o
pandeirão, tocado “em baixo”. As matracas mantem a marcação binária do
tempo e o andamento é um pouco mais lento. No “Sotaque da Ilha” os pandeirões
são tocados “no alto”, as rítmicas são mais complexas. Percebem-se polimetrias
nas células das “matracas” e dos “pandeirões”. O andamento é mais acelerado.
(anexo 2)
Pandeirões no sotaque da baixada ou Pindaré |
Bandeirões com sotaque da ilha |
Estas práticas instrumentais, no Maranhão,
originalmente são passadas de geração a geração, como relatou Tião Carvalho a
partir da sua própria experiência pessoal. A tradição do Boi naquele estado do Nordeste remonta a tempos passados, existem
grupos com mais de 150 anos de atuação. Apesar de afastado dessa realidade o
Grupo Cupuaçu mantém, ainda assim, a oralidade e o aprendizado empírico como
forma de transmissão de conhecimento. Esta dinâmica de transformação tão afeita
à cultura popular é expressa pelas palavras de Tião Carvalho: “... de alguma
forma todos nós estamos num momento de aprendizado”.
Video realizado pelos alunos - Entrevista com Tião Carvalho / Grupo Cupuaçu - Morro do Querosene, São Paulo
Referências bibliográficas
Versão em vídeo de “Bumba meu boi”
do Grupo Cupuaçu. Anotações sobre a prática instrumental. São Paulo. 2011.
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=w3_996gUMy4>.
Acesso em 2 nov. 2011.
Integra da entrevista em vídeo com Tião Carvalho. São Paulo. 2011.
Disponível em< http://www.youtube.com/watch?v=sdArzcM9RVI&feature=youtu.be
> Acesso em 18 de novembro de 2011.
Íntegra da entrevista em vídeo com Cezinha, percussionista do Grupo
Cupuaçu. São Paulo. 2011. Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=uSkqTdswgx4
> Acesso em 18 de novembro de 2011.
Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.
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