terça-feira, 27 de novembro de 2012

AMOR INCONDIONAL




Estava sonhando com um lindo jardim cheio de borboletas coloridas quando acordei com o despertador insistente, anunciando a hora de levantar. Rapidamente lembrei que ela ainda dormia e decidi, como em todas as manhãs, cheirar seu lindo pescoço, para despertá-la suavemente nesse novo dia. Ela se virou murmurando algo ininteligível. Então, passei para a segunda tática, que sempre funciona: mirei bem aqueles lábios carnudos e o narizinho empinado e lhe dei uma enorme lambida, bem molhada!... Abruptamente, ela se sentou na cama gritando, cheia de energia para o novo dia.
- Rex, eu vou te matar!... Quantas vezes pedi para não me lamber?
Ah, eu adoro quando ela acorda dizendo o meu nome! Comecei a puxar sua camisola, abanando a cauda freneticamente, para que ela abrisse a porta e eu corresse para o jardim esvaziar minha bexiga. Volto sempre correndo para estar ao seu lado por alguns minutos, antes dela partir para o longo dia de trabalho.
Depois do banho e de escovar os dentes, ela sobe na balança todos os dias. Nesse momento eu fico tenso, levanto as orelhas e aguardo sua reação, que, por vezes, é um grito de dor, e, em outras, um monte de palavras horríveis. Às segundas-feiras, normalmente, ela bate a cabeça na parede, repetindo algo do tipo: “nunca mais comerei lasanha na vida”. Ah, se não comesse tudo o que já prometeu, ela viveria só de filé de frango e eu seria um cão muito mais feliz e esbelto.
No quarto, em frente ao espelho, ela sempre começa a mesma brincadeira. Nunca entendi muito bem o porquê, se está sempre atrasada. Parece que, sem esse jogo, ela não pode sair de casa: tira uma roupa do armário, veste, dá uma volta em frente ao espelho e vem a sentença: “muito gorda”, “aparece a celulite”, “não sobressaem meus olhos azuis”, “quanta flacidez”, “uma ruga nova”, “cabelos brancos” - e tantos outros comentários que eu não entendo. Depois de uns quarenta minutos, ela encontra algo que a faz pular de felicidade; então, aquela roupa é a escolhida do dia, enquanto ela cantarola: “pareço uns dois quilos mais magra” ou ainda “parece que rejuvenesci cinco anos”.


Eu, um mero cachorro, jamais entenderei a raça humana, pois ela fica linda de qualquer jeito... Quem vai olhar suas dobrinhas, quando ela abre aquele sorriso encantador? Quem vai reparar naquelas jóias brilhantes, quando seus olhos verdes brilham mais que esmeraldas? Nós, os cachorros, somos seres inferiores e muito simplistas. Para nós não importa se a coleira tem diamantes ou é de couro velho. Se encontrarmos outro cachorro que não queira brigar, pronto, seremos amigos instantaneamente. Não sabemos classificar nossos amigos pelo que usam. Tampouco nos importa se somos de raças ou cores diferentes. A nós só importa sermos alegres e espontâneos. Mas eu sei, sou apenas um cachorro, como entenderia a complexidade da raça humana, ainda mais de suas fêmeas?...
Outro dia, minha dona dizia ao telefone que sentia solidão, sentia falta de uma família, um marido e filhos, e que eu só lhe trazia problemas. Eu não fiquei magoado com ela, porque logo lembrei que os humanos nem sempre falam o que realmente sentem. Muitas vezes, eles preferem culpar algo ou alguém pela sua dor, porque a dor é grande demais para ser expressa em palavras. E se não me amasse, porque teria ela me abraçado outro dia e estalado um beijo na minha bochecha caída? Dizem que os elefantes não esquecem, mas nós cachorros também não. Como temos um cérebro pequeno e só podemos nos lembrar de poucas experiências, preferimos nos lembrar só das boas. Somos mesmo seres inferiores e simplistas.
De repente, percebo que ela já passou pelo ritual da transformação, quando coloca muitas cores em seu rosto e, já parecendo outra pessoa, sobrepõe inúmeros objetos brilhantes nos dedos, braços, pescoço e orelhas, que desviam a atenção da sua alma. Nunca entendi muito bem o porquê dela trabalhar disfarçada. Acho que ninguém pode descobrir quem ela realmente é. Uma pena, porque eu acho que ela é muito mais agradável quando está sem a armadura e não precisa fingir ser outra pessoa.
Quando está assim, ela também muda o comportamento e até a voz fica mais austera, o sorriso parece mecânico e a gargalhada parece programada.Eu acho que ela trabalha no Exército... Talvez seja por isso que ela sente solidão! Ela precisa afastar as pessoas e esconder quem ela realmente é. Já sei, ela é um agente secreto, só pode ser isso. Nada mais justificaria esse comportamento, pois até mesmo os cachorros sabem que ninguém gosta de alguém que tenta ser quem não é.
Eu a acompanho até a porta todos os dias e fico observando sua imagem desaparecer. Ela sempre esquece de se despedir de mim, já que está sempre correndo. Eu dou umas boas latidas para ela saber que vou esperá-la ansiosamente. Quando ela se vai, o tempo parece não passar. Meu dia não é importante como o dela. Eu passeio pelo jardim desengonçadamente, corro atrás do gato do vizinho, tomo sol, rôo mais um pedaço do sofá, brinco com um galho que encontro por aí e caço borboletas que nunca pego. Sou um cachorro muito feliz...
Tenho uma dona maravilhosa que me deixa água e comida, e com ela não preciso fingir ser quem não sou. Ela sabe que eu tenho bafo canino (da lasanha, obviamente) e muitas vezes sou atacado por pulgas oportunistas. Além do que, estou ficando calvo com a idade e solto pelos pela casa o tempo todo. Mesmo assim, ela me dá banho, remédio e osso para roer. Para nós, cachorros, o amor é tudo, e não precisamos de outras sofisticadas demonstrações de carinho. Somos mesmo uma raça simples e pouco evoluída.
Quando chega a noite e eu escuto seu carro estacionando, meu coração começa a palpitar como uma revoada de maritacas e eu fico louco de felicidade. Corro para recebê-la. Sempre esqueço que ela chega cansada, diz para eu sair e fecha a porta do quarto no meu focinho! Mas eu não fico magoado com ela, sei que é muito desgastante passar o dia tentando ser outra pessoa, se preocupando com o disfarce, escondendo seus sentimentos e encenando ser uma pessoa perfeita. Eu deito no chão gelado e aguardo pacientemente ao lado da porta.
Sei que depois do banho, quando tirar aquele disfarce, ela se sentará no sofá usando uma camisola larga e pantufas velhas. Tranquila, ela finalmente permitirá que eu me aproxime. Então, vou-me sentar aos seus pés, feliz por sentir seu cheiro gostoso, seu calor e ver a beleza daquela pessoa humana, tão complexa, tão forte e tão frágil ao mesmo tempo.
E quando, finalmente, ela acaricia minhas costas com suas mãos delicadas e unhas por fazer, eu ronrono como um gatinho. Então, ela sabe que eu a amo mais que tudo... Exatamente como ela é.
 Simone Pedersen é escritora. Tem livros publicados para crianças e adultos.

1 comentários:

Gladis Berriel disse...

Belo texto Simone. Uma homenagem aos nossos amigos mais sinceros e apaixonados. Nossos cãezinhos merecem!!!

9 de dezembro de 2012 às 20:02

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