sábado, 11 de maio de 2013

O DIÁRIO DE GENET: UMA DRAMATURGIA PERFORMATIVA



        

 UMA DRAMATURGIA PERFORMATIVA

        O texto que apresento aos leitores é parte de O diário de Genet, o resultado dramatúrgico do espetáculo homônimo encenado na cidade de Salvador e ficará em cartaz entre até 02 de junho de 2013. Dramatúrgico porque “quando se trata de considerar a interação do extrato linguístico-literário com os demais códigos envolvidos na elaboração do produto artístico que é levado ao palco, para a leitura pública e coletivista por parte dos espectadores, trata-se do texto dramatúrgico” (PEREIRA, 1999,71).


         Pós-moderna, pós-dramática ou performativa, nossa proposta é a de se aproximar daquilo que o Lehmann chamou de “o teatro no ponto do desaparecimento”, espécie de movimento dos anos 80 e 90 que não pensava mais o teatro como a realização de um grande ato, num grande palco, mas que continuava, mesmo assim, sendo teatro. Durante o processo investigativo de elaboração várias inquietações davam conta da discussão acerca dos procedimentos teatrais, da fusão dos elementos significantes, do desinteresse pela complexidade psicológica da personagem ficcional e a potencialização das relações entre ator e personagens, entre personagens e linguagens. Dava conta do deslocamento da hegemonia da escrita, da revisão do papel preponderante do texto na construção do espetáculo ocidental-brasileiro-baiano e passando a tomá-lo como  um suporte de maior flexibilidade.

      
           O diário de Genet nasceu assim, mestiço, híbrido, enviesado. Uma dramaturgia não apenas textual, mas cênica, intertextual, citacional, inorgânica – para pensar com Burger; e performativa – para pensar com Féral. Abaixo uma das cenas do espetáculo que incorpora além de uma passagem de “ O diário de um ladrão”, passagens de “Por el Culo - Políticas anales”, de Javier Sáez e Sejo Carrascosa, autores que apontam o cu como o lugar da injúria e do insulto:

A traição é bela se nos faz cantar 
Ator 1: Vocês sabem o que é isso? Alguém sabe o que é isso? Não tenham vergonha! Um lubrificante, um objeto carregado se signo. E se for uma vaselina usada ainda mais carregado. Mas não de qualquer signo, eu falo do que maldiz, do que humilha, do que consterna e foi “uma consternação quando revistando-me depois de uma batida policial, um dos alibans admirado tirou do meu bolso, entre outras coisas, esse tubo de vaselina. Sobre ele ousaram fazer piadas já que era vaselina perfumada:
Ator 2: Quer dizer então que a negrada te enraba pelo nariz, não é? Vê se não resfria, tá? O teu macho pode pegar coqueluche, viado nojento!
Ator 1: Viado nojento, foi a primeira vez que alguém disse essa palavra na minha direção. E quando entendi que o ‘viado’ era eu, o mundo brutalmente se revelou, com essa simples palavra que brotava como uma explosão fora da frase, algo que eu não deveria ter feito, algo que eu não deveria ter sido. O ‘Viado’ vindo da boca daquele não-viado me fez saber que sou alguém que não é como os outros, que não está na norma. E tratava-se apenas de um tubo de vaselina com uma das extremidades já bem enrolada. Isso mostrava o quanto já tinha sido útil. Em meio aos objetos elegantes tirados do bolso dos homens apanhados naquela batida, a vaselina era o sinal da própria abjeção e me traria uma sentença quase definitiva, uma condenação perpétua e com a qual vai ser preciso viver. Descubro, então, que sou alguém de quem se pode dizer isto ou aquilo, alguém a quem se pode dizer isto  ou aquilo, alguém que é objeto dos olhares, dos discursos, que é estigmatizado.”
Por que o sexo anal é visto com tanto desprezo? tanto medo, tanto desejo e tanto ódio? tão fascinante e tão hipócrita? Sim, porque Genet revela que a vigilância das nossas bundas não é uniforme: depende se é preta ou branca, se é uma mulher ou um homem ou uma trans. Se esse ato é ativo ou passivo; se é um cu penetrado por um vibrador, uma garrafa ou um punho, se o sujeito penetrado sente orgulho ou vergonha, se penetrou com um preservativo ou não, se é um cu rico ou cu pobre. Se é um cu católico ou muçulmano... São nestas variáveis ​​que percebemos certa política do cu, e como essa política se articula e o poder é exercido, e onde são construídos o ódio, o sexismo, a homofobia e o racismo.
“Depois de trancado na cela, e assim que me reanimei o bastante para dominar a infelicidade da minha detenção, a imagem daquele tubo sobre a mesa não mais de deixou. Os policiais o haviam mostrado vitoriosamente para mim, já que com ele podiam empunhar sua vingança, seu ódio, seu desprezo. Ora, eis que esse miserável objeto sujo, cuja destinação parecia ao mundo das mais vis, tornou-se para mim extremamente precioso. Eu estava numa cela, sabia que durante toda a noite o meu tubo de vaselina estaria exposto ao desprezo de um grupo de policiais belos, fortes e sólidos. Tão forte que o mais fraco, com uma leve pressão dos dedos, poderia dele fazer surgir, primeiro com um ligeiro peido, curto e sujo, um cordão de goma que continuaria saindo num silêncio ridículo. Todavia eu sabia, eu sabia que esse fraco objeto tão humilde os desafiaria, apenas com a sua presença ele saberia alvoroçar toda a polícia do mundo, ele chamaria sobre si os desprezos, os ódios, as raivas brancas e mudas. Eu gostaria de encontrar as palavras mais novas da língua francesa para cantá-lo”.


  DJALMA THÜRLER é artista interdisciplinar. Doutor em Teatro, Diretor de Teatro, Pesquisador e Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em Cultura e Sociedade da UFBA, já dirigiu mais de 20 (vinte) peças, dentre as quais: A história do amor de Romeu y Julieta (1999), Esse mundo é um pandeiro – uma crônica musical (2000-2001), O lustre (2002-2006), Vodka com maçã (2006-2008) e Eu sempre tive a ilusão que um dia você ia me abraçar. É avaliador de dramaturgia do SESI/SP e tem atuação em todo o território nacional com um projeto de divulgação da dramaturgia brasileira patrocinada pelo SESC, denominado DRAMATURGIA: LEITURAS EM CENA. Publicou artigos sobre Dramaturgia e Identidade; Dramaturgia e Sexualidade, tema que vem desenvolvendo desde o início de 2000. Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutoramento na PUC de São Paulo.

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