domingo, 15 de setembro de 2013

A Mulher e o Diabo: sinônimos em Esaú e Jacó, de Machado de Assis

     

As figuras da mulher e do Diabo estão intimamente ligadas no imaginário cristão. Basta pensarmos na máxima católica que profere que pela mulher o mal entrou no mundo, mas por uma mulher, entrou a redenção. Essa referência a Eva e a Maria de Nazaré explicitam a importante presença da mulher no pensamento religioso cristão: a porta de entrada do Mal, através da desobediência de Eva e a porta de entrada da redenção, através do nascimento de Cristo. Eva, a mulher, foi a responsável pela danação do Homem ao ser seduzida pela serpente, normalmente interpretada como sendo o próprio Diabo. A mulher, o feminino, foi sempre colocada oposta à contraparte principal. O feminino se relaciona à lua, ao frio, ao escuro. Não é de se admirar que a mulher fosse relacionada, também, à contraparte do bem e da moral, o Demônio.

 
Incorporando, pois, todas as crenças da Antiguidade, amplificado pelo discurso da Igreja, o Diabo preside a vida da comunidade cristã. Em toda parte se vê o diabólico, o mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é, por excelência, a mulher. Porque a mulher está mais predestinada ao Mal que o homem, segundo os textos bíblicos – “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher; que a sorte dos pecadores caia sobre ela!” (Eclesiástico 25:16) (NOGUEIRA, 2000, p. 42)

Consciente dessa relação tradicional, Machado de Assis nos apresenta uma mulher em relação sinonímica com Lúcifer. No romance Esaú e Jacó aparecem referências a práticas religiosas diversas e um profundo intertexto com a Bíblia, a começar pelos gêmeos, cuja história é descrita no Gênesis, que emprestam seu nome ao romance. Em um dado momento da obra, no capítulo XLVII, que recebeu como nome S. Mateus, IV, 1-10, Dona Cláudia, esposa do senhor Batista, diz ao seu marido que este é, na verdade um liberal. O marido se enfurece com o dizer da esposa, pois se considera fiel ao partido conservador. Durante o diálogo áspero, a mulher “lhe mostrava com o dedo a carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa, a presidência, o ministério...” tudo que ele ganharia caso se aliasse aos liberais e estes chegassem ao poder. Observamos claramente uma profunda intertextualidade com o texto bíblico que intitula este capítulo. Essa passagem é justamente a que descreve a tentação de Cristo no deserto. O Diabo, para tentar convencer a Cristo a lhe prestar adoração, lhe mostra com o dedo vários reinos da Terra e os promete ao Filho do Homem:

O diabo tornou a levar Jesus, agora para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos os reinos do mundo e suas riquezas. E lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te ajoelhares diante de mim, para me adorar.” Jesus disse-lhe: “Vá embora, Satanás, porque a Escritura diz: ‘Você adorará ao Senhor seu Deus e somente a ele servira.’”
Então o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e serviram a Jesus. (Mateus: 4, 8-11)

À imagem do que se passa no relato bíblico, no romance de Machado de Assis um anjo veio livrar o protagonista das tentações demoníacas, mas aqui o anjo era Flora, filha do casal. Após a chegada da filha, Batista a indaga sobre a possibilidade de se mudarem do Rio de Janeiro e aparece imbuída na narrativa uma concatenação de citações bíblicas retiradas dos versículos acima, com o exorcismo do Diabo, a retirada deste e a chegada dos anjos, ou do anjo Flora. Logo depois que a filha diz que não gostaria de sair do Rio e o pai concorda com essa ideia, o narrador nos explica que “não foi a filha que tolheu a deserção do pai. Ao contrário. Batista, se tivesse de ceder, cederia à mulher ou ao Diabo, sinônimos neste capítulo.” (p. 50). Vemos então que o narrador expõe o sentimento de Batista, o sentimento de querer ceder à mulher ou ao Diabo e se mostrar liberal. A representação desse Diabo não é aquela do inimigo de Deus, da face maligna da dicotomia divina, mas ele é aqui tido como o contestador, o opositor e o rebelde. Atitudes mais coerentes com a origem do nome Satã.
Como seres, por vezes, belos, sedutores e enigmáticos, a relação entre as figuras da mulher e do diabo se consolidou no imaginário religioso e formou imagens amplamente conhecidas, tais como a de Lilith, as Súcubos e mesmo as bruxas. Na obra Esaú e Jacó, o narrador se apropria da relação entre essas duas imponentes figuras e recria a cena da tentação de Cristo no deserto desenhando-a com a família Batista. Note, no entanto, que embora represente o Diabo nesse capítulo, a mulher representa também o anjo que chega para acalentar a vítima tentada. O pensamento dicotômico é trazido novamente à tona: seria a mulher a representação do diabo ou de um anjo? Para o narrador do romance aqui lido, ela faz a vez dos dois.

Referências bibliográficas:
ASSIS, J. M. Machado de. Esaú e Jacó. Editora Tecnoprinte. Rio de Janeiro: 1967.
Mateus: 4, 8-11. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Editora Paulus. São Paulo: 1990.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. EDUSC. Bauru: 2000.






Welton Pereira e Silva é estudante de Letras: Português e Literatura na Universidade Federal de Viçosa (MG). Cursou Licenciatura em Português na Universidade de Coimbra, em Portugal. Atualmente, desenvolve pesquisa na área da Sociolinguística Interacional.


Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.


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