A Mulher e o Diabo: sinônimos em Esaú e Jacó, de Machado de Assis
As
figuras da mulher e do Diabo estão intimamente ligadas no imaginário cristão.
Basta pensarmos na máxima católica que profere que pela mulher o mal entrou no
mundo, mas por uma mulher, entrou a redenção. Essa referência a Eva e a Maria
de Nazaré explicitam a importante presença da mulher no pensamento religioso
cristão: a porta de entrada do Mal, através da desobediência de Eva e a porta
de entrada da redenção, através do nascimento de Cristo. Eva, a mulher, foi a
responsável pela danação do Homem ao ser seduzida pela serpente, normalmente
interpretada como sendo o próprio Diabo. A mulher, o feminino, foi sempre
colocada oposta à contraparte principal. O feminino se relaciona à lua, ao
frio, ao escuro. Não é de se admirar que a mulher fosse relacionada, também, à
contraparte do bem e da moral, o Demônio.
Incorporando,
pois, todas as crenças da Antiguidade, amplificado pelo discurso da Igreja, o
Diabo preside a vida da comunidade cristã. Em toda parte se vê o diabólico, o
mundo inteiro é por ele invadido. E sua vítima é, por excelência, a mulher.
Porque a mulher está mais predestinada ao Mal que o homem, segundo os textos
bíblicos – “Toda a malícia é leve, comparada com a malícia de uma mulher; que a
sorte dos pecadores caia sobre ela!” (Eclesiástico 25:16) (NOGUEIRA, 2000, p.
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Consciente
dessa relação tradicional, Machado de Assis nos apresenta uma mulher em relação
sinonímica com Lúcifer. No romance Esaú e
Jacó aparecem referências a práticas religiosas diversas e um profundo
intertexto com a Bíblia, a começar pelos gêmeos, cuja história é descrita no
Gênesis, que emprestam seu nome ao romance. Em um dado momento da obra, no
capítulo XLVII, que recebeu como nome S. Mateus, IV, 1-10, Dona Cláudia, esposa
do senhor Batista, diz ao seu marido que este é, na verdade um liberal. O
marido se enfurece com o dizer da esposa, pois se considera fiel ao partido
conservador. Durante o diálogo áspero, a mulher “lhe mostrava com o dedo a
carreira, a alegria, a vida, a marcha certa e longa, a presidência, o
ministério...” tudo que ele ganharia caso se aliasse aos liberais e estes
chegassem ao poder. Observamos claramente uma profunda intertextualidade com o
texto bíblico que intitula este capítulo. Essa passagem é justamente a que
descreve a tentação de Cristo no deserto. O Diabo, para tentar convencer a
Cristo a lhe prestar adoração, lhe mostra com o dedo vários reinos da Terra e
os promete ao Filho do Homem:
O
diabo tornou a levar Jesus, agora para um monte muito alto. Mostrou-lhe todos
os reinos do mundo e suas riquezas. E lhe disse: “Eu te darei tudo isso, se te
ajoelhares diante de mim, para me adorar.” Jesus disse-lhe: “Vá embora,
Satanás, porque a Escritura diz: ‘Você adorará ao Senhor seu Deus e somente a
ele servira.’”
Então
o diabo o deixou. E os anjos de Deus se aproximaram e serviram a Jesus.
(Mateus: 4, 8-11)
À imagem do que
se passa no relato bíblico, no romance de Machado de Assis um anjo veio livrar
o protagonista das tentações demoníacas, mas aqui o anjo era Flora, filha do
casal. Após a chegada da filha, Batista a indaga sobre a possibilidade de se
mudarem do Rio de Janeiro e aparece imbuída na narrativa uma concatenação de
citações bíblicas retiradas dos versículos acima, com o exorcismo do Diabo, a
retirada deste e a chegada dos anjos, ou do anjo Flora. Logo depois que a filha
diz que não gostaria de sair do Rio e o pai concorda com essa ideia, o narrador
nos explica que “não foi a filha que tolheu a deserção do pai. Ao contrário.
Batista, se tivesse de ceder, cederia à mulher ou ao Diabo, sinônimos neste
capítulo.” (p. 50). Vemos então que o narrador expõe o sentimento de Batista, o
sentimento de querer ceder à mulher ou ao Diabo e se mostrar liberal. A
representação desse Diabo não é aquela do inimigo de Deus, da face maligna da
dicotomia divina, mas ele é aqui tido como o contestador, o opositor e o rebelde.
Atitudes mais coerentes com a origem do nome Satã.
Como seres, por
vezes, belos, sedutores e enigmáticos, a relação entre as figuras da mulher e
do diabo se consolidou no imaginário religioso e formou imagens amplamente
conhecidas, tais como a de Lilith, as Súcubos e mesmo as bruxas. Na obra Esaú e Jacó, o narrador se apropria da
relação entre essas duas imponentes figuras e recria a cena da tentação de Cristo
no deserto desenhando-a com a família Batista. Note, no entanto, que embora
represente o Diabo nesse capítulo, a mulher representa também o anjo que chega
para acalentar a vítima tentada. O pensamento dicotômico é trazido novamente à
tona: seria a mulher a representação do diabo ou de um anjo? Para o narrador do
romance aqui lido, ela faz a vez dos dois.
Referências
bibliográficas:
ASSIS, J. M. Machado de. Esaú e Jacó.
Editora Tecnoprinte. Rio de Janeiro: 1967.
Mateus: 4, 8-11. Bíblia Sagrada, Edição Pastoral. Editora Paulus. São Paulo: 1990.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. EDUSC.
Bauru: 2000.
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