Secos e molhados
Daqueles instantes de epifania: secando o chão da cozinha, me dei conta de que viver é enxugar. A pia depois de lavar a louça, o rosto depois de fazer a barba, o cabelo depois de tomar banho, o suor depois de correr na esteira, a lágrima depois de ver filme triste, o texto depois de rabiscar mil adjetivos.
As horas depois de perder tanto tempo.
Quantos Natais não festejados por causa de mal-entendidos familiares; quantas happy hours não curtidas por causa de horas extras desnecessárias; quantas risadas não dadas por causa de choro protocolar; quantos amigos não reunidos por causa de solidão ranzinza; quantas ruas não exploradas (a pé) por causa de ônibus vazio no ponto; quantas histórias não descobertas por causa da velha preguiça de ouvir.
Quantos bons romances não lidos por causa de novela ruim; quantos filmaços não vistos por causa de blockbusters genéricos; quantas canções dos Beatles não degustadas por causa do sucesso dadaísta da estação; quantos ceviches, tabules e temakis não experimentados por causa do arroz e feijão de todo dia; quantas viagens não feitas por causa da velha preguiça de descobrir.
Quanto pôr do sol não apreciado por causa das janelas fechadas.
Fechadas por medo de chover, de molhar o chão da cozinha de novo (do novo?) e ter de secar tudo outra vez. O medo e a preguiça – a velha preguiça – de suar, de chorar, de reescrever o texto quantas vezes ele exigir, de enxugar todo o excesso, de cortar cada adjetivo – até que reste apenas o que é substantivo.
Os Natais, mas também as briguinhas que aproximam; as happy hours, mas também a hora extra indispensável; as risadas, mas também o choro que ensina; os amigos, mas também a solidão que faz pensar; as ruas a pé, mas também o ônibus com ar-condicionado; os livros, mas também as novelas com Odete Roitman; os filmaços, mas também os blockbusters com personalidade; as canções dos Beatles, mas também os ilariês de pular em festa ploc; os ceviches, tabules e temakis, mas também o arroz e feijão de mãe.
E ainda as histórias de amor e vingança, as viagens de avião e bicicleta, o pôr do sol onde a gente estiver, as janelas abertas: por onde há de entrar não só a chuva que lava a alma, mas também o cheiro da terra molhada – que enxuga o coração e o revigora para o próximo dilúvio.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008) e escreve no Pasmatório (http://pasmatorio.blogspot.com.br).
E ainda as histórias de amor e vingança, as viagens de avião e bicicleta, o pôr do sol onde a gente estiver, as janelas abertas: por onde há de entrar não só a chuva que lava a alma, mas também o cheiro da terra molhada – que enxuga o coração e o revigora para o próximo dilúvio.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008) e escreve no Pasmatório (http://pasmatorio.blogspot.com.br).
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