quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Fernando Pessoa revisitado por Sophia Andresen: uma leitura de "Cíclades"



Muitas são as leituras e leitores de Fernando Pessoa. No entanto, poucos são aqueles que conseguiram compreender realmente o significado da poética desse autor português, ou ao menos perto dessa significação se aproximaram. Dentre eles, podemos destacar outros poetas que com ele dialogaram ao longo dos anos através de seus trabalhos, dando-lhe contornos novos, olhares distintos e mantendo-o cada vez mais vivo.
Como exemplificação dessa intertextualidade entre poetas mais “contemporâneos” e Fernando Pessoa, procuraremos estabelecer uma ponte entre ele e Sophia de Mello Breyner Andresen.
Sophia, poeta a lançar seus escritos a partir de década de 40, possui um forte diálogo e embate com a figura pessoana, lendo os poemas por ele escritos, buscando compreendê-los e, sobretudo, valendo-se de muitos recursos que ele foi responsável por trazer e sublimar na poesia portuguesa. No Livro O Nome das Coisas (1977), Sophia Andresen evoca Fernando Pessoa, elaborando um dos mais belos poemas de diálogo com este que, ao lado de Luís Vaz de Camões, pode ser considerado um grande expoente da poesia em língua portuguesa. Vejamos “Ciclades”:

Cíclades
 (evocando Fernando Pessoa)

A claridade frontal do lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como se aqui
O negativo que foste de ti se revelasse

Viveste no avesso
Viajante incessante do inverso
Isento de ti próprio
Em Lisboa cenário da vida
E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente de uma casa comercial
O frequentador irônico delicado e cortês dos cafés da Baixa
O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo

(Onde ainda no mármore das mesas
Buscamos o rastro frio das tuas mãos
- O imperceptível dedilhar das tuas mãos)

Esquartejado pelas fúrias do não-vivido
À margem de ti dos outros e da vida
Mantiveste em dia os teus cadernos todos
Com meticulosa exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas navegações da tua ausência –
Aquilo que não foi nem foste ficou dito
Como ilha surgida ao barlavento
Com prumos sondas astrolábios bússolas
Procedeste ao levantamento do desterro

Nasceste depois
E alguém gastara em si toda a verdade
O caminho da Índia já fora descoberto
Dos deuses só restava o incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro das paisagens
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo ninguém disseste tudo
Viajavas no avesso no inverso no adverso

Porém obstinada eu invoco – ó dividido –
O instante que te unisse,
E celebro a tua chegadas às ilhas onde jamais vieste
[...]
(ANDRESEN, 1977, p. 9 – 12)

Pela extensão do poema, destacaremos somente algumas estrofes (aqueles que desejarem lê-lo na íntegra acessem aqui), nas quais podemos notar como a poeta dialoga com a tradição histórica e literária portuguesa, evocando a figura do homem e do artista que refletiu em si e em seus escritos a crise identitária do sujeito na Modernidade:
O poema “Cíclades” permite-nos fazer considerações em relação à memória de um sujeito em crise, numa cultura também repleta de tensões, quanto à exaltação/construção da memória da figura de Fernando Pessoa. No caso deste poeta modernista e moderno, há o ultrapassar da portugalidade para se impor como um sujeito cuja crise ou cisão assume uma dimensão universal.  
Ressaltemos que este poema de abertura da obra O Nome das Coisas (1977) dialoga veementemente com a poética pessoana (Pessoa foi um dos predecessores de Sophia Andresen) e se constitui também como uma homenagem eivada da consciência angustiante da influência e do desejo de ultrapassagem. O sujeito poético que chega a um grupo de ilhas gregas, localizadas no sul do Mar Egeu, denominadas Cíclades, evoca Pessoa, “O instante que te unisse”. Ao mesmo tempo, a memória apela para a descrição das condições em que o poeta vivia, os lugares que frequentava, demonstrando que ele teve uma vida prosaica e comum, o que não o impediu de ser um gênio artístico: “Em Lisboa cenário da vida/ E eras o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria/ O empregado competente de uma casa comercial/ O frequentador irônico delicado e cortês dos cafés da Baixa/ O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo”.
Na caracterização de Fernando Pessoa, há o destaque de elementos de um alguém que se fecha ao mundo para viver somente para e na Literatura, “Viveste no avesso/ Viajante incessante do inverso”. Ele renunciou à vida em nome da escrita. Em fuga de um mundo altamente fragmentado, o poeta de Orfeu ironicamente fragmenta a si próprio, “Isento de ti próprio”, fechando-se aos acontecimentos exteriores. Rosa Maria Martelo (2010, p. 37 – 38) declara que “o ‘inverso’ parece associar-se directamente à ideia de um modo de ser em negativo, a uma não-vida”, como também ressalta que “não será excessivo entender que ele é também aquele que viajaria no in-verso, isto é, dentro do verso e apenas aí – aquele que viaja exclusivamente no poema e, portanto, no avesso de um mundo adverso”.

A Literatura foi o meio escolhido e encontrado por Pessoa para dialogar com a vida de forma plural, tornando externos seus pensamentos, através dela, ele “Viajavas no avesso no inverso no adverso”. O mais interessante nisso é que grande e significativa parte do que ele escreveu foi feito através de heterônimos, de maneira que ele “E tinhas muitos rostos/ Para que não sendo ninguém disseste tudo”. A soturnidade e mistério que rondaram a vida pessoana leva muitos a questionarem-se se não era o próprio Fernando Pessoa um heterônomo.
Por fim, podemos arrolar esse poema pessoano com o período histórico português, no qual Pessoa viveu. Para tanto, é necessário relembrar que conforme Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 54),
A partir do século XVII, Portugal entrou num longo período histórico dominado pela repressão ideológica, a estagnação científica e o obscurantismo cultural. Um período que teve a sua primeira (e longa) manifestação na Inquisição e a última (assim esperamos) nos quase cinquenta anos de censura salazarista.

 É nesse quadro sócio-histórico português que surge a geração de Orpheu, ansiando pela renovação da vida artística portuguesa que encontrava-se estagnada em comparação com outros países Europeus, como França, Inglaterra, Itália, Espanha. Sabedora disso, Sophia Andresen dialoga e surge na esteira de um caminho de experimentação artística inaugurada pelos órficos.
Ela revisita criativamente tanto Fernando Pessoa ele mesmo, quanto seus escritos. Através do recurso paródico, a poeta faz com que os intertextos históricos e literários sejam vistos como algo que está sendo reelaborado, afim de que nasça uma nova visão do “mundo” de maneira mais distanciada, e talvez por isso, mais crítica. Ao revisitá-lo, a autora não desejou minimizar o poeta referenciado. Na verdade, ela o escolheu, demarcando-o como importante para a História e para a literatura portuguesa, como alguém com o qual dialogar e ajudá-la a encontrar um termo conciliador perante uma realidade tão opressiva.
Quanto ao diálogo entre F. Pessoa em Sophia Andresen, Rosa Maria Martelo (2010, p. 37) declara que para a autora de O Nome das Coisas (1977) Fernando Pessoa parece representar uma referência fundamental, uma vez que, “[...] se por um lado, permite a Sophia subscrever uma certa tradição de modernidade, [...], por outro lado, também lhe permite acentuar a condição de dividido e a de poeta da distância e da ausência de real”, sendo que essas últimas características Sophia Andresen intenta superar. R. M. Martelo (2010, p. 39) reitera ainda que “Para Sophia, Fernando Pessoa representa, ao mesmo tempo, um pensamento e uma techné poética, uma inquestionável capacidade de rigor e arquitetura”. O que na escritura poética de Sophia pode ser identificado como um tributo do poeta que conseguiu alcançar aquilo que se espera de um texto poético bem conseguido: radicalidade, inovação, capacidade de se reinventar. É o clássico por excelência.


Sendo assim, Fernando Pessoa significou para Sophia Andresen (como para muitos outros escritores que com a obra dele tiveram contato) não somente um intertexto, mas um alguém com o qual dialogar e que através de sua História e poesia retira a poeta da sua zona de conforto, dos momentos de inteireza e plenitude, trazendo-a para um presente no qual a união com os deuses e as coisas não é passível de ser reestabelecida. Isso não significa que ela concorde sempre com ele, uma vez que ao parodiá-lo, a obra andreseniana alicerça-se na abertura do texto, vislumbrando-o como aberto a discussões, a questionamentos e a novas interpretações. 

Referências Bibliográficas:

ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Cíclades". In: ____. O Nome das Coisas. Lisboa: Moraes editores, 1977.
MARTELO, Rosa Maria. A forma informe: leituras de poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora, 2008.


Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada. Juntamente com Ana Dietrich é coordenador desse periódico. Ele é também doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa contemporânea.

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