Fernando Pessoa revisitado por Sophia Andresen: uma leitura de "Cíclades"
Muitas são as leituras
e leitores de Fernando Pessoa. No entanto, poucos são aqueles que conseguiram
compreender realmente o significado da poética desse autor português, ou ao
menos perto dessa significação se aproximaram. Dentre eles, podemos destacar
outros poetas que com ele dialogaram ao longo dos anos através de seus trabalhos, dando-lhe contornos novos, olhares distintos e mantendo-o cada vez
mais vivo.
Como exemplificação
dessa intertextualidade entre poetas mais “contemporâneos” e Fernando Pessoa,
procuraremos estabelecer uma ponte entre ele e Sophia de Mello Breyner
Andresen.
Sophia, poeta a lançar
seus escritos a partir de década de 40, possui um forte diálogo e embate com a
figura pessoana, lendo os poemas por ele escritos, buscando compreendê-los e,
sobretudo, valendo-se de muitos recursos que ele foi responsável por trazer e
sublimar na poesia portuguesa. No Livro O
Nome das Coisas (1977), Sophia Andresen evoca Fernando Pessoa, elaborando
um dos mais belos poemas de diálogo com este que, ao lado de Luís Vaz
de Camões, pode ser considerado um grande expoente da poesia em língua
portuguesa. Vejamos “Ciclades”:
Cíclades
(evocando Fernando Pessoa)
A claridade frontal do
lugar impõe-me a tua presença
O teu nome emerge como
se aqui
O negativo que foste de
ti se revelasse
Viveste no avesso
Viajante incessante do
inverso
Isento de ti próprio
Em Lisboa cenário da
vida
E eras o inquilino de
um quarto alugado por cima de uma leitaria
O empregado competente
de uma casa comercial
O frequentador irônico
delicado e cortês dos cafés da Baixa
O visionário discreto
dos cafés virados para o Tejo
(Onde ainda no mármore
das mesas
Buscamos o rastro frio
das tuas mãos
- O imperceptível
dedilhar das tuas mãos)
Esquartejado pelas
fúrias do não-vivido
À margem de ti dos
outros e da vida
Mantiveste em dia os
teus cadernos todos
Com meticulosa
exactidão desenhaste os mapas
Das múltiplas
navegações da tua ausência –
Aquilo que não foi nem
foste ficou dito
Como ilha surgida ao
barlavento
Com prumos sondas
astrolábios bússolas
Procedeste ao
levantamento do desterro
Nasceste depois
E alguém gastara em si
toda a verdade
O caminho da Índia já
fora descoberto
Dos deuses só restava o
incerto perpassar
No murmúrio e no cheiro
das paisagens
E tinhas muitos rostos
Para que não sendo
ninguém disseste tudo
Viajavas no avesso no
inverso no adverso
Porém obstinada eu
invoco – ó dividido –
O instante que te
unisse,
E celebro a tua
chegadas às ilhas onde jamais vieste
[...]
(ANDRESEN, 1977, p. 9 –
12)
Pela extensão do poema,
destacaremos somente algumas estrofes (aqueles que desejarem lê-lo na íntegra
acessem aqui),
nas quais podemos
notar como a poeta dialoga com a tradição histórica e literária portuguesa,
evocando a figura do homem e do artista que refletiu em si e em seus escritos a
crise identitária do sujeito na Modernidade:
O poema “Cíclades”
permite-nos fazer considerações em relação à memória de um sujeito em crise,
numa cultura também repleta de tensões, quanto à exaltação/construção da
memória da figura de Fernando Pessoa. No caso deste poeta modernista e moderno,
há o ultrapassar da portugalidade para se impor como um sujeito cuja crise ou
cisão assume uma dimensão universal.
Ressaltemos que este
poema de abertura da obra O Nome das
Coisas (1977) dialoga veementemente com a poética pessoana (Pessoa foi um
dos predecessores de Sophia Andresen) e se constitui também como uma homenagem
eivada da consciência angustiante da influência e do desejo de ultrapassagem. O
sujeito poético que chega a um grupo de ilhas gregas, localizadas no sul do Mar
Egeu, denominadas Cíclades, evoca Pessoa, “O instante que te unisse”. Ao mesmo
tempo, a memória apela para a descrição das condições em que o poeta vivia, os
lugares que frequentava, demonstrando que ele teve uma vida prosaica e comum, o
que não o impediu de ser um gênio artístico: “Em Lisboa cenário da vida/ E eras
o inquilino de um quarto alugado por cima de uma leitaria/ O empregado
competente de uma casa comercial/ O frequentador irônico delicado e cortês dos
cafés da Baixa/ O visionário discreto dos cafés virados para o Tejo”.
Na caracterização de Fernando
Pessoa, há o destaque de elementos de um alguém que se fecha ao mundo para
viver somente para e na Literatura, “Viveste no avesso/ Viajante incessante do
inverso”. Ele renunciou à vida em nome da escrita. Em fuga de um mundo
altamente fragmentado, o poeta de Orfeu ironicamente fragmenta a si próprio,
“Isento de ti próprio”, fechando-se aos acontecimentos exteriores. Rosa Maria
Martelo (2010, p. 37 – 38) declara que “o ‘inverso’ parece associar-se
directamente à ideia de um modo de ser em negativo, a uma não-vida”, como também
ressalta que “não será excessivo entender que ele é também aquele que viajaria
no in-verso, isto é, dentro do verso
e apenas aí – aquele que viaja exclusivamente no poema e, portanto, no avesso
de um mundo adverso”.
A Literatura foi o meio
escolhido e encontrado por Pessoa para dialogar com a vida de forma plural,
tornando externos seus pensamentos, através dela, ele “Viajavas no avesso no
inverso no adverso”. O mais interessante nisso é que grande e significativa
parte do que ele escreveu foi feito através de heterônimos, de maneira que ele
“E tinhas muitos rostos/ Para que não sendo ninguém disseste tudo”. A
soturnidade e mistério que rondaram a vida pessoana leva muitos a
questionarem-se se não era o próprio Fernando Pessoa um heterônomo.
Por fim, podemos
arrolar esse poema pessoano com o período histórico português, no qual Pessoa
viveu. Para tanto, é necessário relembrar que conforme Boaventura de Sousa
Santos (2008, p. 54),
A partir do
século XVII, Portugal entrou num longo período histórico dominado pela
repressão ideológica, a estagnação científica e o obscurantismo cultural. Um
período que teve a sua primeira (e longa) manifestação na Inquisição e a última
(assim esperamos) nos quase cinquenta anos de censura salazarista.
É nesse quadro sócio-histórico português que
surge a geração de Orpheu, ansiando pela renovação da vida artística portuguesa
que encontrava-se estagnada em comparação com outros países Europeus, como
França, Inglaterra, Itália, Espanha. Sabedora disso, Sophia Andresen dialoga e
surge na esteira de um caminho de experimentação artística inaugurada pelos
órficos.
Ela revisita
criativamente tanto Fernando Pessoa ele mesmo, quanto seus escritos. Através do
recurso paródico, a poeta faz com que os intertextos históricos e literários
sejam vistos como algo que está sendo reelaborado, afim de que nasça uma nova
visão do “mundo” de maneira mais distanciada, e talvez por isso, mais crítica.
Ao revisitá-lo, a autora não desejou minimizar o poeta referenciado. Na verdade,
ela o escolheu, demarcando-o como importante para a História e para a literatura
portuguesa, como alguém com o qual dialogar e ajudá-la a encontrar um termo
conciliador perante uma realidade tão opressiva.
Quanto ao diálogo entre
F. Pessoa em Sophia Andresen, Rosa Maria Martelo (2010, p. 37) declara que para
a autora de O Nome das Coisas (1977)
Fernando Pessoa parece representar uma referência fundamental, uma vez que,
“[...] se por um lado, permite a Sophia subscrever uma certa tradição de
modernidade, [...], por outro lado, também lhe permite acentuar a condição de
dividido e a de poeta da distância e da ausência de real”, sendo que essas
últimas características Sophia Andresen intenta superar. R. M. Martelo (2010,
p. 39) reitera ainda que “Para Sophia, Fernando Pessoa representa, ao mesmo
tempo, um pensamento e uma techné
poética, uma inquestionável capacidade de rigor e arquitetura”. O que na
escritura poética de Sophia pode ser identificado como um tributo do poeta que
conseguiu alcançar aquilo que se espera de um texto poético bem conseguido:
radicalidade, inovação, capacidade de se reinventar. É o clássico por
excelência.
Sendo assim, Fernando
Pessoa significou para Sophia Andresen (como para muitos outros escritores que
com a obra dele tiveram contato) não somente um intertexto, mas um alguém com o
qual dialogar e que através de sua História e poesia retira a poeta da sua zona
de conforto, dos momentos de inteireza e plenitude, trazendo-a para um presente
no qual a união com os deuses e as coisas não é passível de ser reestabelecida.
Isso não significa que ela concorde sempre com ele, uma vez que ao parodiá-lo,
a obra andreseniana alicerça-se na abertura do texto, vislumbrando-o como
aberto a discussões, a questionamentos e a novas interpretações.
Referências Bibliográficas:
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner. "Cíclades". In: ____. O
Nome das Coisas.
Lisboa: Moraes editores, 1977.
MARTELO,
Rosa Maria. A forma informe: leituras de
poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na
pós-modernidade. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
Rodrigo Corrêa Machado é colunista da ContemporARTES desde 2009, quando a revista foi criada. Juntamente com Ana Dietrich é coordenador desse periódico. Ele é também doutorando em Estudos de Literatura pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre em Letras pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e licenciado em Letras por esta mesma instituição. Seus interesses perpassem a Literatura em geral e, com ênfase especial na poesia portuguesa contemporânea.
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