Olhares...
Nas primeiras páginas da magistral obra O País das Neves (雪国=Yukiguni), o Nobel de
literatura de 1968, Yasunari Kawabata, descreve um universo de sensações,
devaneios e imagens (com melancolia e sensualidade ímpares), criando uma atmosfera
difícil de ser traduzida do japonês. Atmosfera cheia de signos que, para
aqueles que vivem no Japão, passa a ter significados quase imediatos, mesmo que
em um primeiro, segundo e até terceiro instante inicial, pareçam ser
inescrutáveis para os neófitos “gaikokujins”. Você até consegue compreendê-los,
mas nunca decodificá-los de maneira inconsciente, natural, a não ser que você
seja japonês e olhe lá...rsss
No início do romance, o autor descreve um momento de
olhar/devaneio entre um dos principais personagens (Shimamura) e uma bela jovem
(Komako), a qual mostrar-se-á uma das principais personagens da trama. O que me
chamou a atenção, desde a primeira vez em que li a obra em português -
traduzida do francês - e a reli depois -
agora traduzida diretamente do japonês pela professora e tradutora Neide Hissae
Nagae – foi a necessidade de tentar compreender não apenas as ocorrências
relatadas, mas o significado simbólico do(s) olha(res) naquele contexto, como
também no próprio cotidiano nipônico. “Olhar”, diga-se de passagem, sempre
indireto, literalmente furtivo.
Aqui um trecho, para lhe dar um
“gostinho”, caro leitor, do universo narrativo de Kawabata:
“Quanto mais se afobava em
resgatar com clareza a lembrança dela, mais se perdia em meio à falta de confiança
na memória escorregadia e fugidia. Somente esse dedo ainda parecia umedecido
pela sensação de tocar a mulher, atraindo-o para junto dela num lugar tão
distante aproximou o dedo do nariz, cheirou-o e depois o passou na janela
embaçada. Um olho de mulher apareceu nítido e claro à sua frente. Ele se
assustou e quase gritou, mas isso porque seu pensamento estava longe. Ao cair
em si, viu que aquilo era apenas o reflexo da mulher que estava do outro lado.
Lá fora, a noite caía, e o interior do trem estava iluminado. Com isso,
formara-se um espelho na janela, que, embaçado pelo vapor do aquecedor, não
existira até que ele limpasse o vidro com o dedo.”
E um pouco
mais adiante:
“A moça estava na diagonal, de
frente para Shimamura, e assim ele até poderia olhá-la diretamente.
Quando embarcaram no trem, ele ficara surpreso com a beleza da moça, que
parecia invadi-lo com um suave frescor, mas baixou os olhos e viu a mão pálida
do homem segurar firme a dela, e teve a impressão de que não deveria olhar mais
na direção dos dois.”
Entre
as várias imagens/sensações produzidas pela narrativa de Kawabata, lembro-me do
primeiro instante que me “incomodou”. Trata-se do trecho em negrito acima. Essa
possibilidade do olhar não realizado, mas comprometido, me fascinou...
Vivendo
no Japão e observando o modus operandi do olhar nipônico, passei a
compreender (será?) um pouquinho mais o
que autor descreveu nos trechos acima.
A
título de comparação, na Terra Brasilis a ação do(s) olhar(es) é mais
direta: seja na rua, no restaurante, no supermercado ou no trem, olhamos mesmo,
por curiosidade, por surpresa ou por explícita atração. Uns mais direta, outros
mais acanhadamente. Aqui no Japão isso não chega a ser “impossível”, pois
algumas pessoas dirigem, sim, o olhar para você também, mas é raridade... Como
já disse, aqui existem outros signos sociais difíceis de compreender e, na
minha experiência, impossíveis de incorporar – dá apenas para percebê-los e,
diante deles, se deleitar ou estranhar. E o interior dos trens - que tão
magistralmente Kawabata nos apresenta - e dos ônibus, par excellence,
são maravilhosos para vivenciar isso.
Geralmente cheia, quando não
lotada, a rede ferroviário-metroviária japonesa é famosa não só por sua
modernidade, limpeza e pontualidade, mas também pelo assédio sofrido por
mulheres (fato recorrente nos trens e metrôs brasileiros também...), praticados
por voyeurs, chamados de Chikan
(痴漢),
literalmente “tarados do metrô”. Existem vagões para uso exclusivo de mulheres
na hora do rush. Eu mesmo já entrei em um por engano e só percebi isso
uns vinte minutos depois, quando minha esposa começou a rir - e eu olhei ao meu
redor e só havia mulheres... Felizmente, não houve maiores consequências.
Nos trens apinhados ou mesmo vazios, as pessoas evitam o
contato direto dos olhares, muitos dormem, leem ou mergulham no universo
autista de seus “esperto-fones”. Mas há aqueles japoneses que se aventuram no
universo dos olhares furtivos, usando o reflexo dos vidros. E ai está a minha eureca!
com o trecho citado no início da coluna: os olhares através dos reflexos nos
vidros dos transportes públicos (até dos espelhos!). Observar sem ser
observado, nem mesmo percebido... Maneira segura de exercitar a arte do olhar,
do espiar ou do flertar. Sim, os japoneses (homens e
mulheres) se entreolham indiretamente. Alguns fingem uma cochilada e dão aquela
espiadinha de olhos semicerrados ao seu redor ou em algum alvo preferido - por
exemplo: estrangeiros e japoneses de
meia-idade entreolhando jovens garotas com roupa “um pouco” mais curtas ou
estudantes secundárias, grande objeto de fetiche nipônico. Perguntei sobre esse
comportamento - evitar o olhar escancarado - para os meus alunos e alguns
colegas de trabalho, e muitos disseram que desde crianças foram condicionados a
“não olhar diretamente”, e essa contemplação velada terminou se tornando algo
muito natural para eles. Mirar sem sutileza: atitude desrespeitosa e invasiva.
Alguns disseram se sentir muuuuuito incomodados/envergonhados com um olhar mais
“despudorado”, mesmo que de relance. Portanto, “olhos nos olhos”, por aqui, é
um ato de extrema rudeza.
Já
havia lido e ouvido falar sobre isso antes de aqui chegar, mas não conhecia a
amplitude dessa interdição social, no qual o “não visto não dito” tem muito
mais significado do que a nossa “cara dura” ocidental. Tenho de confessar que,
inicialmente, essa sensação de ser olhado sem poder olhar me incomodava; com o
tempo, a sensação de estranhamento deu lugar a de contra-observador
privilegiado.
Do
universo descrito por Kawabata, em fins dos anos de 1930 até a realidade dos
trens/metrôs de hoje, talvez os japoneses, interiormente,” tenham mudado bem
pouco no quesito “olhar”... Ou será que estou errado?
Para terminar, mais um pouquinho
dos olhares sutis e complexos de Kawabata:
“No fundo do espelho, corria a
paisagem do entardecer, isto é, o que se via através do vidro e o que se
refletia no espelho moviam-se como imagens sobrepostas de um filme. Os
personagens e o cenário não tinham nenhuma relação entre si. Além disso, sendo
eles de uma fugacidade translúcida, e a paisagem de uma fluidez vaga de cair de
tarde, a fusão de ambos desenhava um mundo simbólico. Particularmente, quando
os últimos raios de sol da mata iluminaram em cheio o rosto da moça, Shimamura
chegou a sentir o coração palpitar diante daquela beleza inexprimível.”
Um
ótimo fim de ano a todos! Feliz 2014!
また今度!! Até a próxima, em fevereiro!
Todas as imagens
publicadas na coluna possuem direitos autorais:
Copyright ©2013AkitiDezem
Fontes:
O Pais das neves, Yasunari
Kawabata. (trad. Neide Hissae Nagae). São Paulo; Estacão Liberdade, 2004. p.
160.
Sobre os Chikan:
http://kumagumi.com/warning-sign/chikan-metro/
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,privilegio-a-custa-de-assedio,789245,0.htm
http://www.ipcdigital.com/br/Noticias/Japao/Presos-mais-de-40-homens-por-assedio-sexual-nos-trens_17052010
Rogerio Akiti Dezem é professor visitante de língua portuguesa e cultura brasileira da Universidade de Osaka, no Japão. Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Matizes do Amarelo - A gênese dos discursos sobre os orientais no
3 comentários:
Grande Rogério, inspirado como sempre! Belo texto, descrevendo com sensibilidade essas diferenças culturais todas... De fato, acho que o Japão é, como nenhum outro, o país da sutileza; nas cidades grandes, também por vezes nos deparamos com o contrário disso: a crueza total, como no caso dos "tarados dos metrôs"; é um país sem meios-termos, eu diria... E os trechos do Kawabata são um presente à parte... Um abração saudoso, um excelente fim de ano e maravilhoso 2014!!!
18 de dezembro de 2013 às 09:16Rogerio, toda essa sinestesia me levou às cenas descritas. E certamente me ajudou a refletir e tentar entender melhor a maneira de se comunicar de nossos alunos orientais, alguns já terceira geração no Brasil, mas ainda carregando essa forte marca cultural. Difíceis, mas lindas diferenças. Ficarei aguardando o próximo trem, em fevereiro. Feliz fim de ano a vocês!
18 de dezembro de 2013 às 11:50Eloisa Galesso
Mais um artigo inspirado e inspirador....bom ver o Japão pelos olhos de Roger,
18 de dezembro de 2013 às 20:21beijos
feliz Natal querido amigo,
adri
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