Hegel, Williams e João Antônio
O Sistema Hegeliano, principalmente quanto às colocações
postas em Preleções sobre e Estética, somado às contribuições de outros
pós-katianos, como Fichte em Conceito da Doutrina-da-ciência, e
Schopenhauer com Sobre a Escrita e o Estilo, prestou (e ainda presta)
grandes contribuições para a Crítica, a Teoria e a Produção de arte em geral. No capítulo IV do Volume I, Plano Geral da Estética,
logo em princípio, Hegel trata da “arte como uma emanação da ideia absoluta”,
entenda-se por ideia absoluta o que foi trabalhado por Kant, dizendo sobre a
“representação sensível do belo”. Devemos relembrar que o sensível está aqui
anunciado como passível de ser sentido, aberto ao campo dos sentidos, e o belo
não se resume à beleza-comum, mas ao sublime e elevado.
A Arte tem por função conciliar a ideia (os costumes, as
ideologias, o social, o cultural e etc) e a representação sensível (pela
pintura, música, literatura, escultura e etc). O Conteúdo, sendo nutrido pelo
Espírito de seu tempo, pede que haja uma nova Forma para representa-lo, sendo
essa mais adequada ao material que se deve representar. Para o filósofo alemão,
o desencontro entre Forma e Conteúdo, o não estabelecimento do processo
dialógico e interdependendo em que sem a Forma o Conteúdo não se objetiva e sem
o Conteúdo a Forma não é necessária, levaria a obra ao caos e ao fracasso
enquanto Arte.
Sendo assim, toda mudança de conteúdo ocasionaria uma
mudança na forma e, estando o Espírito do Tempo em constante alteração, o
conteúdo se renovaria continuamente reforçando e reformulando a necessidade de
uma nomeada forma. No entanto, a ideia de Hegel sobre a representação, ou seja, o
processo mimético da Arte com relação ao Real, encara a atividade do artista enquanto um espelho, estando
fadada ao erro se afastada, em Forma e Conteúdo, da sua Realidade
“mantenedora”.
Levantadas estas considerações sobre a Estética
Hegeliana, devemos buscar o que viria a ser, de certa forma, uma continuação
“moderna” e repensada desse sistema. Nas palavras de Maria Elisa
Cevasco, em seu Prefácio à Edição Brasileira da coletânea Política do
Modernismo:
“[...] a partir da aceleração do processo de
industrialização no final do século XVIII, foi-se criando um modo de pensar a
cultura que a contrapunha à sociedade, considerando a primeira como um espaço
autônomo composto, nas palavras de um dos pensadores centrais dessa tradição,
Matthew Arnold, de “doçura e luz”, um refúgio espiritual a salvo dos conflitos
da vida real”.
Esta visão,
se tornaria preponderante e definiria toda a tradição ocidental do pensamento
sobre cultura. Em meado só século XX, seria rompida drasticamente por Raymond
Williams.
Produto de seu tempo, o estudioso bolsista de Cambridge
construirá uma tradição oposta, onde, segundo Cevasco, “a produção cultural é
fundamental na reprodução da sociedade e está profundamente imbricada em seus
conflitos e lutas, cujas marcas moldam a própria estruturação dos modos de dar
sentido à vida, sejam eles obras de elaboração artística densa ou tipos de
organização e instituições sociais”. Como podemos observar, não se fala mais em
representação, mas sim em reprodução da realidade social (Espaço-temporal) que
circunda e perpassa o sujeito-artista. Como exemplo, o aparecimento da Arte
Efêmera em nossa época que, segundo Ferreira Gullar, contradiz o que de mais
permanente o homem criou, e “não propõe nada”, ou se propõe a não propor,
“apenas adota, como fundamento ideológico, o carácter efêmero que o consumismo
impôs à sociedade atual”. Que outro tipo de arte poderia surgir de uma época
onde nada mais é feito para durar? Se a arte segue o Espírito de seu Tempo e é
nutrida pela sociedade que a “produz”, nada mais seguro que apontar as causas
da Arte “Passageira”.
Em O campo e a Cidade, Williams demonstra, de
maneira mais clara e direta, que “a Literatura não só reproduz os sentidos
criados socialmente mas que também os produz contribuindo para moldá-los”.
Dessa forma, a Literatura translitera o real, traduz de forma a recriar e
remodelar a própria sociedade, sendo produto e produtora da realidade social.
Afim de elucidar melhor a recriação em contra-senso da
representação, faremos uso do conto de João Antônio, Televisão, publicado em 2011 no livro Abraçado ao meu rancor.
Na hi(e)stória, Jacarandá, um trabalhador rural da Agricultura Familiar, tipo
muito comum na sociedade brasileira (principalmente depois do selo criado pelo
Ministério do Desenvolvimento Agrário para incentivo às cooperativas
agricultores rurais) tem se visto no embate do que cultivar. Saia de casa todos
os dias banhado, de roupas limpas, sapato engraxado e tomava o rumo da
Maio / 2011 |
Cidade
com o objetivo de conseguir financiamento para começar o plantio que, neste ano
em particular, não seria de arroz, milho, trigo ou feijão (as culturas
alimentares não têm dado assim tanto dinheiro com o aumento das pesquisas em
biocombustível) a soja é o produto da vez: cultiva-se, faz-se a colheita,
vende-se para as esmagadoras, que vendem para as usinas, que vendem para o
povo, que compram de todo mundo. Dessa vez seria Menta, não outra coisa, seria
menta.
Após inúmeras tentativas sem exito, de Banco à Banco e de
Humilhação à Humilhação, constata Jacarandá, “entre arrepiado e estarrecido,
que vivia numa época em que os bancos só emprestavam dinheiro para quem já
tinha de sobra”. E não poderia ser diferente, pois aqui está o Inferno dos
Devedores e o Paraíso dos Investidores, o Brasil é o pais que possui a maior
taxa de Juro Real do mundo, mas o nosso pobre herói não sabe disso. “Quem não
divide sofre em dobro”, alerta o narrador quanto ao silêncio do protagonista
que, envergonhado com a situação, não "divide" nada com a família.
Tomado pela psicose que assola a sua época, Jacarandá
comia pouco e dormia ainda menos. Quem dera se antes fosse um tal casmurro Dom
que, gastando o tempo em horta, jardinagem e leitura, comia
bem e não dormia mal.
Não era este o caso. Vivia os dias que o Estresse elegeu. Retornado para casa, depois de muita luta e
derrota e fracasso, olha o nosso herói para a tela da tevê. O que a caixa mostra
é a virtualidade, o ideal da propagando, o programa que programa quem o deixa
programar. Quem o haveria de não deixar? Em meio a tanta realidade, a tanta
velocidade, a tanto fim e começo, quem nesse mundo haveria de ser homem no
mundo? Jacarandá não tinha escolha, era porque tinha de ser e pronto.
As estradas da tela não tinham
barro, nem buracos. Os automóveis eram sempre novos e sempre eram para toda a
gente. Aviões brilhavam cortando os ares, as locomotivas dos trens eram
moderníssimas, potentes, rápidas. Nada disso era parte da "realidade-real",
vivida e sentida no barbear de todas as manhãs para mais um dia de frustrações.
No entanto, diz o narrador, “uma maravilha, em especial, o encafifava”.
Todos os gerentes de bancos prometiam
facilidade, jovens, bem vestidos e melhor falantes, bons cidadãos em dia com o
imposto de renda, e insistiam em esclarecer que os estabelecimentos bancários
eram uma espécie de segundo lar. Estendiam sua proteção a todas as criaturas desvalidas.
Estafado, preso entre a realidade
sentida e a realidade assistida, “Jacarandá sacou seu 38 e disparou bem no meio
da cara do gerente”. O funcionário ilustre do banco não morreu, porque não era Real, mas o nosso herói, além de buscar
dinheiro para a lavoura, agora vai precisar de uma televisão nova.
O conto de
João Antônio exemplificada, magnificamente bem, o que começamos por explicar em
Hegel e terminamos por dizer em Williams. A cibercultura, a cultura do efêmero,
a sociedade em rede, o fenômeno capitalista, a situação do Agricultor Familiar,
a situação financeira e as taxas no Brasil, tudo o que envolve o contexto de
uma época que, por sorte ou azar, é a nossa, está recriado, transliterado e
objetivado em forma de conto pelo sujeito que experiencia esse meio. A arte é
um processo contínuo onde se cria e recria para se produzir e reproduzir
continuamente. A sociedade e a obra de arte, reciproca e concomitantemente, são
matérias primas e produtos de si.
Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que seja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonos. Gradua-se (ou Graduam-no) na Faculdade de Letras e Artes (mais uma que outra) da Universidade Federal de Viçosa. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Ocultismo em Fernando Pessoa – Ele Mesmo) e LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais)
1 comentários:
Interessante observar um amadurecimento intelectual. A intencionalidade do pensamento deixa entrever certo atrevimento estimulante, atualmente em falta no "mercado" acadêmico. As postulações hegelianas relativas ao fim da arte, calcadas na predominância do conceito ao longo da sociedade moderna, encontrou nas vanguardas europeias uma resposta perigosa, mas contundente ao fim da arte em sua relação com o real. A mímesis deixa agora de ser concebida como imitatio, equívoca tradução latina... Enfim, texto interessante pelo que contém de arroubo intelectual. Caso não conheçam, indico, sobre esta questão, dois importantes trabalhos teóricos:
4 de janeiro de 2014 às 12:20BLUMENBERG, Hans. "Imitação da natureza": contribuição à pré-história do homem criador. In: Mímesis e a reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, pp. 87 - 135.
COSTA LIMA, Luiz, Trilogia do controle. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007.
Resenha da "Trilogia" por Emílio Maciel, professor do Departamento de Letras da UFOP:
http://periodicos.uesb.br/index.php/floema/article/viewFile/445/478
Boa sorte!
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