domingo, 9 de fevereiro de 2014

Volta da Contemporartes com Cérebro eletrônico

Prezados leitores,

Voltamos a 2014, ano da tão esperada Copa, com novidades e muito debate, crítica e produção cultural.
Em fevereiro, vocês vão conhecer duas novas colunistas, uma que irá escrever sobre Gênero, a Profa. Miriam Adelman, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal do Paraná e a especialista em arte e museologia Solange Chemin, ambas convidadas pela Izabel Liviski, da Incontros, que também estreia em 2014 como coordenadora da revista ao meu lado e do Rodrigo...
Abaixo, as suas colunas testes, publicadas em dezembro de 2013 para quem deseja conhecer o belo trabalho dessas novas contemporartistas!





Sejam bem vindos a nosso cantinho artístico e hoje convido uma interessante reflexão feita por alunos da UFABC sobre o Disco Cérebro Eletrônico de Gilberto Gil (1969), sob a perspectiva dos estudos de Ciência, Tecnologia e Sociedade, disciplina que ministro na mesma universidade. Espero que apreciem.




Gil e a Guerra Fria
Música Cultura e Civilização, Gilberto Gil, 1969


O contexto do disco de Gilberto Gil é fundamental para seu entendimento. 1969 se localiza entre os turbulentos anos de 1960 e 1970, anos de utopia e barbárie, nos termos do documentarista Silvio Tendler. Este período na história do Brasil é fortemente influenciado pela política dos anos 1950. Nas palavras de Regina Lúcia de Moraes Morel (Ciência e Estado; Ciência Subdesenvolvida – p. 77-78):

“O padrão de industrialização inaugurado nos anos 50, com predomínio de empresas produtoras de bens de consumos duráveis, favoreceu a penetração das empresas transnacionais, que buscavam novos mercados para seus investimentos.[...]Após este período, vai se concentrar em bens de consumo duráveis e de bens de capital.

Na virada para a década de 70, o Brasil se mostrava politicamente instável. Os governos militares, aquém das contestações, continuavam com o favorecimento às empresas estrangeiras, gerando dependência tecnológica, balança comercial desfavorável e dívida externa. Nos termos de Morel:

No Brasil, as décadas de 60 e 70 viram consolidar o padrão de desenvolvimento industrial inaugurado na década de 50.[...]Esta expansão se verifica nos marcos de relação Centro-Periferia, na medida em que grande número de divisas flui para o exterior e o país mantém o caráter de produtor de produtos primários para exportação.

E assim, gradativamente, a dependência em relação a países desenvolvidos foi se tornando estrutural e cada vez mais complexa no Brasil, culminando na dominação da própria expressão cultural. Surge, então, a cultura de massa como hoje se conhece, com o advento da televisão e o começo do império da publicidade nos meios de comunicação. Os produtos cultuados com a cultura de massa eram, justamente, os novos bens de consumo produzidos por multinacionais, consolidando, mais ainda, a dependência nacional.”

Gilberto Gil entendeu perfeitamente este processo e o expressou em seu disco de 1969. Na faixa 2001, um verso enuncia:

“Sou baiano e estrangeiro”

Ou seja, em dois momentos distintos, 1969 e atualmente, ser um cidadão baiano e brasileiro é ser, indissoluvelmente, um pouco estrangeiro; antes pela influência estrangeira em todos os campos da vida comum, agora pela própria globalização, que parecia ser prevista. Além disso, na faixa Objeto Semi-Identificado, Gil já parece reagir a este momento:

- “A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento, dica, pala, informação.”

De forma que, impotente perante a influência estrangeira em todos os meios do desenvolvimento nacional, o compositor se protege culturalmente, não se deixando dominar, mas usufruindo dos benefícios que podem trazer a cultura e a civilização “oficiais” . Este movimento foi fundamental para o movimento tropicalista e, anteriormente, para o movimento modernista, saltos históricos nos padrões da arte nacional.

Ainda acerca do contexto político envolvendo o disco de Gil, na obra Capitalismo, prosperidade e bem estar social, Enrique Padrós expõe um cenário realista acerca das pretensões americanas no Brasil:

“Os EUA, fiadores da ordem ocidental, desenvolveram três orientações que pautaram a reconstrução: 1- Organizar a economia capitalista em volta da sua liderança e interesses; 2- Abrir os impérios coloniais e as metrópoles europeias aos seus investimentos e comércio; 3- Derrotar a onda anticapitalista (na Europa, no Extremo Oriente e, depois, na América Latina e África)”

O territorialismo americano definitivamente é uma das influências no disco de Gil: musicalmente, as guitarras e os teclados; liricamente, a logopeia e a cultura brasileira reafirmada; pontualmente, o fato deste ser um disco de despedida de Gilberto Gil do Brasil antes de seu exílio na Inglaterra (O exílio foi causado, justamente, por uma ditadura militar apoiada abertamente pelo governo americano, como evidencio Padrós no parágrafo acima). Em suma, Gil fez uma síntese política do seu tempo e se posicionou de forma recalcitrante contra qualquer forma de aculturação forçada. Em Cultura e Civilização, assim:

“A cultura
a civilização
elas que se danem
ou não

Eu gosto mesmo
é de comer com coentro
eu gosto mesmo é de ficar por dentro”

Com coragem, o compositor baiano reafirma sua cultura perante o imperialista estrangeiro e renega qualquer forma de apropriação cultural: a “canalização e transferência” monetária aos países centrais poderia acontecer (nos termos de Padrós), pois o governo apoiava tal prática; a cultura nacional ficaria bem, contudo, em seu devido lugar.

Em outro ponto bem distinto, mas seguindo ainda o texto do sociólogo Enrique Padrós, nota-se que o fenômeno do Tropicalismo se deu, em suas raízes, em um grupo de artistas baianos. Não é coincidência tal fato, afinal, a UFBA era a mais desenvolvida universidade do país nas décadas de 1950 e 1960; isso aconteceu graças ao cosmopolitismo de sua administração no período. O desenvolvimento universitário no período era:

“[...]objeto de pressão política, inclusive no Terceiro Mundo. O papel da educação na politização das massas secundaristas e universitárias foi evidente. Gerações mais conscientes e críticas surgiram deste processo.[...] Exigia-se o arejamento no mundo acadêmico.”

É válido notar que o Maio de 68 francês foi um mais relevantes acontecimentos do período, um fenômeno intrinsecamente estudantil. Desta forma, do contato entre as bases teóricas mais em voga no período e uma experiência viva na cultura nacional proporcionaram uma visão privilegiada a Gil, Caetano, Tom Zé e companhia para decifrar os meandros das décadas de 60 e 70.

Novamente sobre o álbum de Gilberto Gil: Uma das temáticas do disco é a tecnologia e suas relações com o ser humano e, principalmente, com o cidadão do país periférico. A tecnologia foi considerada por Gil como um dos eixos essenciais deste período, pois aquele era um momento em que o capital científico institucionalizado ganhava papel central, graças à territorialidade exigida na Guerra Fria. Sobre tal capital científico, Pierre Bourdieu em Os Usos Sociais da Ciência, diz:

“[...] Está ligado à ocupação de posições importantes nas instituições científicas, direção de laboratórios ou departamentos [...] e o poder sobre os meios de produção e reprodução (poder de nomear).”

Assim, em um momento onde o avanço tecnológico significava, além de progresso científico, uma forma de dominação, Gilberto Gil tem a capacidade de escrever músicas como Futurível, Cérebro Eletrônico, 2001 e A Voz do Vivo onde todo o avanço científico é relativizado em função dos efeitos que pode ele mesmo causar, incluindo temas recorrentes nas pautas dos dias atuais: neurociência, robótica e a perda da importância do homem em função do crescimento da influência técnica.

Carlos V. de Golveia, 
Gabriel Tosini,
Bruno Caetano,
Ricardo F. Primo,
Renan G. Magalhães,
Rafael Esteves
discentes UFABC/ 
Bacharelado de Ciências e Humanidades


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