terça-feira, 4 de março de 2014

Mal me quis, mas a barra de nordeste bem me queres


 A parceira que tem somado na caminhada, a Lívia Marcelino (autora da matéria Literatura e Resistência) foi de Maceió até João Pessoa de bicicleta, registrando e aprofundando suas análises acerca de obras literárias nacionais. As vezes ela me ligava e, mesmo com ruídos dos ventos no aparelho, seus relatos me encantaram. Convidei-a para quando chegasse escrevesse as experiências vivenciadas e as referências literárias que permearam sua viagem pelo nordeste deste Brasil. Ela chegou! Antes de passar a palavra para ela, recomendo este vídeo com retratos do povo nordestino e o som do acordeon do grande Dominguinhos:


Música: Lá no Suzano - Carlos Malta e Pife Muderno 
Fotos: Carlos Cajuela. 

Música: Fuga para o nordeste
Dominguinhos


Litoral de Pernambuco


O mar se estende pela terra
em ondas ondas que se revezam
e se vão desdobrando até
ondas secas de outras marés:


as da areia, que mais adiante
se vão desdobrando nos mangues,
que se desdobram (quase palha)
num capim lucas, de limalha,


que se desdobra em canaviais,
desdobrados sempre em outros mais,
e desdobrando ainda mais longe
o campo raso do horizonte,


como se tudo fosse o mar
em mais ondas a desdobrar
a mesma natureza rente
de um verde ácido e higiene:


tudo debaixo do papel alumínio
de um sol de cima nordestino
sem que nada, ou coisa interponha
o domingo de alguma sombra,


tudo sob um céu mineral
que preside em pedra imparcial,
que devassa tudo ali:
mesmo os grotões de onde parir.
J.C.M.N


Apoiada nos versos do poeta nordestino João Cabral de Melo Neto o poema traz elementos da natureza física da região de Pernambuco, começa pelo litoral que se desdobra em mangues desdobrando-se em cana que se desdobra no sertão interino “debaixo do papel alumínio” deste nordeste de Brasil.

Região primeira a receber os povos além-mar, desequilibrantes das gentes, espalharam-se na região como um câncer, adubadores de securas e misérias, primeira, a ser desmatada para a racionalidade aplicada do branco corrosivo do açúcar, viu seu clima ser modificado por este componente econômico quase cego as consequências degeneradoras dos solos e do povo. O desenho da paisagem permanece até hoje em sua costa, herança das mãos do homem transformador da natureza com a entrada das sementes de coco, manga e jaca, oriundas do oriente, e integradas em terra gorda nordestina (massapê) como se fossem plantas nativas e tão necessárias para a alimentação humana até os dias de hoje.

Ao trazer a cana para as terras de Santa Cruz, os portugueses a cultivaram com esmero, planta chamada individualista, pois devasta e esgota o solo com sua hostilidade por vezes mórbida a outras espécies, e até mesmo transformando os rios, pois, com o desflorestamento de suas margens o rio engole terra, matando a fauna e flora de seu percurso, alargando-o até morrer por afogamento de terra, ou por engasgamento de caldeira de cana. E para que esta cultura vingasse foi necessária à morte de toda mata em uma faixa gigantesca do litoral. O fogo, a queima desastrosa, densa de morte e de vida. Ali onde o fogo fagulhava, lambia a morada de veados, porco-selvagens, coelhos e antas, pacas e tatus varridos pelas coivaras tão utilizadas na devastação. Toda a fonte de caça queimada, churrasco carvão, ou intoxicadas pela fumaça de morte desmaiando em meio ás brumas de chama vermelha.


Planta que se processa num regime de autofagia, pois devorou e devora tudo que esta em sua volta, desde o humo do solo, as espécies nativas, e até mesmo o próprio homem, principal agente, onde sua cultura tira toda a vida de dezenas de gerações. Devoradora do homem e da natureza a cana se alastrou por quase quinhentos anos:


A cana pegou Pernambuco pela Mão
E assim vou cantando a canção que ninguém vê
do povo bagaço que sobra sobrevivo
caminhando mais não indo
seus caminhos, destino, farpas desalinhos


Do povo bagaço das covas entregar-se
a vida ao engenho que ali morasse


E a cana oceânica despernambuca
queimada na força dos ventos
afoga os pés descalços e a luta
da morte em fiapos pedrenta
no dia a dia o açoite
de mesma dor calada
de milho ou macaxeira


Sorri sem nem saber
que em outros cantos não há
vida que sua sangue
bastante para germinar
LÍVIA MARCELINO


A tríade do sangue: monocultura, latifúndio e trabalho escravo africano, tão necessário aos desmandos desta plantação, veio trazer os inícios da mistura de tradições antes não conhecidas para a feitura desta nossa cultura.

O negro africano trouxe consigo nos porões sombrios dos navios seus hábitos, como um povo de hábito agrícola, trouxe a policultura para manchar o monótono tapete verde de cana, um pouco aqui outro acolá. Introduziu na culinária o azeite de dendê (muito rico em vitamina A), retirado de palmeira de origem africana, pimentas de todos os tipos, muito utilizadas na culinária de todo nordeste, mais especificamente nos manjares baianos.

Na época colonial havia restrições para o plantio de outras culturas, oriundas da colônia portuguesa, através de Carta Régias, as quais eram postas em prática, a base do ferro da autoridade ilimitada do senhor de engenho, e do fogo ardente do chicote nas costas do negro que se aventurava a arar seu roçado às escuras. Senhores que não podiam imaginar suas terras cultivadas de outro alimento que não fosse á cana dos olhos de ouro. Restava o cultivo da macaxeira, planta que nasce em qualquer lugar sem demandas e tampouco cuidados especiais, consumia-se também o milho o feijão e o Charque. Esta era a base alimentar do povo nordestino. E arrastou-se pelos séculos a fio transformando o ‘Mordeste’ em uma das zonas mais subalimentadas de todo o país. O consumo de leite e seus derivados, frutas e verduras é quase inexistente na época colonial, quando havia possibilidades do consumo das frutas ou verduras, não havia demanda, pois para eles comida mesmo era farinha, feijão e carne.  Pensamento construído como barreira psicológica ao consumo de tais alimentos, anedotas da parte do senhor de engenho que afirmava como nos trás o geografo da fome Josué de Castro “fazendo crer aos negros escravos, e depois aos moradores de suas terras, que não se deve misturar nenhuma fruta com álcool, que melancia comida no mato logo depois de colhida da febre, que manga com leite é veneno, que laranja só deve ser comida de manhãzinha, que fruta pouco madura dá cólica, que cana verde dá corrimento, os senhores e os patrões diminuíram ao extremo as possibilidades de que os pobres se aventurassem a tocar nas suas frutas egoisticamente poupadas para seu exclusivo regalo”.


Havia ali encrostada nos dentes de todo o nordeste açucareiro, cáries da fome crônica, assolando milhares e milhares de esfomeados, com deficiências patentes de proteínas, avitaminoses de todos os tipos. Desta alimentação precária resultam graves percalços.   A mortalidade infantil por desnutrição atinge níveis elevadíssimos, mães enterrando 12, 13, 15 filhos durante a vida, as lágrimas destas mães nunca aparecem em estatísticas, pois não haveria número suficiente para demostrar tal força de enxurrada, crianças mortas pela fome que planta a cana, que mais tarde plantou o cacau, que plantou o algodão que plantará ?
A insuficiência calórica, de pobreza energética manifesta em crescimento lento, e em produtividade reduzida do trabalho, é comum ver meninos de 15 anos com aparência de 10, pequenos e subnutridos:



Cemitério Pernambucano


Para que todo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?


A morte nesta região
                                                                                                                       gera os mesmos cadáveres?
Já não os gera de caliça?
Terão alguma umidade?


Para que a alta defesa,
alta quase para os pássaros,
e as grades de tanto ferro,
tanto ferro nos cadeados?


- Deve ser a sementeira
o defendido hectare
onde se guardam as cinzas
para o tempo de semear



E se somos Severinos
iguais em tudo na vida
morreremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
J.C.M.N


A negra Mariana


Manca, zarolha de esmolar vivia
e era tão feia a negra Mariana
que a molecagem a zombar dizia:
- nasceu um bicho nessa raça humana


Causava pena sua triste sorte,
ninguém queria aquela pobre ver,
para tal sofrimento só a morte
poderia acabar seu padecer


Em qualquer porta quando ela batia
só parecia um infernal capricho,
como resposta a Mariana ouvia,
tu não és gente, vai-te embora bicho


Sobre a sarjeta que a miséria encerra
terminou ela seu sofrer sem par
e hoje vive no céu quem nesta terra
morreu de fome sem ninguém ligar
PATATIVA DO ASSARÉ


O homem nordestino da beira de praia, sofre menos impactos com a falta de proteínas, pois tem em seu favor a linha mais reta do horizonte que separa o azul do azul: o mar. E da lama fertilizadora dos manguezais, que engravidam das águas do mar todo dia, onde moram as raízes aéreas que respiram acontecimentos decepados no tempo espaço de cheia fêmea. Arranca sua subsistência, dando o de comer a sua prole, um tanto mais sadia.  Homens que passam a maior parte do tempo em alto mar, profundos conhecedores das águas lunares, saem em busca de sua presa, para o dia ser mais dia e não voltar de mãos vazias: o pescador tem dois amores, um bem na terra um bem no mar, como cantou Dorival Caymmi.  


Mesmo com todos estes desmandos da vida, e necessidades sofridas, migrações de todo tipo, dos ciclos, da borracha, de Brasília, da necessidade dos braços ao trabalho no centro- sul, retirantes da seca, que olham a terra ardendo, que chora a asa branca, que perde os filhos as pencas, ainda sorri e há uma alegria incomparável desta mulher e deste  homem  nordestino, a qualquer outra região brasileira, povo quente, alegre, festivo de brilho, na dança da sanfona, balança as cadeiras cansadas do trabalho, mas não entrega ao sono sua vida, balança na ginga de seus passos de chinela de couro, das redes de nordestes bem me queres, de contenteza garantida à brisa na varanda depois que o sol se esconde. Esta gente tão sofrida sorri se doa, no humor dos mais belos, que quando chega não se pode sair de perto.


Sou Nordestino


Meu Nordeste terra amada
terra da mulher rendeira
do coco, da embolada
e da velha benzedeira
nesta terra idolatrada
quero ainda vida inteira


Refrão
Por ordem celeste
eu sou do Nordeste
sou cabra da peste
de tudo aqui tem,
canta o violeiro,
abóia o vaqueiro
e o bom sanfoneiro
toca o xem nhem nhem


Não há coisa mais bonita
do que se ouvir no Sertão
o Sábia sonoroso
Cantando sua canção
e se ver o sol brilhante
cobrindo a face do chão


Refrão
Por ordem celeste
eu sou do Nordeste
sou cabra da peste
de tudo aqui tem,
canta o violeiro,
abóia o vaqueiro
e o bom sanfoneiro
toca o xem nhem nhem


Sou Nordestino e me orgulho
da terra que Deus me deu,
aqui com a natureza
foi que o artista aprendeu
neste solo abençoado
o Rei do Baião nasceu


Por ordem celeste
eu sou do Nordeste
sou cabra da peste
de tudo aqui tem,
canta o violeiro,
abóia o vaqueiro
e o bom sanfoneiro
toca o xem nhem nhem
PATATIVA DO ASSARÉ


Referências:

João Cabral de Melo Neto – Poesia Completa, Nova Fronteira
Josué de Castro – Geografia da Fome, Civilização Brasileira
Patativa do Assaré -  Aqui tem coisa, Hedra



Foto: Alan Oju # Jangada Cultural  
Lívia Marcelino Xavier. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais FAFIL/CUFSA. Pesquisadora da área da literatura, estética e arte. Promoveu as exposições Traços Latinos 2010, composta a poesia Latino Americana; e a Caos Calmo,  com poesia de sua autoria e com desenhos de Leonardo Cória ambas expostas no Centro Universitário Fundação Santo André. Desenvolveu oficina com propostas literárias no festival de inverno de Paranapiacaba, 2011.

2 comentários:

ká! Karolina Rovai disse...

Sensacional.

5 de março de 2014 às 10:00
Ana Dietrich disse...

Amei! Nunca tinha lido algo assim, mistura de geografia, história e poesia. Altamente recomendado para leitura!

6 de março de 2014 às 18:18

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