sexta-feira, 4 de abril de 2014

DE SÍMBOLOS, MITOS E ARQUÉTIPOS



Ontem, ainda, um amigo me falava de seu sofrimento por ter perdido seu pai. Eu o compreendi perfeitamente, pois também já perdi o meu. É claro que eu não podia sentir a mesma dor que ele sentia, mas eu conhecia bem a dor de ter perdido um pai, ainda que ela se manifeste de maneiras diversas em pessoas diversas. Ter compreendido é bastante diferente de ter entendido. Costumo dizer que a gente entende com o cérebro e compreende com o estômago. Num caso a gente tem uma ideia, no outro a gente tem um sentimento.
É como ver uma pintura de Monet. Quando vejo uma pintura de Monet, me invade um sentimento de difícil descrição. É como um calorzinho no estômago, uma sensação de estar dentro da imagem, de estar ali. Não sei descrever. Creio que o pintor, assim como os artistas em geral, não falam do que vêem ou do que ouvem, mas do que sentem quando vêem e quando ouvem. É esse sentimento que fica impresso na obra de arte e que se reproduz em nós. Por isso o sentimento perante a arte é um sentimento religioso, pois nos religa ao espírito e desperta em nós sentimentos de altíssimas frequências.


Monet "La promenade sur la falaise"
O mesmo se dá em relação aos conceitos. Falar de conceitos abstratos é inevitável. Como falar de Filosofia sem mencionar constantemente Símbolos, Mitos e Arquétipos? É impossível. Mas também os conceitos são uma forma de arte. Podemos entendê-los e compreendê-los. Os entendemos com a cabeça, usando nossa racionalidade, de forma lógica. Os compreendemos com o estômago, sentindo aquilo que falamos.
Se um astrônomo se refere a uma nova galáxia, o sentimento que ele experimenta é diferente do meu, que não sou astrônomo. Ele "sente" o que fala. Eu simplesmente "entendo" (ou não). A diferença está nas experiências que foram historicamente construídas. 


Galáxia-"Andrômeda"

Desde as primeiras tendências que ele sentiu em relação à astronomia; as leituras e programas de televisão; os cursos; o primeiro telescópio; as conversas construídas com outros que também gostam do assunto; as noites passadas sob as estrelas; o sentimento de respeito e admiração por um Cosmo que vibra no fundo de sua alma quando ele o penetra com seu conhecimento... Tudo, enfim, constrói nesse indivíduo um complexo de sentimentos que eu não terei quando ouvi-lo falar, com paixão (e o termo é exatamente esse!) sobre a nova galáxia.
FREUD, JUNG e outros pioneiros do estudo da psique humana não sentaram em suas escrivaninhas, cheios de lógica e ciência para descrever conceitos e estruturas psíquicas. Eles foram seres apaixonados que desbravaram caminhos, lutaram contra conceitos e preconceitos, sonharam com suas pesquisas, investigaram o mais íntimo de seus próprios sentimentos em busca da compreensão daquela realidade que enxergavam e que outros ainda não viam. 


Mandala-Arquétipos

Foi isso que JUNG quis dizer em uma de suas palestras nos EUA quando respondeu a alguém que lhe fez uma pergunta sobre um conceito mais difícil: isso você terá que ler tudo que li, pensar tudo que pensei nesses últimos anos, para entender! Não foi empáfia ou vaidade. Foi a mais pura verdade.  
Enfrentamos a mesma dificuldade quando tentamos explicar a um aluno o porquê de algo que aprendemos a duras penas e com o investimento de muito tempo. Simplesmente podemos falar a respeito. O outro receberá aquilo e assimilará em seu próprio nível de experiência. E incorporará aquele entendimento. E aquela lição entrará em sua vida, será digerido e assimilado ao seu jeito e um dia poderá ser compreendido. Mas não será mais o nosso conceito, já será o dele.

Por que esses Símbolos, Arquétipos e Mitos falam à nossa sensibilidade como se fossem uma pintura de Monet, ou uma escultura de Michelângelo, ou uma sonata de Mozart? Por que eles nos tocam muito antes que os entendamos intelectualmente? Porque eles falam de e para nossa própria experiência de vida. Porque eles estão inscritos em nossas experiências, especialmente as menos conscientes, e, sentimos, eles nos despertam.


Michelângelo-Detalhe das mãos na obra "Criação"
Foi a clareza de um texto sobre mitos que me sugeriu tudo isso(1) Falando sobre o porquê da figura de Carlitos, o Vagabundo, tocar tanto a nós todos, diz o autor:

"Prometeu e Fausto não têm realidade visual para nós, mas as silhuetas do Cavaleiro(2) e do Vagabundo são inconfundíveis e inesquecíveis. O último é o herdeiro e o maior representante de uma inumerável cadeia de bufões e pelotiqueiros que a farsa e a pantomima revelaram desde a alvorada dos tempos. E o extraordinário na sua figura é ela ser ao mesmo tempo aberrante e pura, ridícula e patética, feia e graciosa, grotesca e heróica.

Carlitos, o Vagabundo, é, sobretudo, um símbolo da liberdade, como bem definiu Otávio de Farias. O Vagabundo afirma e preserva sua individualidade ante uma sociedade massificadora, uniformizadora, destrutora da individualidade. Ele manifesta insólita e ostensivamente a sua diferença num meio que não tolera os diferentes. Tal como Dom Quixote, é um otimista ingênuo, mas irredutível.


C. Chaplin - Filme 'A dog's life"
Nada o abate, vicissitude ou malogro algum o deprime. Sua luta não se apresenta como belicosidade ou agressividade, mas numa instintiva e obstinada resistência da qual não tem consciência, pois não a racionaliza, não a justifica, nem mesmo fala sobre ela.

Carlitos não tem família, não tem casa, não tem trabalho fixo, não pertence a qualquer classe social, não tem planos, não tem objetivos, não tem ideais, não tem ambições, não tem religião, não tem passado e não pode ter futuro, mas ama alegremente a vida e, se não quer mudar o mundo, tampouco se deixa subjugar por ele, apesar da sua aparente fragilidade. Como os mitos anteriores (3), também não está limitado pela visão da 'possibilidade'".

É possível ser mais claro?



[1] BRAGA, H. Quatro Grandes Mitos Humanos. In: BOECHAT, W. et alii. Mitos e Arquétipos do Homem Contemporâneo. Petrópolis: 1954, 2ª. Edição.
[2] Refere-se a Dom Quixote.
[3] O autor se refere a Prometeu, Dom Quixote e Fausto, que ele trata no artigo.



Francisco C. L. Pucci, sociólogo, ex-professor de Sociologia da UFPR e ex-Vice Reitor Acadêmico da PUCPR.
Consultor de Desenvolvimento de Pessoas, realiza Professional Coaching, Palestras e Desenvolvimento de Lideranças.
Batalha valentemente contra a atração por chocolates.







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