REPENSANDO A ECOLOGIA A PARTIR DO OIKOS
Comumente,
ecologia é definida como estudo da casa. Trata-se de definição difusa,
que transita pela imensa maioria dos veículos de comunicação, materiais
didáticos e inclusive junto à literatura científica.
A palavra provém do léxico grego eco
(de oikos: casa, vivenda ou aposento) e logia (de logos:
estudo, tratado ou entendimento). Numa lógica linear teríamos então estudo
da casa, definição que nos dias de hoje, assume feição universal.
No
âmbito das ciências naturais, “ecologia” aparece pela primeira vez em 1866 numa
nota de pé de página de Generelle Morphologie der Organismen, obra do
biólogo e filósofo alemão Ernst Heinrich Haeckel. Para esse pensador, o
neologismo teria por função substituir o termo biologia, cujo alcance lhe
parecia indevidamente restritivo. Num parecer conceitual, a nova palavra diria
respeito, entre outras interfaces, à ciência da economia, do modo de vida e às
relações vitais externas dos organismos.
Mas,
ainda que propondo acepções amplas, a proposta não ecoou na intensidade
desejada por Haeckel. Pelo contrário, a palavra assimilou nexos parciais e
naturalizantes, alheios à esfera do social e da economia. Tal
perspectiva, marcada por aproximações com um conceito de totalidade
sócio-cultural integrada, prestou-se para justificar noções mistificadoras da
relação sociedade-natureza, impregnadas do viés da ‘harmonia social’.
Com
base nessas pontuações, os parágrafos seguintes buscam explicitar as contraposições
que norteiam a ação do homem em sociedade com o meio natural no seu vínculo com
as matrizes etimológicas da palavra. Podemos notar, as conotações usuais emprestadas
a ela não esgotam o mapeamento da questão ambiental. Os problemas ambientais, incorporando
nuanças extremamente complexas, dificilmente estariam contemplados num “estudo
da casa”.
Nessa
ótica, sublinhe-se que analisar uma terminologia implica em explicitar seus significados
originais, assim como identificar matrizes que revelem sua abrangência idiomática.
Isso porque os códigos lingüísticos normatizam - direta ou indiretamente -
padrões de percepção que repercutem no modo como grupos, povos e civilizações
organizam suas relações sociais e seu espaço de vida. Daí a importância da
etimologia enquanto ferramenta de análise.
A
palavra ecologia subentende enunciados bem diferentes daqueles que com o tempo,
se aninharam no imaginário social. Assim, conquista peso fundamental um saber
etimológico enraizado numa visão crítitica e contextualizado nos cenários
históricos e sociais em cujo seio floresce o significado das palavras.
Primeiramente, centremos
nossas atenções nas noções clássicas de oikos
e de logos, cuja combinação, oikos-logos,
resulta justamente em ecologia.
A palavra grega logos (λόγος, derivado de lego, λέγω: “Eu digo”), agrega
múltiplos significados. Dependendo do contexto, teríamos solicitação, opinião
específica, expectativa, fala, exposição, etc. Todavia,
a partir do pensador Heráclito (Século VI a.C.), logos tornou-se paradigma central na filosofia, interpretado como causa ou
princípio da ordem e do conhecimento.
Essas
notações são largamente endossadas pela história. Nos documentos da antiguidade
clássica, o oikos corresponderia - tal como descrito por Homero na
Ilíada e na Odisséia - a uma unidade auto-suficiente de produção e consumo,
da qual dependia a sobrevivência do grupo, subentendendo também determinada
organização social, política e econômica.
Os textos de Homero
confirmam: o oikos estava sob comando de um chefe combatente, que
encabeça a família e amplo rol de agregados. Não era estranho ao oikos o
exercício da guerra. Os oikoi encetavam investidas uns contra os outros,
acompanhadas de saques e pilhagens, fato que de pronto desfaz qualquer visão romântica
relativamente a essa organização social.
Vaso grego representando A Odisséia. |
Seguramente, oikos não corresponde ao sentido atual de “casa” e “família”. O oikos, além de possuir um grupo familiar mais ou menos extenso, incluía simultaneamente todas as pessoas, livres ou escravos, que dependiam diretamente do senhor do oikos, o poderoso oikodespotés. Isto é: todos os servidores afetados às numerosas tarefas exigidas pela vida econômica do oikos.
A essas informações, podemos acrescer que oikos na
descrição de Homero - tal como este nos apresenta o conceito na Ilíada e na
Odisséia - coloca claramente em cheque as visões romanceadas que permeiam um
imaginário oiko-lógico.
Consonantemente com a consciência social do
período arcaico da Grécia antiga, o oikos corresponderia a uma unidade
auto-suficiente de produção e consumo, da qual dependia a sobrevivência do
grupo, subentendendo também determinada organização social, política e econômica.
O oikos evidencia uma vez mais o quanto ao longo da
história a irrupção de diferentes modelos de sociedade perfilhou relação
orgânica com sistemas de controle estratégico dos bens naturais e energéticos,
que alicerçados numa apropriação dessimétrica dos insumos ambientais,
suscitaram a apresentação da desigualdade social.
Do que foi exposto, se deduz que oikos na consciência grega
de outrora é portador de grande multiplicidade de ajuizados, com implicações
que contrastam cabalmente com a inconsistência operacional
de “casa”.
Em
coerência com o que foi colocado, uma primeira pontuação sinalizaria para a
impropriedade de conceituar ecologia meramente como “estudo da casa”.
Logicamente, todo oikos na Grécia antiga intuía “casa” como referência
organizacional. Todavia, o contrário não é verdadeito. Entenda-se: nada
habilita postular conceitualmente casa em si mesma como sendo um oikos.
Um
segundo detalhamento é que oikos - cujo mecanismo central interconecta sociedade,
produção e consumo - implicitamente se indispõe com a dissociação entre os
conceitos de ecologia e economia. Aliás, não é fortuito o fato das duas
terminologias compartilharem uma mesma raiz: oikos. Nesse prisma, divorciar
meio ambiente de economia suscitaria duplo equívoco.
De um lado porque uma
economia que honre sua origem etimológica deve se assumir enquanto economia
ecológica. De outro, porque uma ecologia coerente também deve se
prontificar enquanto ecologia econômica.
Ainda um terceiro aspecto é que oikos - independentemente
da aura de romantismo que decorre desse conceito - inseria relações
marcadamente desiguais no seu interior. Aspecto pouco recordado, o oikos
era regrado pelo trabalho escravo e perpassado por clivagens de poder de todo
tipo. Por este motivo, o oikos na Grécia antiga desintegrou-se por conta
dos acirrados conflitos que nasceram e proliferavam em seu interior.
Ademais, sua desagregação desdobrou-se na polis (πόλις), a cidade-estado grega, formação político-territorial que emerge por conta dos antagonismos intrínsecos à ordem escravista, que a nova demarcação sócio-espacial procurou equacionar.
Ademais, sua desagregação desdobrou-se na polis (πόλις), a cidade-estado grega, formação político-territorial que emerge por conta dos antagonismos intrínsecos à ordem escravista, que a nova demarcação sócio-espacial procurou equacionar.
Os estudos preocupados
com a vertente ecológica não podem omitir os liames que fazem sua conexão com as
dimensões da cultura, da sociedade, da política e da economia. Tanto no passado
quanto nos dias atuais, a questão ambiental relaciona-se com grande conjunto de
variáveis, entendimento que não pode ser descartado caso a intenção seja avaliar
essa problemática no seu sentido mais profundo.
Assim, oikos não pode
ser restrito a aspectos ditos “ecológicos”, ponto de partida de inúmeras considerações
ambientalistas. Como é possível concluir, a temática ambiental ultrapassa
largamente o “estudo da casa”, pressupondo considerável esforço de compreensão.
Desafio colocado a todos
os defensores da Natureza!
Maurício Waldman é Doutor em Geografia (USP), Mestre em Antropologia (USP) e Graduado em Sociologia (USP). Waldman completou dois Pós-Doutorados: o primeiro através do Depto. de Geografia do Instituto de Geociências da UNICAMP (2011) e o segundoem Relações Internacionais pelo Depto. de Sociologia da USP (2013). Hoje desenvolve terceiro Pós-Doutorado, pesquisa desenvolvida na área de resíduos sólidos junto à Universidade do Oeste Paulista - UNOESTE (CNPq). Waldman foi Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da capital paulista e Coordenador do Meio Ambiente em São Bernardo do Campo. É autor/co-autor de 15 livros, dentre os quais Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010), finalista na 53ª edição do Premio Jabuti no quesito melhor livro de Ciências Naturais.
INDICAÇÕES
BIBLIOGRÁFICAS:
ACOT,
Pascal. História da Ecologia. Rio de Janeiro (RJ): Campus, 1990;
COLLINSON,
Diané. 50 Grandes Filósofos: da Grécia Antiga ao século XX. Tradução de
Maurício Waldman e Bia Costa. São Paulo (SP): Contexto. 2004;
FLORENZANO,
Maria Beatriz B. O Mundo Antigo: economia e sociedade. Coleção Tudo é
História, nº. 39. São Paulo (SP): Brasiliense, 1982;
HOMERO. Ilíada.
Tradução de Odorico Mendes e notas de verso a verso por Sálvio Nienkötter.
Ateliê Editorial. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
TABOSA,
Adriana Santos. Os conceitos de Nobreza, Riqueza e Valor em Homero. Revista Hypnos , nº. 26, I Semestre de 2011, pp. 160-169. São Paulo
(SP): Pontifícia Universidade Católica (PUC). 2011;
WALDMAN,
Maurício. Repensando o Ambientalismo na Ótica do Oikos. Texto de
subsídio elaborado para o 4º Seminário Anapolitano de Educação Ambiental,
Anápolis (GO), 6-8 de Junho de 2013. Texto disponível on line em:http://www.mw.pro.br/mw/RI_Oikos_SESC2013.pdf
Acesso: 07-10-2013. 2013;
Acesso: 07-10-2013. 2013;
Maurício Waldman é Doutor em Geografia (USP), Mestre em Antropologia (USP) e Graduado em Sociologia (USP). Waldman completou dois Pós-Doutorados: o primeiro através do Depto. de Geografia do Instituto de Geociências da UNICAMP (2011) e o segundo
E-mail: mw@mw.pro.br.
1 comentários:
Prezada Izabel, Bom Dia!
12 de maio de 2014 às 23:43Gostei muito do material publicado.
Super abraço, Waldman
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