sábado, 10 de maio de 2014

REPENSANDO A ECOLOGIA A PARTIR DO OIKOS



Comumente, ecologia é definida como estudo da casa. Trata-se de definição difusa, que transita pela imensa maioria dos veículos de comunicação, materiais didáticos e inclusive junto à literatura científica.
A palavra provém do léxico grego eco (de oikos: casa, vivenda ou aposento) e logia (de logos: estudo, tratado ou entendimento). Numa lógica linear teríamos então estudo da casa, definição que nos dias de hoje, assume feição universal.
No âmbito das ciências naturais, “ecologia” aparece pela primeira vez em 1866 numa nota de pé de página de Generelle Morphologie der Organismen, obra do biólogo e filósofo alemão Ernst Heinrich Haeckel. Para esse pensador, o neologismo teria por função substituir o termo biologia, cujo alcance lhe parecia indevidamente restritivo. Num parecer conceitual, a nova palavra diria respeito, entre outras interfaces, à ciência da economia, do modo de vida e às relações vitais externas dos organismos.
Mas, ainda que propondo acepções amplas, a proposta não ecoou na intensidade desejada por Haeckel. Pelo contrário, a palavra assimilou nexos parciais e naturalizantes, alheios à esfera do social e da economia. Tal perspectiva, marcada por aproximações com um conceito de totalidade sócio-cultural integrada, prestou-se para justificar noções mistificadoras da relação sociedade-natureza, impregnadas do viés da ‘harmonia social’.
Com base nessas pontuações, os parágrafos seguintes buscam explicitar as contraposições que norteiam a ação do homem em sociedade com o meio natural no seu vínculo com as matrizes etimológicas da palavra. Podemos notar, as conotações usuais emprestadas a ela não esgotam o mapeamento da questão ambiental. Os problemas ambientais, incorporando nuanças extremamente complexas, dificilmente estariam contemplados num “estudo da casa”.
Nessa ótica, sublinhe-se que analisar uma terminologia implica em explicitar seus significados originais, assim como identificar matrizes que revelem sua abrangência idiomática. Isso porque os códigos lingüísticos normatizam - direta ou indiretamente - padrões de percepção que repercutem no modo como grupos, povos e civilizações organizam suas relações sociais e seu espaço de vida. Daí a importância da etimologia enquanto ferramenta de análise.
A palavra ecologia subentende enunciados bem diferentes daqueles que com o tempo, se aninharam no imaginário social. Assim, conquista peso fundamental um saber etimológico enraizado numa visão crítitica e contextualizado nos cenários históricos e sociais em cujo seio floresce o significado das palavras.
Primeiramente, centremos nossas atenções nas noções clássicas de oikos e de logos, cuja combinação, oikos-logos, resulta justamente em ecologia.
A palavra grega logos (λόγος, derivado de lego, λέγω: “Eu digo”), agrega múltiplos significados. Dependendo do contexto, teríamos solicitação, opinião específica, expectativa, fala, exposição, etc. Todavia, a partir do pensador Heráclito (Século VI a.C.), logos tornou-se paradigma central na filosofia, interpretado como causa ou princípio da ordem e do conhecimento.
Essas notações são largamente endossadas pela história. Nos documentos da antiguidade clássica, o oikos corresponderia - tal como descrito por Homero na Ilíada e na Odisséia - a uma unidade auto-suficiente de produção e consumo, da qual dependia a sobrevivência do grupo, subentendendo também determinada organização social, política e econômica.


Vaso grego representando A Odisséia.
Os textos de Homero confirmam: o oikos estava sob comando de um chefe combatente, que encabeça a família e amplo rol de agregados. Não era estranho ao oikos o exercício da guerra. Os oikoi encetavam investidas uns contra os outros, acompanhadas de saques e pilhagens, fato que de pronto desfaz qualquer visão romântica relativamente a essa organização social.

Seguramente, oikos não corresponde ao sentido atual de “casa” e “família”. O oikos, além de possuir um grupo familiar mais ou menos extenso, incluía simultaneamente todas as pessoas, livres ou escravos, que dependiam diretamente do senhor do oikos, o poderoso oikodespotés. Isto é: todos os servidores afetados às numerosas tarefas exigidas pela vida econômica do oikos.
A essas informações, podemos acrescer que oikos na descrição de Homero - tal como este nos apresenta o conceito na Ilíada e na Odisséia - coloca claramente em cheque as visões romanceadas que permeiam um imaginário oiko-lógico.
Consonantemente com a consciência social do período arcaico da Grécia antiga, o oikos corresponderia a uma unidade auto-suficiente de produção e consumo, da qual dependia a sobrevivência do grupo, subentendendo também determinada organização social, política e econômica.
O oikos evidencia uma vez mais o quanto ao longo da história a irrupção de diferentes modelos de sociedade perfilhou relação orgânica com sistemas de controle estratégico dos bens naturais e energéticos, que alicerçados numa apropriação dessimétrica dos insumos ambientais, suscitaram a apresentação da desigualdade social.
Do que foi exposto, se deduz que oikos na consciência grega de outrora é portador de grande multiplicidade de ajuizados, com implicações que contrastam cabalmente com a inconsistência operacional de “casa”.
Em coerência com o que foi colocado, uma primeira pontuação sinalizaria para a impropriedade de conceituar ecologia meramente como “estudo da casa”. Logicamente, todo oikos na Grécia antiga intuía “casa” como referência organizacional. Todavia, o contrário não é verdadeito. Entenda-se: nada habilita postular conceitualmente casa em si mesma como sendo um oikos.
Um segundo detalhamento é que oikos - cujo mecanismo central interconecta sociedade, produção e consumo - implicitamente se indispõe com a dissociação entre os conceitos de ecologia e economia. Aliás, não é fortuito o fato das duas terminologias compartilharem uma mesma raiz: oikos. Nesse prisma, divorciar meio ambiente de economia suscitaria duplo equívoco. 
De um lado porque uma economia que honre sua origem etimológica deve se assumir enquanto economia ecológica. De outro, porque uma ecologia coerente também deve se prontificar enquanto ecologia econômica.
Ainda um terceiro aspecto é que oikos - independentemente da aura de romantismo que decorre desse conceito - inseria relações marcadamente desiguais no seu interior. Aspecto pouco recordado, o oikos era regrado pelo trabalho escravo e perpassado por clivagens de poder de todo tipo. Por este motivo, o oikos na Grécia antiga desintegrou-se por conta dos acirrados conflitos que nasceram e proliferavam em seu interior.

Ademais, sua desagregação desdobrou-se na polis (πόλις), a cidade-estado grega, formação político-territorial que emerge por conta dos antagonismos intrínsecos à ordem escravista, que a nova demarcação sócio-espacial procurou equacionar.

Os estudos preocupados com a vertente ecológica não podem omitir os liames que fazem sua conexão com as dimensões da cultura, da sociedade, da política e da economia. Tanto no passado quanto nos dias atuais, a questão ambiental relaciona-se com grande conjunto de variáveis, entendimento que não pode ser descartado caso a intenção seja avaliar essa problemática no seu sentido mais profundo.

Assim, oikos não pode ser restrito a aspectos ditos “ecológicos”, ponto de partida de inúmeras considerações ambientalistas. Como é possível concluir, a temática ambiental ultrapassa largamente o “estudo da casa”, pressupondo considerável esforço de compreensão.

Desafio colocado a todos os defensores da Natureza!

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS:

ACOT, Pascal. História da Ecologia. Rio de Janeiro (RJ): Campus, 1990;

COLLINSON, Diané. 50 Grandes Filósofos: da Grécia Antiga ao século XX. Tradução de Maurício Waldman e Bia Costa. São Paulo (SP): Contexto. 2004;

FLORENZANO, Maria Beatriz B. O Mundo Antigo: economia e sociedade. Coleção Tudo é História, nº. 39. São Paulo (SP): Brasiliense, 1982;

HOMERO. Ilíada. Tradução de Odorico Mendes e notas de verso a verso por Sálvio Nienkötter. Ateliê Editorial. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
TABOSA, Adriana Santos. Os conceitos de Nobreza, Riqueza e Valor em Homero. Revista Hypnos, nº. 26, I Semestre de 2011, pp. 160-169. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica (PUC). 2011;

WALDMAN, Maurício. Repensando o Ambientalismo na Ótica do Oikos. Texto de subsídio elaborado para o 4º Seminário Anapolitano de Educação Ambiental, Anápolis (GO), 6-8 de Junho de 2013. Texto disponível on line em:http://www.mw.pro.br/mw/RI_Oikos_SESC2013.pdf 
Acesso: 07-10-2013. 2013;





Maurício Waldman é Doutor em Geografia (USP), Mestre em Antropologia (USP) e Graduado em Sociologia (USP). Waldman completou dois Pós-Doutorados: o primeiro através do Depto. de Geografia do Instituto de Geociências da UNICAMP (2011) e o segundo em Relações Internacionais pelo Depto. de Sociologia da USP (2013). Hoje desenvolve terceiro Pós-Doutorado, pesquisa desenvolvida na área de resíduos sólidos junto à Universidade do Oeste Paulista - UNOESTE (CNPq). Waldman foi Chefe da Coleta Seletiva de Lixo da capital paulista e Coordenador do Meio Ambiente em São Bernardo do Campo. É autor/co-autor de 15 livros, dentre os quais Lixo: Cenários e Desafios (Cortez Editora, 2010), finalista na 53ª edição do Premio Jabuti no quesito melhor livro de Ciências Naturais. 
E-mail: mw@mw.pro.br.




1 comentários:

Anônimo disse...

Prezada Izabel, Bom Dia!

Gostei muito do material publicado.
Super abraço, Waldman

12 de maio de 2014 às 23:43

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