quarta-feira, 1 de outubro de 2014

AS VÁRIAS FACES DE JOÃO BAPTISTA GROFF...


É o retrato de dono de um butéco
Roupa folgada, barrigudo, suado...
Onde ele está – é o que fala, o que faz eco!
Ele é o que sabe mais... está acabado.
Já foi tudo. Só santo ainda não foi
Hoje é ilustre pintor de meia-tigela!
Pinta um cáco de vidro e diz que
Confunde melancia com berinjela!
Qual Nizio, qual Viaro, qual de Bona.
Essa gente está superada!
Do pincel – não há aqui dono nem dona.
Ele é o tal! O sucesso do salão.
Também tem da rua XV na calçada.
Sempre algum quadro em exposição!¹

Em minha dissertação de Mestrado em Sociologia (2007), escolhi como tema
central, a análise do trabalho fotográfico de João Baptista Groff (1897-1970). 
Esse corpus fotográfico foi tomado como documento e expressão 
imagética da urbanização e da construção da identidade paranaense, durante 
o período de 1920 a 1940. Em minha pesquisa, tentei responder à algumas 
questões, entre elas, que leituras sociológicas as imagens desse 
fotógrafo possibilitavam?

Assim, as fotografias de Groff, não somente indicavam as transformações da urbanização e modernização da cidade de Curitiba como também revelavam relações sociais específicas existentes naquele período. Um dos aspectos mais interessante da pesquisa, foi o contato com a família do fotógrafo, no caso seus filhos, já em idade avançada, o que se constituiu em uma experiência com a  história oral e possibilitou a obtenção de dados muito importantes para elaborar a trajetória do meu personagem.


Groff, como marinheiro, juntamente com os pais e a irmã
Meu principal interlocutor foi João Maximiliano Groff,  então com quase 80 anos, filho ‘do meio’ do fotógrafo. Ele e sua esposa, tiveram muita paciência em me receber para conversas de tarde inteira. Transcrevo aqui, algumas falas que descrevem uma relação muito particular entre pai e filho, e revelam algumas facetas do personagem Groff:

“Quando eu tinha 7 anos,  fui para a escola; a professora fez uma pesquisa com cada aluno, no item a profissão do meu pai, respondi que ele era ‘fiteiro’, com surpresa ela falou: explique-se melhor... então eu disse, 'meu pai faz fita de cinema'. Na realidade meu pai durante sua vida fez muitas coisas, e eu não posso definir qual foi na realidade sua profissão. Mesmo hoje continuo a não saber. 


JBG aos vinte e um anos de idade
Ele foi fotógrafo, cinegrafista, jornalista, dono de loja de material fotográfico, escritor de lendas e rádio-novelas, editor de revista, ecologista, amigo e mecenas de artistas plásticos, proprietário de cinema, artista plástico, e teve ainda negócios no ramo imobiliário.

Em minha adolescência, sempre senti verdadeira fascinação por meu pai. Não pelo pai que educa, ensina e aconselha e gera, mas aquele que para mim foi mais amigo e companheiro do que pai. Pois era eu quem cuidava dele quando saíamos, apesar de ser 32 anos mais velho do que eu. Meu pai era meio ‘desligado’, e não via perigo em nada, era muito otimista e eu sou pessimista, já que “pessimista é um otimista com experiência”.


Groff e a esposa Leonilda
Vou explicar melhor estas palavras, para que não me entendam mal. Na nossa casa éramos: ele, minha mãe dona Leonilda, minha avó materna, os filhos Lais Primerose (1923), Thelma (1927), João Maximiliano (1929) e Luiz (1936), além de uma empregada doméstica, portanto oito pessoas vivendo sob o mesmo teto. Vivíamos numa verdadeira democracia espartana, sendo que ele era o que menos mandava, cada um fazia o que bem queria, ele não se envolvia em desentendimento e brigas de filhos, não tomava partido nenhum.

Cada um que resolvesse seus desentendimentos, porém longe dele. Não queria saber se um filho gazeou a escola, se não fez os deveres escolares, ou alguma traquinagem em casa ou na rua, essa tarefa era da nossa mãe, que era mais enérgica e disciplinadora. Quando ele retornava à  casa, e nossa mãe ia fazer algum relato sobre nós, ele dizia: “não quero nem saber, isso é problema seu”. Como se pode ver, numa casa onde vivem oito pessoas, sempre tem um que não obedece as regras normais, na maioria das vezes era sempre ele o delinquente.


Residência dos Groff em Curitiba, com os irmãos Thelma e João
Nossa mãe era disciplinada e organizada, em matéria de limpeza era o extremo, tinha sempre um pano na cintura, e conforme ela ia passando ia removendo alguma sujeira, e ainda mais queria tudo no seu devido lugar, e nós, os filhos tínhamos que obedecer, já o nosso pai, era diferente. Sapatos num lugar, paletó em outro e pertences por toda a casa, tudo fora do lugar, o que nossa mãe reclamava, mas ele nem ligava, fazia de conta que não era com ele. Mamãe nos educou que quando se usa um talher, copo ou qualquer outro utensílio, se lava e coloca no lugar, o que nós obedecíamos... menos ele.


Groff  como pintor, quando já havia deixado de fotografar.
Quando eu estava com uns 4 ou 5 anos, minha mãe era da teoria que “terneiro fica junto da vaca”, minhas duas irmãs que eram mais velhas iam brincar na casa dos vizinhos ou iam à escola, e eu ficava ao lado dela que geralmente estava cozinhando. Era uma mãe zelosa demais. Em casa era ela e minha avó que cozinhavam, e para me ‘entreter’, me mandava enxugar os pratos, ajudar a escolher o feijão e o arroz, pequenas tarefas da casa. Papai olhava, não aprovava, mas nunca falou nada, nem era louco de falar. Mas pensava ‘isso não vai dar certo, vai ficar efeminado’. Acontece que não fiquei, mas acabei gostando de cozinhar.

Anos mais tarde, quando eu já era adulto, e nós saíamos, ele para pintar e eu para pescar e caçar, era eu quem cozinhava para nós, porque várias vezes acampávamos em barracas. E nessas andanças, era sempre ele que aprontava alguma coisa. Às vezes ao chegarmos em casa mamãe perguntava, ‘o que é que teu pai aprontou dessa vez?’


Alguns artistas do círculo de Groff, tendo ao centro Lange de Morretes
Na realidade não só eu como meus irmãos tínhamos que cuidar dele e não o contrário, como seria de se esperar. Há alguns anos atrás, falei com meu irmão mais moço, o Luiz, que escreve crônicas, ensaios e até dramaturgia, para que ele fizesse uma biografia sobre papai, sendo que eu forneceria os dados já que mantive mais contato com ele. A resposta dele: “João se eu contar as histórias que sei do papai, ninguém vai acreditar, eu vou ter que mentir e fazer um relato dele, igual ao que fazem na hora de sepultar alguém, o cidadão só tem qualidades etc.”


João Maximiliano com o cineasta Estevan Silvera na preparação do filme sobre JBG, 2010.
Em tempo: papai passou a me levar junto quando ia filmar, ou para  colher árvores para arborizar praças de Curitiba, com um caminhão da prefeitura. Com sete anos eu já o acompanhava nas idas à chácara. Adorava esses passeios, talvez fosse uma forma dele me afastar do ‘rabo da saia’ de minha mãe. Nas vezes em que eu dirigia o carro eu ficava atento, ouvindo as conversas dele com os pintores Arthur Nizio, De Bona, Lange de Morretes, Miguel Bakun e outros.”

¹Quando ele completou 60 anos, um amigo seu, escritor e poeta (não identificado) fez este soneto. Retirado do "Soneto irônico da Série dos Pintores n.1".


                       
                                                                                      ***


Izabel Liviski, é fotógrafa e professora. Doutora em Sociologia pela UFPR, é pesquisadora de História da Arte, Fotografia, Literatura e Artes Visuais. Escreve na revista ContemporArtes desde 2009, editando a coluna INCONTROS quinzenalmente, e é também co-editora da revista. 

Contato: <bel.photographia@gmail.com>

1 comentários:

Francisco Cezar de Luca Pucci disse...

Izabel, que história de vida! Só poderia ser um artista, pois esses geralmente vivem numa dimensão que não é a nossa. Para usar uma expressão de minha infância (já que tantas apareceram no texto), era o próprio "avoado".

1 de outubro de 2014 às 11:46

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