O AMOR E OS AMORES DE JOYCE JOHNSON
Uns dos mais impactantes livros escritos por uma autora do círculo Beat
foi Minor Characters, um volume de memórias de Joyce Johnson que focaliza o
breve período na vida dela que namorou Jack Kerouac – autor do célebre romance
Beat, On the Road - e teve uma
vivência intensa com o grupo que formava o núcleo principal desses escritores e artistas rebeldes. Inclusive, o livro lhe rendeu um prêmio
literário importante (National Book
Critics Circle Award, 1987), muito merecido pela força da sua narrativa, que além de oferecer “o melhor retrato que temos de Kerouac até
hoje” (frase de Ann Douglas na contracapa), torna-se uma contribuição pioneira
para a leitura e o estudo das talentosas mulheres que faziam parte do grupo (c.f. Knight, 1996; Grace & Johnson, 2002 ).
Minor Characters foi de fato minha primeira leitura dentre a obra
produzida por Johnson. Na sequência, eu
– que como muitas outras pessoas ainda conhecia muito mais a obra dos
escritores Beat do que das escritoras - li um outro livro, Doors Wide Open: a Beat Love Affair in Letters. O livro reúne cartas trocadas entre Joyce e
Kerouac entre os anos 1957 e 1958, acompanhadas por uma introdução e os comentários que Johnson vai acrescentando ao longo do livro, que é, aliás, um verdadeiro tesouro para qualquer
um(a) que deseja compreender os personagens e o clima cultural da época de auge
da geração Beat. E outra vez, pelo
próprio tema, a figura de Kerouac vai se expandindo, através do belo e reflexivo
retrato dele, feito por ela.
Afortunadamente, a essas alturas
das minhas leituras, eu já tinha percebido que a obra da Johnson incluía vários
outros livros que poderiam me auxiliar no desafio que assumi, de tentar
compreender melhor as escritoras Beat em relação ao seu tempo histórico e seu
campo estético e narrativo. E assim, na medida que eu lia - a re-edição feita
apenas em 2014 do romance que ela escreveu antes mesmo de conhecer Kerouac, Come and Join the Dance, assim como Bad Connections, In the Night Café e Missing
Men -, ia se desfazendo minha primeira e equivocada noção de uma carreira de
escritora tão atrelada a passagem por sua vida desse homem que tamanha marca deixou
na cultura literária norte-americana
Hoje sei que trata-se de uma obra maravilhosamente consolidada, que inclui memórias, romance e biografia. São livros que eu li com voracidade, e que pretendo voltar a ler: pelo que me ajudam a entender também sobre mim mesma e pelo simples prazer do texto.
Hoje sei que trata-se de uma obra maravilhosamente consolidada, que inclui memórias, romance e biografia. São livros que eu li com voracidade, e que pretendo voltar a ler: pelo que me ajudam a entender também sobre mim mesma e pelo simples prazer do texto.
No caso de Johnson, seus três romances, que são bastante autobiográficos
(isto se constata quando lidos na companhia dos seus dois livros de memórias),
a temática da relação com o Outro de sexo masculina também é central - à vida dela e
à trama literária. Cada um dos romances evoca um
momento diferente na vida da autora, ao mesmo tempo que nos faz participar do
ambiente dos conflitos políticas e culturais dos EUA (principalmente nas suas expressões " nova-iorquinas")
nesses períodos. Vemos, acima de todo, e com todas as nuances de uma sofisticada criação literária, como estes conflitos se desdobram através do cotidiano de mulheres urbanas, brancas e de classe
média, que no linguajar da sociologia contemporânea, querem se construir como
sujeitos e protagonistas – da sua história, da história.
A tensão entre o caminho próprio e o viver (relativamente) em função do
companheiro – a primazia que adquire não só o homem senão a criação artística
masculina – é implícita e explícita, embora menos no seu primeiro romance no
qual a jovem protagonista está ainda lidando com as expectativas dos seus pais e do meio
social institucional (a coming-of-age
story). A protagonista, Susan, se
aproxima com muita cautela dos homens como possíveis primeiros parceiros
sexuais, sempre sabendo que o que está em jogo é a vida que ela precisa construir para si. O romance termina com a moça deixando para atrás um primeiro
amor-encanto e indo para o mundo. (“And
then she went.”)
Os três romances da Johnson não
foram escritos em ordem cronológica (biográfica). In the Night Café, o livro que gira em torno do seu primeiro casamento, com o pintor Jim Johnson (logo após sua ligação com Kerouac) foi publicado no ano 1989. O romance Bad Connections que se inicia com o final
da sua relação com o segundo marido, o também artista plástico Peter Pinchbeck
(o Fred do romance) foi escrito e publicado
muitos anos antes ( a primeira edição apareceu em 1977). Nos dois romances, os maridos e amantes de Johnson são artistas e
ativistas que compartilham o ideário Beat
–hippie- nova esquerda de liberdade sexual e individual; não hesitam em discorrer criticamente sobre questões como fidelidade,
monogamia e a família nuclear, até para
usufruir dos privilégios masculinos ou apaziguar suas companheiras revoltadas (pois qual
a mulher do círculo que queira ser tachada de conservadora, castradora,
controladora?). Isto à sua vez só aumenta o grau de ansiedade ou angústia
existencial das protagonistas, também
inseridas na procura de formas de
relação outras, e mais propensas, me parece, à introspecção
e ao escrutínio das suas próprias atitudes (coisa muito mais limitada nos
homens, que costumam ter reações defensivas).
Por outro lado, a presença do feminismo é uma influência explicitada na narrativa dela, aparecendo como um instrumento para compreender conflitos que são ao mesmo tempo
pessoais e sociais, como neste pequeno fragmento do romance Bad Connections:
“To many women – and I ruefully
number myself among them – there is nothing more attractive than a strong man
with weaknesses. There is something infinitely compelling in that contradiction. We see the man as an uncompleted work. It is
we who will supply the finishing touches. Our belief in our wisdom and
forebearance, our female hubris, are all too frequently either fatal or
ridiculous – depending on one’s angle of vision.
Feminists have brought into the open a view of
men that women have shared secretly all along. The truth is that we expect them
to be frail creatures, rather than the reverse.
And we excuse behavior in our men we would never permit ourselves or
pardon in others of our kind. That is our peculiar double
standard. We think of this as love.”
Como nos alerta a socióloga marroquina Eva Illouz num livro recente
(2012), é fardo de muitas de nós ter que continuar lidando com os mitos e armadilhas do romance
heterossexual, onde uma persistente assimetria de gênero age de forma peculiar para nossos tempos de liberdade (relativa) e escolhas, arraigada numa
serie de construções objetivas e subjetivas. É uma assimetria que Johnson trata com profundidade e sabedoria em Missing Men, o segundo volume das
memórias dela. Aí ela nos mostra como se
constrói – como todas e todos nós nos construimos – a partir de presenças e ausências; no caso
dela, a partir das idas e vindas desses homens que povoaram sua vida de
maneira tão forte que também a obrigaram a superar -pelo menos parcial, paradoxalmente - a
centralidade "do homem" na sua construção como sujeito. Assim, ela finaliza o romance Bad
Connections com uma frase que soa a anticlímax ou como balanço -
triste e feliz, mais doce do que amargo - desse ter que fazer-se a partir das
ausências e aprender a ficar sozinha: “In
some ways I have never been more productive.”
* Felizmente, estamos nos dedicando a isto, através da disciplina que atualmente ministro no Programa de Pós-graduação de Letras/UFPR e através da pesquisa que realizo em conjunto com minha colega historiadora, Renata Senna Garraffoni, também da UFPR
Texto e imagens: Miriam Adelman
Referências:
Johnson, Ronna & Grace, Nancy, eds. (2002) Girls
who wore black: women writing the Beat generation. New Brunswick: Rutgers
University Press.
Illouz, Eva. (2012) Por
qué duele el amor: uma explicação
sociológica. Buenos Aires/Madrid:
Katz.
Johnson,
Joyce. (1977) Bad Connections. New York: Open Road Integrated Media.
____________. (1983; 1994) Minor Characters: a Young Women’s Coming-of-Age in the Beat
Orbit of Jack
Kerouac. New York: Penguin Books.
____________. (1989) In
the Night Café. New York: E.P. Dutton.
____________. (2004) Missing
Men: a memoir. New York: Penguin.
____________.
(1961) Come and Join the Dance. New
York: Penguin.
Kerouac,
Jack and Johnson, Joyce. (2000) Doors
Wide Open: a Beat Love Affair in Letters, 1957-1858)
Knight, Brenda. (1996) Women
of the Beat Generation: the Writers,
Artists and Muses at the Heart of a Revolution.
Berkeley: Conari Press.
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta e - desde 2013- aprendiz da arte fotográfica. Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991. Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. . Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
Imagem: Janaína Ina.
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