sexta-feira, 3 de outubro de 2014

O AMOR E OS AMORES DE JOYCE JOHNSON





Uns dos mais impactantes livros escritos por uma autora do círculo Beat foi Minor Characters, um volume de memórias de Joyce Johnson que focaliza o breve período na vida dela que namorou Jack Kerouac – autor do célebre romance Beat, On the Road - e teve uma vivência intensa com o grupo que formava o núcleo principal  desses escritores e artistas rebeldes.  Inclusive, o livro lhe rendeu um prêmio literário importante  (National Book Critics Circle Award, 1987), muito merecido pela força da sua narrativa, que  além de oferecer   “o melhor retrato que temos de Kerouac até hoje” (frase de Ann Douglas na contracapa), torna-se uma contribuição pioneira para a leitura e o estudo das talentosas mulheres que faziam parte do grupo (c.f.  Knight, 1996;  Grace & Johnson, 2002 ).

 Minor Characters foi de fato minha primeira leitura dentre a obra produzida por Johnson.  Na sequência, eu – que como muitas outras pessoas ainda conhecia muito mais a obra dos escritores Beat do que das escritoras - li um outro livro, Doors Wide Open: a Beat Love Affair in Letters.  O livro reúne cartas trocadas entre Joyce e Kerouac entre os anos 1957 e 1958, acompanhadas por  uma introdução e os comentários que Johnson vai acrescentando ao longo do livro, que é, aliás, um verdadeiro tesouro para qualquer um(a) que deseja compreender os personagens e o clima cultural da época de auge da geração Beat.  E outra vez, pelo próprio tema, a figura de Kerouac vai se expandindo, através do belo e reflexivo retrato dele, feito por ela.

 Afortunadamente, a essas alturas das minhas leituras, eu já tinha percebido que a obra da Johnson incluía vários outros livros que poderiam me auxiliar no desafio que assumi, de tentar compreender melhor as escritoras Beat em relação ao seu tempo histórico e seu campo estético e narrativo. E assim, na medida que eu lia -   a re-edição feita apenas em 2014 do romance que ela escreveu antes mesmo de conhecer Kerouac, Come and Join the Dance, assim como Bad Connections, In the Night Café e Missing Men -, ia se desfazendo minha primeira e equivocada noção de uma carreira de escritora tão atrelada a passagem por sua vida desse homem que tamanha marca deixou na cultura literária norte-americana


Hoje sei que trata-se de uma obra maravilhosamente consolidada, que inclui memórias, romance e biografia. São  livros que eu li com voracidade, e que pretendo voltar a ler: pelo que me ajudam a entender também sobre mim mesma e pelo simples prazer do texto.


Tudo isto nos traz de volta a um tema que merece muito mais  exploração* : as relações amorosas e sexuais entre homens e mulheres integrantes do círculo Beat, como um grupo de vanguarda, que antecipa a revolução sexual ou “de costumes” que tomaria dimensões massivas na geração posterior, a dos famosos “anos 60”.  Assim, nestes breves apontamentos, o que posso adiantar é o alto grau de reflexividade sobre as relações sociais e humanas que eu encontro nas obras das escritoras.  Uma das questões que salta à vista  em todas as autoras é uma noção da liberdade problematizada, que aparece significada na obra delas de forma muito diferente do que  emerge dos escritos dos homens, para os quais a relação com o outro é frequentemente marcada por um alto grau de ambivalência.   Em Kerouac, por exemplo,  aparecem os  companheiros de estrada, que por vezes ele admira apaixonadamente (como no caso de Neal Cassady), mas tratam-se de vidas que se bifurcam mais do que seguem juntas.  Quanto às mulheres, elas são também objeto de admiração, e com certeza de desejo;  contudo,  parecem sempre querer algo a mais do que ele mesmo pode lhes conceder.  Assim, ele não pode ficar muito tempo com nenhuma.  “Afinal, o que querem as mulheres?”  Essa célebre frase de Sigmund Freud poderia ressoar para ele também.

No caso de Johnson, seus três romances, que são bastante autobiográficos (isto se constata quando lidos na companhia dos seus dois livros de memórias), a temática da relação com o Outro de sexo masculina também é central -  à vida dela e à trama literária.  Cada um dos romances evoca um momento diferente na vida da autora, ao mesmo tempo que nos faz participar do ambiente dos conflitos políticas e culturais dos EUA (principalmente nas suas expressões " nova-iorquinas") nesses períodos.  Vemos, acima de todo, e com todas as nuances de uma sofisticada criação literária, como  estes conflitos se desdobram através do cotidiano de mulheres urbanas, brancas e de classe média, que no linguajar da sociologia contemporânea, querem se construir como sujeitos e protagonistas – da sua história,  da história.  A tensão entre o caminho próprio e o viver (relativamente) em função do companheiro – a primazia que adquire não só o homem senão a criação artística masculina – é implícita e explícita, embora menos no seu primeiro romance  no qual a jovem protagonista está ainda lidando com as expectativas dos seus pais e do meio social institucional (a coming-of-age story).  A protagonista, Susan, se aproxima com muita cautela dos homens como possíveis primeiros parceiros sexuais, sempre sabendo que o que está em jogo é a vida que ela precisa construir para si.  O romance termina com a moça deixando para atrás um primeiro amor-encanto e indo para o mundo. (“And then she went.”)

Os três romances da Johnson  não foram escritos em ordem cronológica (biográfica).  In the Night Café,  o livro que gira em torno do seu primeiro casamento, com o pintor Jim Johnson (logo após sua ligação com Kerouac) foi publicado  no ano 1989.  O romance Bad Connections que se inicia com o final da sua relação com o segundo marido, o também artista plástico Peter Pinchbeck (o Fred do romance) foi escrito e publicado muitos anos antes  (  a primeira edição apareceu em 1977).  Nos dois romances, os  maridos e amantes de Johnson são artistas e ativistas que compartilham o ideário Beat –hippie- nova esquerda de liberdade sexual e individual;  não hesitam em discorrer criticamente sobre questões como fidelidade,  monogamia e a família nuclear, até para  usufruir dos privilégios masculinos ou  apaziguar suas companheiras revoltadas (pois qual a mulher do círculo que queira ser tachada de conservadora, castradora, controladora?). Isto à sua vez só aumenta o grau de ansiedade ou angústia existencial das protagonistas,  também inseridas  na procura de formas de relação outras, e mais propensas, me parece, à  introspecção  e ao escrutínio das suas próprias atitudes (coisa muito mais limitada nos homens, que costumam ter reações defensivas).  Por outro lado, a presença do feminismo é uma influência explicitada na narrativa dela,  aparecendo como um instrumento para compreender conflitos que são ao mesmo tempo pessoais e sociais, como neste pequeno fragmento do romance Bad Connections:

To many women – and I ruefully number myself among them – there is nothing more attractive than a strong man with weaknesses.  There is something infinitely compelling in that contradiction.  We see the man as an uncompleted work. It is we who will supply the finishing touches. Our belief in our wisdom and forebearance, our female hubris, are all too frequently either fatal or ridiculous – depending on one’s angle of vision.

Feminists have brought into the open a view of men that women have shared secretly all along. The truth is that we expect them to be frail creatures, rather than the reverse.  And we excuse behavior in our men we would never permit ourselves or pardon in others of our kind.  That is our peculiar double standard.  We think of this as love.”

Como nos alerta a socióloga marroquina Eva Illouz num livro recente (2012), é fardo de muitas de nós ter que continuar lidando com os mitos e armadilhas do romance heterossexual, onde uma persistente assimetria de gênero age de forma peculiar para nossos tempos de liberdade (relativa) e escolhas, arraigada  numa serie de construções objetivas e subjetivas.  É uma assimetria que Johnson trata com profundidade e sabedoria em Missing Men, o segundo volume das memórias dela.  Aí ela nos mostra como se constrói – como todas e todos nós nos construimos – a partir de presenças e ausências; no caso dela, a partir das idas e vindas desses homens que povoaram sua vida de maneira tão forte que também a obrigaram a superar  -pelo menos parcial, paradoxalmente - a centralidade "do homem" na sua construção como sujeito.  Assim, ela finaliza o romance  Bad Connections com uma frase que soa a anticlímax ou como balanço - triste e feliz, mais doce do que amargo - desse ter que fazer-se a partir das ausências e aprender a ficar sozinha: “In some ways I have never been more productive.”

* Felizmente, estamos nos dedicando a isto, através  da disciplina que atualmente ministro no Programa de Pós-graduação de Letras/UFPR e através da pesquisa que realizo em conjunto com minha colega historiadora, Renata Senna Garraffoni, também da UFPR

Texto e imagens:  Miriam Adelman

Referências:

 Johnson, Ronna & Grace, Nancy, eds.  (2002) Girls who wore black: women writing the Beat generation. New Brunswick: Rutgers University Press.
Illouz, Eva.  (2012) Por qué duele el amor:  uma explicação sociológica.  Buenos Aires/Madrid: Katz.
Johnson, Joyce.  (1977) Bad Connections. New York: Open Road Integrated Media.
____________.  (1983; 1994) Minor Characters: a Young Women’s Coming-of-Age in the Beat
                               Orbit of Jack Kerouac. New York: Penguin Books.
____________.  (1989) In the Night Café. New York: E.P. Dutton.
____________.  (2004) Missing Men: a memoir. New York: Penguin.
____________. (1961) Come and Join the Dance. New York:  Penguin.
Kerouac, Jack and Johnson, Joyce.  (2000) Doors Wide Open: a Beat Love Affair in Letters, 1957-1858)
Knight, Brenda. (1996)  Women of the Beat Generation:  the Writers, Artists and Muses at the Heart of a Revolution.  Berkeley:  Conari Press.

Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta e  - desde 2013-  aprendiz da arte fotográfica.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. .  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)


Imagem: Janaína Ina.

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