COMO SE FOSSE UM DIA NORMAL....
Tudo ocorreu na hora em que a chuva começava a cair. O sol, no entanto, queimava o
rosto dela. Ela, tão bela, ensanguentada, deitada no asfalto. Tinha a maior semelhança
com Rihanna. O namorado havia dito, três horas antes do roubo, “Vai ser fácil!
Moleza!”. Antes de partir para cometer o primeiro crime da carreira, ela se maquiou
mesmo com a mão tremendo. Ouviu uma balada internacional dos anos 80 em uma
rádio qualquer de Cuiabá. Segurou o revólver para sentir novamente o peso. Na cabeça,
as palavras desafio e medo se misturavam. O namorado chegou. Repassou o plano:
roubar uma loja de informática numa avenida da cidade. Ele seria responsável por
anunciar o assalto e render a todos os presentes no estabelecimento. Ela deveria dar
cobertura e vigiar a porta de entrada. O terceiro envolvido no crime ficaria no carro. O
motorista, irmão do namorado, o cabeça-pensante da transgressão social.
Na mente, a ideia de amor bandido. Menina da classe média alta brincando de vida bandida com
rapaz que quer ser senhor do crime. Ela mediu as consequências. Conclusão: era melhor
que andar/transar com os playboys viciados em cocaína que conhecia. O sangue escorria
da calçada para rua. Manchando o fim da tarde com o gosto da morte. Cadê o
namorado? Em fuga com o irmão. Piloto de corrida que estava fazendo a polícia comer
poeira. Tiros para acertar os pneus. Medo de bala perdida. Pânico entre a população. A
garota com a “cara” de Rihanna ouvia dos curiosos indignados, assustados,
compadecidos, “Vai morrer cadela!”, “Como ela é bonita!”, “Tomará que não morra
coitada!”, “Essa guria parece aquela cantora... Como é mesmo o nome dela?”. A
ambulância não chegava. O namorado, o futuro cunhado e ela estavam prontos para
sair. Na cachola, “Uma rajada de balas”. Bonnie e Clyde da Cidade Verde. Calor de
trinta e nove graus. Borracha no asfalto. Tensão no carro. Embalos de “Born to be
wild”. Era preciso fingir que seria um dia normal. Uma ida à balada. O cunhado queria
um pagode, mas não rolou. Ela chorava estendida na calçada. Um corpo de deusa que
seria capaz de todos os prazeres do sexo. A vida se esvaindo. A chuva levava as
lágrimas da menina. Ninguém percebeu o choro discreto.
Ela vigiou a porta como
combinado. Porém, se distraiu. Não viu o policial à paisana que entrou na loja. Ele não
disse nada. Viu a menina com uma arma. A menina apontou o ferro para o policial.
Depois do estrondo, a perfuração, a corrida para a rua, o tombo, a fuga espetacular do
namorado que matou o policial, o abandono, a dor lancinante, a vergonha, o medo
irreprimível.
Lembrou-se de quando tinha cinco anos e subia no pé de jabuticaba da tia
Adelina com a irmã mais velha. Lembrou-se dos quinze anos e da viagem para
Acapulco com a irmã mais velha. Não se recordou do namorado, dos pais, das tias, das
amigas. Só se lembrou da irmã mais velha. O vento frio cortou a memória. Chuva
irritante. Nada da ambulância chegar. A menina morreu ao cair da noite.
Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979,
em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação
em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos, colunista da Revista Biografia
(http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/search/label/Wuldson%20Marcelo)
e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e
“Subterfúgios Urbanos”.
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