sábado, 11 de outubro de 2014

COMO SE FOSSE UM DIA NORMAL....



Tudo ocorreu na hora em que a chuva começava a cair. O sol, no entanto, queimava o 

rosto dela. Ela, tão bela, ensanguentada, deitada no asfalto. Tinha a maior semelhança 

com Rihanna. O namorado havia dito, três horas antes do roubo, “Vai ser fácil! 

Moleza!”. Antes de partir para cometer o primeiro crime da carreira, ela se maquiou 

mesmo com a mão tremendo. Ouviu uma balada internacional dos anos 80 em uma 

rádio qualquer de Cuiabá. Segurou o revólver para sentir novamente o peso. Na cabeça, 

as palavras desafio e medo se misturavam. O namorado chegou. Repassou o plano: 

roubar uma loja de informática numa avenida da cidade. Ele seria responsável por 

anunciar o assalto e render a todos os presentes no estabelecimento. Ela deveria dar 

cobertura e vigiar a porta de entrada. O terceiro envolvido no crime ficaria no carro. O 

motorista, irmão do namorado, o cabeça-pensante da transgressão social.



 Na mente, a ideia de amor bandido. Menina da classe média alta brincando de vida bandida com 

rapaz que quer ser senhor do crime. Ela mediu as consequências. Conclusão: era melhor 

que andar/transar com os playboys viciados em cocaína que conhecia. O sangue escorria 

da calçada para rua. Manchando o fim da tarde com o gosto da morte. Cadê o 

namorado? Em fuga com o irmão. Piloto de corrida que estava fazendo a polícia comer 

poeira. Tiros para acertar os pneus. Medo de bala perdida. Pânico entre a população. A 

garota com a “cara” de Rihanna ouvia dos curiosos indignados, assustados, 

compadecidos, “Vai morrer cadela!”, “Como ela é bonita!”, “Tomará que não morra 

coitada!”, “Essa guria parece aquela cantora... Como é mesmo o nome dela?”. A 

ambulância não chegava. O namorado, o futuro cunhado e ela estavam prontos para 

sair. Na cachola, “Uma rajada de balas”. Bonnie e Clyde da Cidade Verde. Calor de 

trinta e nove graus. Borracha no asfalto. Tensão no carro. Embalos de “Born to be 

wild”. Era preciso fingir que seria um dia normal. Uma ida à balada. O cunhado queria 

um pagode, mas não rolou. Ela chorava estendida na calçada. Um corpo de deusa que 

seria capaz de todos os prazeres do sexo. A vida se esvaindo. A chuva levava as 

lágrimas da menina. Ninguém percebeu o choro discreto.



 Ela vigiou a porta como 

combinado. Porém, se distraiu. Não viu o policial à paisana que entrou na loja. Ele não 

disse nada. Viu a menina com uma arma. A menina apontou o ferro para o policial. 

Depois do estrondo, a perfuração, a corrida para a rua, o tombo, a fuga espetacular do 

namorado que matou o policial, o abandono, a dor lancinante, a vergonha, o medo 

irreprimível. 





Lembrou-se de quando tinha cinco anos e subia no pé de jabuticaba da tia 

Adelina com a irmã mais velha. Lembrou-se dos quinze anos e da viagem para 

Acapulco com a irmã mais velha. Não se recordou do namorado, dos pais, das tias, das 

amigas. Só se lembrou da irmã mais velha. O vento frio cortou a memória. Chuva 

irritante. Nada da ambulância chegar. A menina morreu ao cair da noite.




Wuldson Marcelo, corintiano apaixonado por literatura e cinema, nascido em 1979,

em Cuiabá, que possui Mestrado em Estudos de Cultura Contemporânea e graduação 

em Filosofia (ambos pela UFMT). É revisor de textos, colunista da Revista Biografia 

(http://sociedadedospoetasamigos.blogspot.com.br/search/label/Wuldson%20Marcelo) 

e autor de dois livros de contos que estão entre o prelo e o limbo, “Obscuro-shi” e 

“Subterfúgios Urbanos”. 

Contato: wuldsonbergman@hotmail.com


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