sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Muitas maneiras de ser mulher


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Fábula III, ou “as formas da coragem”.

                    Para Joyce, Hettie e Diane.  E para Andressa também.

Era apenas uma menina
e o mundo, um lugar lotado
de criaturas com sonhos baratos.
Pegava todos os dias, de manhã
o bonde que descia a ladeira,
seu coração dando saltos no ponto
     onde a curva sugeria uma fuga
onde a mão do condutor podia
vacilar por um instante e perder
o rumo.

Noitezinha, na hora da sopa
a mãe chamava
para ela colocar na mesa
os pratos azuis, os guardanapos de pano
amarelados, as grandes colheres,
e ela obedecia,
mansinha, as unhas de esmalte
     de uma semana
guardando seu segredo escarlate.

Quando lá fora chovia, como de
   costume, gotas misturando-se com
poeira e através da janela suja 
todas as formas
   alongavam-se, encurtavam-se,
 ela via figuras
dançando na água ou nas chamas
da noite e sabia que
em algum lugar  o caminho bifurcava
e seria só o rumo que ela conseguisse
vislumbrar quando todo mundo parasse
de lhe falar, de lhe indicar com
as mãos ou apontar com os dedos
o enferrujado dever, ou quando ela
não mais escutasse.

Os meninos pulavam
os vagões do trem ou as
ondas mais altas, e o tempo todo ela
sabia que isso não era para ela
porque não era longe o suficiente
ou  talvez porque ser
   apenas uma triste
                fêmea da espécie
não lhe permitisse um lugar
entre os que desafiavam
os mares, a Bruxa de Novembro
ou o Chinook.  Enquanto isso
os garotos saiam e voltavam à casa.
Ela ouvia suas histórias e percebia
como esticavam suas meia-verdades
sobre a bruma, as baleias, os
adversários com suas espadas,
ou as armas comuns do bandido
         da esquina.
Dançava sozinha frente ao espelho,
  diante dos escuros olhos ciganos,
examinando a curva dos seus braços,
o quadril que se alargava,  os
pequenos seios que endureciam sob
   um fino tecido, as pernas que embora
curtas pudessem carregá-la muitas milhas.
Sentia então um estranho tipo
       de medo-coragem
que lhe dizia coisas inteligíveis:
que  poderia dormir ao relento,
 construir um provisório
abrigo, aprender as línguas de
humanos e tigres, ser nômade
como qualquer uma
ou como nenhum outro.

And then she went...




Texto e imagens:  Miriam Adelman


Miriam Adelman é socióloga, tradutora, poeta e  - desde 2013-  aprendiz da arte fotográfica.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. .  Mantém também o blog pessoal, Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)

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