quinta-feira, 16 de outubro de 2014

"Foi Clarice que me deu..."



Ia eu pel’Afonso Pena olhando – sem tino – o prédio dos prédios e o aglomerado das coisas entre as coisas. O meu pensamento – sem mais – ia: tudo caminhava ao lado de mim. Um carro moto buzina e ônibus alto “alô?” cimento e tronco e máfaro e as pernas do mundo que são pernas e ponteiros e números e “não importa”. Caminhava. Não era distração o qu’eu tinha, nem tonteira ou basbaquice. Pensava paralelo ao pensamento, não pedia nada, não evoquei por qualquer motivo ou divisão lógica as minhas conjecturas habituais, mas atentei sem esforço – “é isso” – para o vão das cortinas. “Estamos livres?” - Libertas Quæ Sera Tamen (brinquei em voz baixa). Até que enfim. Chegou sem aviso a sensação. Tudo era onde devia e parecia ser. Acima das minhas ideias, as coisas se apresentavam como se fosse à primeira vez. “Não estou mais cego dos olhos”. Olhar nunca foi o bastante. E a vontade crescia com a multidão, feroz e multiforme, para todos os lados, engolindo a avenida, os pedestres, a Fundação Clovis Salgado, a banca de revistas e a faixa e os edifícios e Bebu.

            Ocorreu-me então (por piedade ou qualquer outra coisa) adotar o mundo, ser pai desse coitado. Eu me senti padrasto da criação, da terra, do povo. Não o substituto dele – aquele, o pai - mas o seu outro. Com certa prepotência de glória, mas carinhosamente igual, eu deitei esforços sobre o trono abandonado. Não houve objeção. Seria então um feriado, um largo maior depois de tudo, o domingo – prolongado - de dominus. Ser-lhe-ia aceitável a intimidade com que eu governava. O papel me era estranho, mas confortável e natural, como se não houvesse antes me alcançado por falta de chamada. O currículo para padrasto do mundo estava já  sobre a mesa do homem. Sei que devemos amar a deus sobre todas as coisas. Eu sei. “Existe maneira melhor?”. Amo a sua obra e, se cabe a ele estar em tudo, amo o em tudo, por consequência: dou amor à todas as coisas e – estando ele sobre elas – amo o também.

            Seguia – o meu reino e as férias do homem – até que me deparei com a menina morta. Uma menininha, sete ou outo, muito magrinha – a pobre, de pele brancamarelada e perninhas de saracura. “Que banalidade”. Ali na calçada, no canto do meio-fio, entre papeis de bala, enxurrada e folhas secas. Com as vísceras e os pesinhos esmagados. Tadinha. Segui no passo.

Deus deve mesmo estar satisfeito comigo. O desgaste foi da peleja. Auguste Comte o via como algo pré-moderno, fantástico, que deveria dar lugar ao saber positivo – como se deus fosse um tradicionalista e nunca se atualizasse. Marx – o marximo – com a coisa toda do ópio, alienação e falsa consciência de quem se perdeu ou, tendo se encontrado, voltou a se perder. Freud – Sigmund Narizinho - com a ilusão neurótica em busca do desejo de proteção pacificado e da transformação do mundo contraditório em suportável – “Ele tem que ser insuportável?”. Sem falar de Weber, Popper e Carnap e tantos outros... foi muita lambada.  “Moço, essa carteira é sua?”. Virei-me. Um rapazinho de doze, talvez quatorze anos, branco-moreno-pó, dos olhos fundos e grandes e magros. “É sua, moço, caiu alí ó!”.      Susto. Gatilho.         
            Não senti quando minhas pernas começaram, quando meus olhos se trancaram para tudo. Era o mundo lá fora: existindo. A rua ficou em silêncio e eu só podia correr e as lágrimas corriam e os pelos esticavam como se quisessem correr também. Não, não é possível. Desci em uma das ruas laterais, embalado, bufando, com ao travada no peito – para segurar o tamborim. Mas o moleque voltava à minha mente: fraco, pequeno, sujo, magro, engolido, só alma - sem carne, poderia ser irmão da mocinha. A MENINA. Meu deus, deus, deus... e não havia mais espaço. Lágrimas, secreção, gosma, vómito, náusea e mais vómito e choro e lágrimas. “O que eu fiz?”. A MENINA MORTA. No cantinho – pobre – sozinha entre as folhas e o lixo. “Ô Moçu, é sua cartera?” Continuava na minha cabeça. “Moçu, tá tudu beim?” Um galho seco esbarra. Abro os olhos. “Tá tudo beim, Moçu? U sinhô tá perdido? Qué ajuda?” Não era a minha cabeça, era Ele. Estava ali. Correra atrás de mim pela rua, descendo entre os cruzamentos. É claro que estou perdido – pensei. “Não, garoto, tudo bem”. “É quessa cartera caiu... é du sinhô?” O mundo inteiro era meu. Como ousa me resgatar, menino? Como você pôde me puxar de volta à humanidade quando eu era deus? Por que? “É sim, muito obrigado, agora vá”. “Tá tudu beim memo? U sinhô pareci cansadu”. “Eu sou um homem mau e você não quer conversar com um homem mau, certo?” “Eu cunheçu genti rúim, u senhô num pareci ruim”.

Nada mais me saía - perplexo. E lágrima: sussuro-soluço-silêncio. “Disculpa, moçu, eu num sabia. A cartera num é sua?” “Eu é que te peço desculpas, meu amiguinho”. Ao pai o que é do pai. Como eu poderia ser deus ou o segundo dele? Há muito para se fazer sendo gente e sentindo frio e fome e sede. Ele está ali não está? Entre eles? Aquela mocinha – no meio-fio – não estava sozinha. As pessoas, os prédios e as coisas. O mundo renascia para mim – não em deus, mas nos homens (o que é dizer o mesmo, de certa forma). É muito mais sentir e muito menos pensar. “Ô”. Quanta tolice a minha: a megalomania natural da humanidade. “Ô”. Tanta filosofia, teologia, biologia, tudologia, mundologia, coisologia e nós aqui, convencendo. É isso também, claro, mas não só. Nunca e de forma alguma. “Êi”. O bracinho voltara a me tocar. Com toda a digressão eu – mais uma vez – havia me esquecido da realidade “lá fora”. Não sei quanto tempo o rapazinho ficou ali me olhando, parado. “Me desculpa, mais uma vez”. Disse eu - agora sorrindo. “Entaum mi paga um lanchi qui Eu ti perdoou”.   



Lucca Tartaglia está onde Deus é servido conceder-lhe que esteja, em companhia dos anseios, desejos, moscas, mosquitos e outros elementos auxiliares do bom estado das casas e dos sonhos. Graduou-se (ou Graduaram-no) na Faculdade de Letras e Artes da Universidade Federal de Viçosa onde - por ocorrência - agora cursa o mestrado. É colunista na ContemporARTES desde que se tem por isso. Desenvolve pesquisas na área de Literatura (Cabala e Estudos Pessoanos).

1 comentários:

Renato Dering disse...

Na vida existem duas coisas que devemos lembrar. A primeira é de nossa existência, a segunda é esquecer que existimos por nós. Caso não se lembre do último, me pague um lanche, que te perdoo.

25 de outubro de 2014 às 22:02

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