terça-feira, 18 de novembro de 2014

Uma secretária de passado


Contrariando a (minha) regra básica de todo festival de cinema – a de que a graça não está em ver antes de todo mundo o novo Tarantino, mas em garimpar as fitas que jamais darão o ar dos créditos nem em catálogo de mostra de diretor iraniano underground –, desta vez não quis embrulhar meus neurônios mais navegantes e resolvi, por isso, atracá-los num porto seguro: o de Liverpool.

É lá que se passa boa parte do doc Nossa querida Freda – a secretária dos Beatles, cuja protagonista é uma quase setentona que, aos de-zes-se-te anos, e depois de frequentar fãzocamente os porões do Cavern Club, tornou-se o mindinho direito de John, Paul, George, Ringo e (Brian) Epstein, o primeiro empresário da banda.

Mindinho porque, apesar de colher autógrafos, dedicatórias, mechas de cabelo, pedaços de camisa e até mimos inusitados (como uma fronha dormida por Ringo) de seus patrões a fim de enviá-los (os mimos, claro) às membras do fã-clube – e de estar sempre tão perto deles a ponto de a imprensa, em dado momento, cogitar um casamento entre ela e Paul –, Freda procurou ser a garota mais nowhere possível, e em nenhum instante pareceu tirar proveito da situação para se promover ou ganhar uns trocados com souvenirs, furos ou biografias não autorizadas.

Tanto é que ainda hoje malha os dedos de secretária nos teclados da vida e raramente comenta com familiares e amigos os anos imersos no submarino amarelo. Ela mesma diz que só decidiu falar para a câmera do cineasta Ryan White quando se deu conta de que logo o neto recém-nascido encontraria a avó sentada numa cadeira, gato a tiracolo, e não imaginaria o que ela tinha feito na juventude.

Uma de suas responsabilidades (ou privilégios) era receber as centenas de cartas que chegavam toda semana à sua casa, ingenuamente transformada por ela em sede postal do fã-clube, que passou a presidir. Seu pai, coitado, nadíssima feliz com o trabalho da filha, é que se revirava para achar – entre milhares de love, love, love – as contas de água, luz e gás.

De certa forma, Freda era como essas contas: um resquício de vida-como-ela-é, um vestígio de sobriedade e comedimento, em meio a tanta histeria. Quase inacreditavelmente, a menina adolescente adulta – que, segundo a própria, amadureceu rapidamente naqueles anos – conseguiu manter os pés fincados no meio-fio da realidade, ainda que diariamente atravessasse abbey roads e penny lanes.

A certa altura do filme, ao ser indagada sobre um possível affair com um dos rapazes, ela pede entre sorrisos para pular a questã. Não se poderia esperar outra reação – à Monalisa – de quem foi tão íntima do mítico quarteto e, mesmo assim, encarava o emprego dos sonhos de qualquer beatlemaníaco como um emprego, sem aparentemente se deixar entorpecer pelo céu de diamantes que pairava sobre sua cabeça.

A você, admirador do Fab Four: se tiver a chance de ver e ouvir essa simpática história de bastidores – deliciosamente emoldurada por canções que vão da sessentíssima “I saw her standing there” à discretamente fofa (como Freda!) “I will” –, não pense meia vez. Garanta já seu ticket to ride.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

1 comentários:

izabel liviski disse...

Fabio, como sempre seu texto delicioso, e o tema desta coluna, bárbaro!
Já divulguei no face, para os que como eu, participaram de fãs-clubs dos Beatles.
abraço.

18 de novembro de 2014 às 20:29

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