terça-feira, 31 de março de 2015

Relatos selvagens


O filmaço escrito e dirigido por Damián Szifron renderia tantas crônicas e, consequentemente, tantos títulos para elas que, na incapacidade de escolher um só, deixo todos à disposição do leitor: “V de vingança”, “Um dia de fúria”, “Perto do coração selvagem”, “Instinto selvagem”, “Eles estão descontrolados” e assim até a loucura. Cada um deles dá uma ideia do que trata o longa argentino (Relatos salvajes no original).
 
Em seis histórias aparentemente cotidianas – que vão de um sujeito que tem seu carro rebocado a uma noiva que descobre a traição ainda na festa de casamento –, os personagens perdem as estribeiras e passam a agir como se não houvesse a tal lei do amanhã, que em geral nos faz contar até dez antes de voar no pescoço do chefe injusto, de furar os olhos do marido ou marida que nos traiu, de sequestrar e botar no micro-ondas o papagaio do 102, que não para de tagarelar desde a noite passada.

O primeiro e mais curto episódio, que antecede os créditos iniciais, já nos reserva lugar num avião em que todos os passageiros (coincidentemente?) conhecem um mesmo rapaz. O curta funciona como síntese do que veremos a seguir: histórias à beira de um ataque de surrealismo – que, no entanto, jamais deságuam na inverossimilhança. Ali a reação mais destemperada, a revanche mais primitiva, é sempre possível, provável até. Os muros do superego, da razão e do bom senso são derrubados pelos black blocs que residem em cada um de nós.

Além disso, o fato de parecer não haver limites para aquelas criaturas de repente tomadas de cólera – vide o duelo extremamente violento entre dois motoristas no terceiro conto – só amplifica a tensão e a imprevisibilidade das cenas seguintes. E é aí que o filme ganha nervos de thriller, embora as atitudes radicais de seus protagonistas – como as da noiva enganada – eventualmente provoquem risos. Aliás, o humor sangra em várias passagens, como naquela em que um policial pergunta a seus colegas se determinado incidente teria sido crime passional.

Sangram também sutilezas, ainda que o roteiro trilhe o caminho do exagero, às vezes até do absurdo, numa tentativa de esgarçar a humanidade de seus personagens. Uma delas se dá quando o especialista em demolições Simón (Ricardo Darín) prepara a implosão de um prédio em meio a um corredor pouco iluminado, onde piscam minúsculas luzes azuis; luzes semelhantes piscarão novamente em outro momento da trama, a fim de advertirem delicadamente o espectador sobre o que está prestes a acontecer.

O que está prestes a acontecer (e acaba acontecendo com maior ou menor intensidade em cada um dos relatos) se revela não só matéria digna do tabloide mais sensacionalista, como também amostra singular – nem por isso menos real, como temos visto nos noticiários e em toda a História – do que o ser humano é capaz de detonar nas suas horas mais extremas: explosivos de som, fúria e terror.

Somos todos campos minados, afinal. E o filme de Szifron, ao invadir as fronteiras de um território tão instável, prova que sabe bem onde pisa.






Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

2 comentários:

Anônimo disse...

O filme retrata bem a que ponto chegamos no planeta Terra....parabéns pela análise e pelo texto Fábio, sempre ágil e que fisga inevitavelmente o leitor, abraço!
Bel

31 de março de 2015 às 10:25
Fábio Flora disse...

Brigado, Bel. Beijos.

31 de março de 2015 às 11:14

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