A representação do feminino no mito de Aracnê
De acordo com a mitologia grega, Aracnê era uma
jovem tecelã, extraordinariamente talentosa. Seus trabalhos ficaram famosos e
sua habilidade era reconhecida por todos. Mas, à medida em que crescia sua
competência, também aumentava sua arrogância. Um dia alguém lhe disse que seu
talento provinha das benesses de Atena, deusa da sabedoria e das artes. Aracnê, orgulhosamente se insurgiu e disse que era melhor do que a própria Atena na arte de fiar e tecer.
Sabendo disso, Atena veio em pessoa para conhecer a jovem tão atrevida. Inicialmente disfarçada de anciã, provocou a tecelã, dizendo que ela deveria ser muito grata à deusa Atena, da qual herdara tão grande talento. Novamente Aracnê mostrou-se arrogante, dizendo que não devia a ninguém o seu dom e que estava disposta a competir com a própria Atena se fosse necessário, para mostrar que era melhor do que ela. Atena então apareceu, mostrando-se em todo o seu esplendor. Aracnê não se intimidou e na frente de todas as mulheres presentes, a desafiou. Começou então, a competição. As duas, a mulher e a deusa começaram a tecer no mesmo momento e com a mesma quantidade de lã.
O encontro entre a mulher e a deusa |
Cada uma escolheu um tema para sua tapeçaria. Atena retratou a cidade de Atenas e a glória dos deuses
gregos. Também mostrou, nos desenhos, o que havia acontecido com alguns mortais
que desafiaram os deuses, entre eles: Ródopo e Hemos castigados com a
transmutação em montanhas e Antígone como cegonha. Era um claro aviso para Aracnê.
Para finalizar a tapeçaria, acrescentou uma grinalda de oliveiras.
A disputa entre Atena e Aracnê,
ilustração de Ovidio, ‘Le Metamorfosi’, 1585
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Já Aracnê resolveu mostrar outra coisa. Não a glória, mas sim a crueldade dos deuses contra as mulheres:
Sua tapeçaria mostrava ação movimentada,
com violência e sofrimento. Ela descrevia, quadro após quadro, os crimes dos
deuses olímpicos contra as mulheres. Mostrava Zeus como um touro arrastando
Europa, como águia, raptando Astérea, como cisne raptando Leda. Aracnê não
apenas mostrava os crimes de Zeus, mas também as vítimas chorosas dos lascivos
Apolo e Poseidon. Sua tapeçaria descrevia sem piedade a brutalidade e as
trapaças dos homens e as súplicas lamentosas das mulheres, arrastadas para
longe dos filhos, da família, da pátria (NYE, 1995, p. 9).
Quando ambas terminaram seus trabalhos, ficou evidente a superioridade de Aracnê. Atena ficou perplexa ao perceber que a mortal era mais talentosa do que ela e num acesso de fúria, rasgou a tapeçaria de Aracnê.
A fúria de Atena
Não satisfeita, pegou sua lançadeira1 e começou a bater na cabeça da jovem repetidas vezes. Aracnê, em desespero, horrorizada, e percebendo o erro que cometera ao desafiar a deusa, tentou se enforcar, enrolando um fio em seu pescoço. Ao ver isso, Atena se compadeceu e a transformou em uma aranha, que se pendurou no fio. Então, surpreendentemente e sem que ninguém esperasse, Aracnê, renascida como aranha, recomeçou a tecer...
Imagem retirada de:http://pt.dreamstime.com/imagens-de-stock-
aranha-da-j%C3%B3ia-com-as-gemas-no-web-do-ouro-image17993604
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O mito de Aracnê tem muito a dizer sobre a representação do feminino. Há nele inúmeras simbologias inerentes ao universo das mulheres. A arte de tecer sempre esteve ligada às mulheres e à sua condição na sociedade. Lessa (2011), esclarece:
Ao refletirmos sobre a vinculação estreita
entre a arte da tecelagem e o universo feminino na Grécia Antiga não podemos
deixar de lembrar o diálogo emblemático estabelecido pela personagem Lisístrata
da comédia homônima de Aristófanes apresentada em 411 a.C. com o
Conselheiro (Proboulos). Ao ser questionada sobre as formas femininas para
conter a desordem nas póleis em função da guerra, a protagonista da comédia responde
usando a metáfora da experiência feminina na tecelagem e na fiação. Vejamos a
fala de Lisístrata: “Como um fio, quando está embaraçado, como este, tomando-o,
puxando-o com fusos deste lado e daquele outro, assim também esta guerra
acabaremos, se nos deixarem, desembaraçando-a pelos embaixadores, deste lado e
daquele outro. (Aristófanes. Lisístrata, vv.
566-70)” (LESSA, 2011, p. 146).
O mesmo autor, ao discorrer sobre o mito de Aracnê, salienta que a deusa Atena era ligada à guerra, sendo associados à ela, além da arte, vários outras questões,
como a aversão ao casamento e à maternidade.
Quando Aracnê desrespeita Atena,
demonstra que não aceita a superioridade vinda de outra mulher, ainda que esta
mulher seja uma deusa guerreira.
A maldição de Aracnê,
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Essa insubordinação, a meu ver, ilustra o
momento em que as jovens mulheres questionam a autoridade de suas mães. Outras conexões podem ser feitas, relacionadas às várias facetas do feminino e também aos vários estágios de amadurecimento da mulher. Se por um lado, Aracnê mostra a arrogância ingênua da juventude, momento em que se acredita que tudo é possível, Atena também demonstra a solidariedade e a capacidade de perdoar, que se adquire com a sabedoria e o poder da maturidade. Fica evidente, também, a incrível capacidade de superação feminina, quando Aracnê, reduzida a uma pequena aranha, continua a tecer, sem desistir de sua essência.
Sedução de Aracnê,
http://www.scrivere.info/poesia.php?poesia=165274&t=Seduzione+aracne
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O mito de Aracnê, como tantos outros, pode nos ajudar a compreender as diversas representações do feminino. Porque em alguns momentos, nós mulheres, em alguma medida, podemos expressar as representações de Atena e/ou Aracnê. Seja na busca contínua pela excelência profissional e pela realização de se fazer o que gosta e o que sabe, seja pela resiliência necessária em tantas situações, demonstrada pela capacidade de se reinventar e de se superar. Também quando nos atrevemos a questionar o poder institucionalizado (independente da instância ou do tipo), mostramos nossa face Aracnê. Este é um mito riquíssimo em sua simbologia e com certeza merece mais estudos e pesquisas.
http://yunners.deviantart.com/art/Step-into-my-parlour-57239091
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1. Componente dos teares (...) que contém um pequeno cilindro (carretilha) onde se enrola o fio. Adaptado de: http://www.dicio.com.br/lancadeira/
Referências:
LANDMANN, B. Ainda um
pouco mais sobre o Congresso de ARTETERAPIA. (2010). In:
http://ayssoarteterapia.blogspot.com.br/2010_11_01_archive.html
LESSA, F. de S. Expressões do feminino e a
arte de tecer tramas na Atenas Clássica.
Acesso em 03/05/2015
NYE, A. Teorias feministas e as filosofias
do homem. Rio de Janeiro: Editora Rosas dos Tempos, 1995.
O mito de Aracnê. In: http://www.oocities.org/~esabio/aranha/o_mito_de_aracne.htm
Acesso em 04/05/2015
Imagens retiradas da Internet sem objetivo
comercial:
http://pt.dreamstime.com/imagens-de-stock-aranha-da-j%C3%B3ia-com-as-gemas-no-web-do-ouro-image17993604
http://www.ferraraitalia.it/punti-in-aria-la-sfida-di-aracne-44441.html
http://www.appuntidipinti.it/?p=9 (Paolo
Veronese, “Aracne” (dettaglio)
Venezia, Palazzo Ducale) com a teia
Venezia, Palazzo Ducale) com a teia
Vanisse Simone Alves Corrêa é doutoranda em Educação pela UFPR e co-editora da Revista Contemporartes. Ela, como todas as mulheres, já vivenciou as várias facetas de Atena e Aracnê. No momento, está mais para Aracnê, tecendo sua tese e tentado vencer não uma poderosa deusa, mas o inexorável deus do tempo, Chronos.
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