quinta-feira, 21 de maio de 2015

Algumas coisas pequenas




 - mens agitat molem -


LEILA

Olhos pregados no céu como urubus pregados no teto - sobre o altar, uma rosa profunda como um feto surpreende o templo do corpo - dentro do banheiro, debaixo da água, plantava satisfeita o desejo morno da mão na terra fértil da vontade e acalmava febril o fogo líbio, repente sereno do desmazelo – adentrando sombria e úmida a presteza, suspirando no vício a palma da mão suave, sobre os calcanhares, como planta recente que espera, saboreando o momento manifesto entre o latejo e a latência das pétalas a riste. O pulso da porta rompeu o som inerte da retirada. Era Mônica, que pedia pressa – apressei-me.


MÔNICA

O animal era sujo. Imundo - Entre a sala e o banheiro. Caminhava leve, despreocupado – sua casa, seu corredor e sua vontade. Sobre os tacos - olhava, quando de vez, e parecia sorrir. Voltava a caminhar. Eu já havia encontrado o costume. Sentada no sofá, olhando aquela borra estranha: tufos - espalhados pelo corpo raquítico - de pelos e couro. Um quadrupede. Estava lá, tão real quanto possível. Passava, parava, ouvia e – como nada – saia por uma das janelas. Recorrentemente me visitava - o animal. 


RICARDO

uma. duas. três. quatro. cinco vezes. lá não pega telefone. talvez ela não tivesse ido. talvez ela estivesse esperando para falar uma última vez.  boa noite, Caco. volto amanhã, Caco. queria ouvir sua voz. seis, sete. deixe seu recado após o sinal. preciso ouvir. a porta de vidro, a varanda e as luzes de um prédio na rua de baixo. Eu não demorei. o que mais machucava era a certeza - ela estava no seu lugar. a vida de cada um. assim eu posso trabalhar e você também. nunca havia chorado tanto. nem quando era criança e tinha – por direito – um choro ou dois. ainda com o hábito antigo de sentar-se encolhido no escuro, deixando a carne escorrer enquanto o espírito se contorcia.


MÔNICA

Todos para casa. Pela metade. Todos. E o rapaz com a moça do lado sorri dentes à vontade. Um carro a contra-pelo avança. Duas senhoras caminham sem dar por isso. “Eu falei pra ele, mas num adianta, Joice”. Tomba um alaranjado – não sol – por detrás da linha. Lugar impossível. Nuca. Nunca. E dum lado (de mim) há nuvens.  Há noite. Dum lado de mim há curvas e retas e verde. Doutro – que fome. E o sono de estar em casa. Mais uma vez. Tapete negro e cinza. Reta. Reto. Longo e longe. Imagine. “Imagino”. Mais um passo. Mais um passo. Azebramento. Armas carregam homens – campo de asfalto – de asfódelos – trincheiras, calçadas, sinais. vermelho. Vai abrir – abrindo – abril. Um cão se esquiva e esconde. Mais um passo.

CALDAS

Bom dia, Sinhô Caldas. Dia, Francisco. Brigadu sô tê trazid’a minina onti viu? A Tereza atrazô nu sirviçu i a pobrizinha ficô esperanu. Tá tudo bem, Chico, eu ia passar por lá mesmo. Memo assim brigado. Vai cum Deus. O homem de meia idade, calvo e feliz, abriu a porta do seu carro feliz. Entrou com um sorriso calmo e girou a chave. Macio. Ajeitou-se sorrindo. As mãos no volante enquanto conferia – pelo retrovisor – o cabelo partido. A porta da garagem, o sol, a rua, o trânsito e o caminho. Um emprego feliz atrás de uma mesa feliz. Estava tudo bem.


JOÃO ROBERTO

Que ficaria tudo bem – ele pensou. “Vai ficar tudo bem”. Quando tivesse tempo, dinheiro, família, casa e vontade, e tivesse um emprego e poucos problemas e um gato e algumas manhãs. Pensou que poderia ser – de fato – feliz e sorrir para as pessoas e dizer “bom dia, cidadão” - sinceramente. Naturalmente. Sem mentir. Depois que tudo viesse, ai sim – ficaria bem. E então (ele) sentou-se. olhou para o teto. pendurou os olhos e esperou. esperou. esperou. “Vai ficar tudo bem”.


[...]

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