domingo, 10 de maio de 2015

Miniabismos




Outros tempos. Tudo é diferente. Não sei se mais fácil (pra mim, mais difícil).
Tempos em que não é suficiente ser. Tempos em que não é suficiente estar. É preciso postar.
...
Assisti Édith Piaf dia desses. Tem uma passagem no início do filme, ela ainda é criança, sua mãe cantando na rua pra ganhar a vida.

pequeno pardal



Antigamente, não tinha internet. Antigamente, se você queria mostrar sua arte pra um número de pessoas e ninguém te conhecia, tinha-se que pôr a cara na rua.
Antigamente também, se você queria gritar pra todo mundo ouvir, ou também punha a cara na rua, ou noticiava aos jornais, que podiam divulgar sua notícia, ou não.
Mas hoje, tem-se o Facebook, o Instagram, o Twitter, os dois primeiros, nossos íntimos Face e Insta.
Não posso dizer que já não tirei proveito. Ao contrário, fui das primeiras a fazer uso desta "rua" dentro de casa e pôr a cara pra fora, postando meus versos (sempre inéditos e quase diários) e com eles minhas elucubrações e ensimesmamento, memórias e reflexões, na rede. Pra uma massa pouca, é verdade, mas suficiente pra vincular meu nome ao que eu sempre fora sem que ninguém soubesse: uma escritora.
E muitos outros, como eu, se aproveitam disso. Se não para gritar suas rimas, pra despejar suas mágoas, ou sua revolta, ou seu patológico otimismo (ou pessimismo) ou seus versículos (qual o pregador na Oliveira Lima, bíblia aberta na mão, conclamando os transeuntes a expulsar Satanás - para ele, o meio pra alcançar Jesus).
Como dizia minha psicóloga, expor na rede social é como ter autorização pra gritar no meio da rua, em alto e bom som, suas angústias - coisa que gente de bom tino jamais faria na realidade, mas que a internet permite seja feita, sem risco de ser denominado por nome esdrúxulo ou internado em manicômio.
E fazemos, como fazemos!....
E instantaneamente, imediatamente, não se admitindo viagem sem foto da atração ou monumento, ou check-in do lugar em que se aterrissou, no mesmo minuto.
O mesmo valendo para o amor. Se antes o namorado pixava o muro da vizinha com "eu te amo namorada", ou mandava fazer uma faixa e pendurar em frente à casa dela, pra que todos vissem o tamanho do seu amor (que graça tem amar em segredo?), hoje não se admite um amor verdadeiro sem declaração de amor no Facebook, sem foto coladinhos no Instagram.



Por que ficamos tão frágeis??
O que aconteceu conosco, com nossa intimidade, com as pequenas coisas e segredos, os detalhes, os sussurros?? O que houve com as coisas que acontecem entre quatro paredes, sem plateia ou testemunha, coisas que podiam muito bem não ter acontecido, não fosse o mais precioso da nossa memória, ali pronta pra nos provar que, sim, aconteceu?
Por que, de repente, tornamo-nos em pequenas celebridades e ser anônimo já não basta??
Não era suficiente sermos reis e rainhas do nosso próprio mundo? (como dizia o texto da peça que vi sexta-feira: "cinemonstro") - porque isso somos, com certeza somos e seremos sempre.
Sei que são tempos solitários. De verdade, não se tem quase ninguém. A gente transita no local de trabalho, às vezes cheio de coisa no peito, mas a objetividade e o profissionalismo nos barram o caminho do desabafo, do compartilhar.
Há também a tendência atual, apoiada no discurso da
autoajuda, de não se falar do mal, de não se mencionar o que está dando errado, de pronunciar só o que é bom, (como se assim, a realidade transmudasse-se em coisa diversa do que realmente é). Só são aceitos, sem ressalvas, comentários otimistas e notícias felizes - e assim vamos vivendo em disfarce, acobertados por nossas máscaras, isolados em nossos apartamentos e casas (os miniabismos que construímos), amparados pela propaganda enganosa dos nossos inúmeros "curtir" e vícios de toda espécie: do café à cerveja, do chocolate à tarja preta.



É uma contradição muito grande que não seja recomendado conversar com o colega de trabalho, mas não haja problema qualquer em abrir-se na rede social, das pequenas às grandes coisas.
Há quem condene esta prática, mas não há quem não a use, senão postando, observando quem posta (o que dá no mesmo, como o usuário que alimenta o tráfico, apenas por consumir).
...
Se só continuássemos a cantar na rua, não seria tão mal. Ainda que gritássemos como loucos pra cidade toda ouvir quando temos medo, quando temos sono, quando alguém nos machuca ou quando nos amam, não seria assim tão mal... Isso, se não implicasse numa cessão de nossos pequenos tesouros e na desqualificação deles ante uma eventual impopularidade facebookiana. E se não fosse, também, um instrumento de engano (mais um entre tantos) da nossa verdadeira condição - de criaturas vivendo numa área de passagem, sem saber direito pra onde vão e o que fazer pra preencher essas horas brancas, cheias de nada.
Vive-se muito na fantasia. Tanto, que muitas vezes põe-se a perder o verdadeiro. Conversas e trocas sem nenhuma importância que tomam o lugar do diálogo em família ou com a pessoa amada. Gente que se encanta com o que sequer conhece e que entrega o valioso e raro tempo, que quase todo mundo queixa não ter, com o imaginário e acaba por construir coisas que nem pensou se queria fossem materializadas...
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Cantemos, cantemos, é tão magnífico o cantor na rua, mas dispensem-se as caixas de som!... Um acústico cai muito melhor neste caso. Pra que a balbúrdia serve? (apenas poluição, desvio de energia, peso desnecessário...).
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E é por isso que hoje, dia das mães, que desta vez lembrei (ou me lembraram, pra ser sincera) não vou falar da minha mãe, nem da experiência de ser eu mesma uma mãe (e olha que teria muito a dizer sobre isso!). Hoje, depois que este post automaticamente for publicado, vou dar um pulo na outra rua, um abraço na nossa mascotinha e presenteá-la com um mimo de dia das mães. Depois almoçar junto com ela, torcendo pra que tudo se dê em paz e cada momento possa revelar o imenso amor que sinto e toda gratidão, sem que seja necessário, para selar essa intenção, gritar pra cidade ouvir o que se passa no fundo do meu coração, (apesar de, pensando bem, já tê-lo feito agora).
E, já que é assim, a música aí de baixo, eu dedico à minha mãe e a todas as mães de todos os mundos.




pr'aquela que mais que ninguém no mundo, está pro que der e vier










Larissa Germano é autora de "Cinzas e Cheiros" e escreve nos blogs Palavras Apenas (naoapenaspalavras.blogspot.com) e Nunca Te Vi Sempre Te Amei (cafehparis.blogspot.com), Tem perfil no facebook e no twitter e a página Lári Prosa e Trova no facebook. É também compositora intuitiva e tem perfil no Sound Cloud e Youtube.

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