Sempre ter o que fazer
Desde pequenos somos assim... e agora, vamos brincar de que?
Por que, não sabermos de antemão o que será feito do tempo, provoca em nós essa ansiedade, instabilidade, desejo de não-sei-quê: então... e agora? Acho que é por isso, pra não lidar com essa dúvida, que a gente inventou a tal da rotina (arquitetamos nossa própria prisão) dividida em maior porção para o trabalho, e demais porções para a subsistência, higiene, alimentação - coisas que nos tomam também tempo valioso no dia-a-dia.
E o que sobra, a gente preenche com ânsia incessante: eventos culturais, cinema, teatro, encontro com os amigos, festa na escola das crianças, dia disso, dia daquilo. Tudo, uma artimanha para não se deparar com a pergunta: e agora? o que é que eu faço?
"Palpita dentro uma mística
Branca como algumas horas
Em pétalas espargidas..."
E os tempos de hoje são ainda piores (ou melhores) com relação a isso. Com a ajuda da internet, do Facebook, do what's app, não damos conta de tanto evento diário - qualquer que ele seja.
...
Quando penso no não ter o que fazer, como comparação, penso numa casa no meio do sertão, com quase nenhuma plantação - tempos de seca, longe uma casa da outra, vida restrita à família que ainda ficou, aos poucos animais que ainda resistem. Lugar em que nada mais parece irá acontecer na vida da gente.quando parece que nada mais acontece na vida da gente |
Mas o não fazer pode ser também pacífico e doce como um dia na praia, estirados na areia, ouvindo o estourar das ondas e olhando as nuvens que dançam no céu azul.
Ou um dia de chuva fina e céu cinza. Aquele dia "perdido" dentro de casa, que quase já não existe, dentro de tantas possibilidades e alternativas que a vida atual, principalmente urbana, nos dá.
Ou mesmo um dia no interior, onde o tempo roda mais devagar. (Como temos medo do devagar! Essa contagem regressiva que não se adianta e que nos devolve ao vazio de sermos, sermos apenas - árvores balançando ao vento, as ondas de calor se propagando no ar - aquela miragem, reflexo que modifica o contorno das coisas - flexibiliza).
Os domingos... o que dizer, pois, mais de dias brancos, do que domingos? Esses dias que hoje também podemos preencher até o limite com coisas e afazeres, porque nem nesses dias o comércio fecha mais.
Nosso desespero pelo preenchimento... Não há mais feriado, dia santo, dia de domingo... todos os dias temos acesso a tudo - tudo está aberto e disponível, principalmente na cidade grande.
E ainda assim temos que correr de um lado a outro, confirmamos comparecimentos a eventos impossíveis de ir e, no mesmo movimento, todas as instituições a que estamos atrelados, o trabalho, a escola dos filhos, os grupos de amigos "online", todos empenhados em "acontecer".
E isso parece tirar o valor dos "eventos", das "festas", do "ter o que fazer".
Se antes, aguardava-se a festa do meio do ano ou do fim de ano ou de aniversário da cidade, como uma oportunidade que não se repetiria tão cedo e implicava em confeccionar a roupa, cuidar de todos os preparativos, fazer planos sobre o grande dia, hoje há tanto o que fazer todo o tempo, que não podemos mais distinguir o dia valioso dos demais. As pessoas valiosas das demais. Pintamos tudo com a mesma tinta e o brilho próprio das coisas, único, parece não ter mais por onde escapar.
E toda essa ocupação parece não resolver o dilema, apenas nos afastar dele momentaneamente. Por que por mais que a gente fuja e preencha todos os espaços e fendas, o dia, o tempo, uma hora nos trará aquele instante de essência, aquele instante sozinhos, conosco apenas e mais nada, e em que nos perguntamos, como Clarice, em Perto do Coração Selvagem:
"Papai termina o trabalho e vai encontrá-la sentada chorando.
- Mas que é isso, menininha? - pega-a nos braços, olha sem susto o rostinho ardente e triste. - O que é isso?
- Não tenho nada o que fazer."
ouça esta canção e entenda com o coração, o que não está dito.
ouça esta canção e entenda com o coração, o que não está dito.
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