Elisabete Não
Elisabete
Não. É um nome peculiar para uma pessoa curiosa. Em uma manhã fria de inverno –
banal e comum – nasceu um corpinho minguado de
pressa, aos oito, quase nove, sacudido de vontade e frio, no Hospital Santa
Helena, sobre os cuidados de um tal Dr. Reis - chegado há pouco da Europa.
Sua
mãe não resistira à filha e ficara órfã de vida – sua mãe de mesmo nome e de
pouca idade, que vestia roupas estranhas ao chegar na emergência. _Deve ser do estrangeiro.
Deve
ser.
Foi uma enfermeira que teve a ideia. _Foi a última palavra da mãe e, além disso,
parece bem apropriado a uma garotinha que se negou a vir quando a esperavam! O
médico não concordou, as diretores do hospital não concordaram, mas a
enfermeira e a responsável pela adoção chegaram a um consenso. _Será Elisabete Não, fica o primeiro pela
mãe e o segundo pela filha.
O
tempo passou. A menina cresceu por dentro e por fora. A mãe adotiva,
a Sra. Dudalski, nunca escondeu de Elisabete o episódio da maternidade e até
ajudou na tentativa frustrada de encontrar o pai biológico ou a família da primeira
Mãe. Era como se nunca tivessem existido. A Sra. Elisabete, a Mãe, chegara ao
hospital sozinha, muito pálida, já em trabalho de parto. Não havia com ela
nenhum documento e, não fosse pelo Dr. Reis, um homem que não vendera a alma
pela profissão, teria padecido ali, na fila da burocracia. Ninguém, até onde se
sabe, procurou por ela – nenhum anúncio nos jornais, nenhuma foto pelas ruas,
nenhum telefonema. Nada.
Uma
vez, notando que a filha - agora adolescente - estava amargurada com tamanha
falta de informação, a Sra. Dudalski, como leitora voraz que era e por dote da
profissão, começou a escrever-lhe histórias. Pequenos gênesis reunidos em um caderno sobre o título de Livro das Origens. Nestes textos, a Sra.
Elisabete era um anjo que descera do paraíso para ter sua menininha, noutro era
uma importante espiã ou uma princesa de um reino fantástico e oculto.
O
passado diluiu-se em sonhos futuros. Adolescência e – depois – adultice.
Antes da faculdade, decidira pelo trabalho. Design
de Experiência - UX. Entrou em um curso de alemão, conheceu Vincent van
Gogh, Rimbaud, aprendeu hata-ioga, meditação, descobriu Lourenço de Pádua
Neves, seu primeiro namorado, sorriu, chorou, fez artesanato, inventou Renato
Oliveira, chorou, Carlos Maia Filho, segundo namorado, sorriu, comeu chocolates
como se respirasse, matriculou-se no teatro, terminou, escreveu um livro,
respirou como se comesse chocolates, rasgou seu livro e foi para uma festa.
Naquela
noite – excepcionalmente – ela saiu com um desconhecido e – excepcionalmente –
deixou que ele entrasse. Ele não quis dizer o nome. _Nomes atrapalham tudo! Era sereno, com um olhar preocupado,
mas confiante. _Você é tão sereno!
Além do estranho fato de Elisabete Não aceitar em sua casa um estranho – poucos
entraram lá depois que sua mãe morreu e ela passou a morar sozinha – outras
coisas pareciam estranhas. Bom, o álcool faz coisas e - claro - poderia ser
isto. Também era junho e a noite do solstício é sempre mais longa. Certo é que
a sombra lá fora não passava. O sono veio, os dois dormiram, ela acordou. Ainda
noite, ainda frio. O Homem havia partido, a casa havia partido, a rua havia
partido – só ela ficara. Ao levantar, tonta, confusa pelo sono e pela volta,
forçou os olhos para entender as paredes do beco onde se encontrava.
Era
mesmo um Beco.
Mil
coisas passaram no intervalo de uma gota. Seria ele um contrabandista de
órgãos? Teria a violentado? Que lugar era aquele? Que beco era aquele? Que dia
era aquele? E quantas horas são? Por que ainda é noite? Será que estou machucada? Ela estaria machucada? Será que me roubaram? Roubaram-na? _Meu celular...
Elisabete
Não começou a procurar o aparelho. Nada nos bolsos. Atordoada e com os olhos em
lago – quase despencando, quase cachoeira – seguiu rumo à rua. _Meu Deus, me ajude, Senhor! Pensava na
mãe. _Mãe! Suas pernas e braços
estavam gelados, doía. Um aperto na bexiga. _Calma,
Elisabete!
Ela
conhecia a rua.
Edgar
Campos, beco da lanchonete Quarteirão. Já havia passado por ali algumas vezes,
não era longe de casa. _Vou pedir ajuda
na lanchonete! Ela pensou em pedir ajuda na lanchonete. _Ué...
Depósito
Braga & Cia.
_Fecharão a Quarteirão!? Não
fazia tanto tempo assim desde a última passada. _Não faz muito tempo desde que eu passei por aqui! Uma fisgada na
altura da barriga fez os olhos descerem e as mãos encontrarem o umbigo. Não
bastasse todo o desespero de acordar em um beco escuro depois de passar a noite
com um estranho, como se não fosse o suficiente estar desamparada em meio à
madrugada – ainda era madrugada –, a barriga da menina – agora mulher – estava
inchada, muito inchada, grande como uma melancia.
_Como é possível?
Tomava conta o soluço. _Não, mas...
Como
poderia ser possível?
A
respiração tornou-se difícil e - com a tempestade nos olhos - a janela da vista
embaçava. Sobre o abismo da boca - a mão esquerda. Sobre a colina do ventre – a
mão direita. As pernas amoleceram e o escuro da noite escureceu. Desmaio. Quando
tempo havia se passado? Perdera a memória? Um trauma causado pela súbita
gravidez? Quanto tempo desde o quarto? Quanto desde aquela noite? Tudo parecia
uma sombra perpétua, incombatível. As roupas eram as mesmas e os sapatos
também. O que aconteceu? _O que?
Acordou.
Estava
na calçada. Algo queria sair. Não importava agora o que tinha acontecido. _Não importa agora! Ela precisava chegar
até a ajuda. _Eu preciso de ajuda! Tentou
criar lucidez onde só havia desespero. Morou naquela cidade a vida inteira. _Eu sempre morei aqui! Se realmente
estivesse grávida, onde ela deveria ir? _O
Hospital!
Apontou
suas energias para a rua principal – o dia começava entre os prédios. As construções
podadas, menores do que ela podia se lembrar. O pânico deforma tudo, do sonho
ao concreto. O hospital não ficava longe. _Não
é muito longe! O Diabo era o frio e o inferno era cedo. As ruas pareciam longas e intermináveis. As
pontadas aumentavam. _Quase lá!
O
Hospital estava no fim da avenida - na Encruzilhada Abrantes. _Só mais alguns passos, Elisabete! Um
enfermeiro que estava na porta correu para ajudá-la. Um homem alto com um
bigode extravagante. _Socorro! Ele
gritou. E vários uniformes brancos saíram para ajudar a Sra. Não. O corpo se
largou nos primeiros braços. As mãos que sustentaram todo aquele peso – da
barriga, do esquecimento, do beco escuro, do desmaio e da calçada – pareciam
com as mãos de Deus. _Qual é seu nome,
querida?
Outra
ausência se aproxima.
_Elisabete. Ela
murmurou. Um homem de sotaque estranho apontou a maca. _Doutor, ela precisa deixar os documentos. Claro, antes de ser atendida,
ela precisava provar que tinha um nome e, ainda mais importante, provar que
tinha um registro, um número. _Deixe
disso! Respondeu o médico. _Sra. Elisabete,
procure ficar calma.
As
lâmpadas do corredor creme passavam como gotas de luz. A imagem turva de
cabeças, a respiração saindo e entrando estrondosamente nos pulmões. Uma mulher
perguntou-lhe a idade. _Quantos anos a
senhora tem? Elisabete não conseguia responder. Pensou nas mães – do céu,
da terra e da cria. _Quantos meses, Sra. Elisabete?
Uma voz perguntou, mas nada respondeu.
Cesária.
Por
um momento, a tormenta se tornou calma e sossego. Não havia mais dor. Os
sussurros desapareceram. O frio desapareceu. Seria a morte? _É assim morrer? Elisabete lembrou-se de
uma vez quando era muito pequena. _Lembro-me
daquela vez! Havia saído para comprar balas, orgulhosa por ir até a esquina
e apanhar um bocado de besteiras no armazém Dos
Costa, quando dois cães a perseguiram. Ela correu, eles correram. Aos
prantos, ela gritava pela a Sr. Dudalski e, de repente, a mãe abriu o portão e
os braços. Ela bateu seu corpo contra o dela, travou as mãos em suas costas e
chorou aliviada. _Eu estava salva! Estava
no colo da mãe. _É estranhamente parecido,
não é? Se aquilo fosse a morte, era muito parecido.
_É uma menina!
_Uma menina, Sra. Elisabete!
Uma filha. _Eu
tenho uma filha? Ela tinha uma filha. _Uma
linda menininha.
A
fraqueza. O medo de deixar sua cria sem pai, sem mãe, sem nada. _Temos um nome para ela, mamãe? Indagou
a enfermeira em tom infantil. Elisabete queria falar Maria. Maria da senhora Dudalski, Maria de Cristo. Mas resumiu –
emocionada – num mover de cabeça. Ainda não se lembrava de nada. Naquele
momento, a situação era o suficiente. Voltou-lhe à memória o Pádua Neves, as
aulas de Teatro, o patrão Antônio Vasques, a casa da mãe – sua casa, o sabor do
chocolate, a manhã de agosto em que perdera o primeiro dente e ganhara o
primeiro trocado, o título de alguns livros, de alguns amigos e de alguns
episódios em flash e do beco escuro e da calçada e do choro vivo da filha.
_E qual é o
nome da princesinha? Elisabete já sentia qualquer coisa de passagem. _É impossível dizer. Mesmo se pudesse,
ela não saberia dizer. O calafrio corriqueiro da descida. _Ela perdeu muito sangue. Nem frio, nem quente – era morno, como um
estado febril. Esforçou-se ao máximo para soltar o nome, para desprender da
língua a palavra e libertar a voz dos lábios abandonados. _Maria. Ela queria dizer. _É
Maria.
_ O que a
senhorita acha de Elisabete? É um nome lindo, não é? Como o da mãe.
_ Não...
1 comentários:
Nossa... NOOOOOOSSSAAAA! AGORA EU ENTENDI!!!!
17 de julho de 2015 às 09:35Postar um comentário
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