sábado, 8 de agosto de 2015

A Causa Secreta, de Machado de Assis: antecipação da literatura policial?



Muito já foi escrito a respeito do romance machadiano, inclusive, sob vários aspectos literários, sociais, religiosos, filosóficos etc. No entanto, conforme a crítica salienta, a contística machadiana não é tão estudada quanto o romance. Neste presente ensaio, objetivamos analisar e discorrer um pouco acerca do conto “A causa secreta”, presente na coletânea “Várias Histórias”.


O conto narra a história de Garcia, Fortunato e Maria Luísa. Em um primeiro momento, encontramos os três perplexos por algum motivo que mais tarde será explicado. A narrativa, iniciada in media res, regride no tempo e foca-se sobre um eixo temporal linear, relatando o início da relação dos três personagens apresentados ao leitor. Nos deparamos então com Garcia, um estudante de medicina que acaba conhecendo Fortunato devido a um ferido a quem os dois foram socorrer. Nesse primeiro momento, Fortunato se apresenta como um verdadeiro altruísta, no entanto, ao rir-se do ferido que, já curado, vai lhe agradecer, Garcia começa a perceber que a bondade de Fortunato era algo além disso.
A partir de então, Garcia passa a fazer a vez de um verdadeiro detetive que busca a compreensão das atitudes e pensamentos de Fortunato.  Na verdade, o próprio narrador o apresenta como alguém analítico, que possuía a capacidade de decifrar a mente humana:

Este moço possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de compor os caracteres, tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um pretexto, e não achou nenhum. (ASSIS, 1994, p. 30).

Ao presenciar o mal trato de Fortunato para com o ferido, Garcia resolve tentar entender os verdadeiros motivos daquele. É interessante notar que o próprio narrador dá ao personagem a característica de analítico, pois este tinha “o amor pela análise”. Ora, alguns anos mais tarde, a característica analítica fará parte da classificação dos detetives em romances policiais. Percebemos, então, que algumas décadas antes do surgimento propriamente dito do que viria a ser conhecido como “romance policial”, o narrador machadiano já nos apresentava um personagem cuja curiosidade faz com que ele tente deduzir e descobrir a respeito dos pensamentos de outro personagem até o ponto de solucionar o mistério e chegar a uma conclusão: “Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem”. (idem. p. 33). Ao final do conto, Garcia encontra Fortunato torturando um rato e em seu rosto estava uma visível sensação de prazer masoquista, graças a isso o jovem médico pôde chegar à conclusão acima referida.

Notamos, portanto, que mesmo anterior ao surgimento do gênero romance policial, Machado de Assis já nos apresentou um personagem que possui características próprias de um detetive. Na verdade, os detetives clássicos viriam a ser criticados devido aos seus métodos científicos quase que laboratoriais. Como nos diz Chandler, “o lógico implacável produz tanta atmosfera quanto uma prancheta de desenho. O detetive científico possui um laboratório reluzente e novo, mas lamentavelmente não possui um rosto”. (CHANDLER, [s.d.], p. 171). O nosso personagem busca solucionar seu mistério não se utilizando de ciência ou analisando pistas concretas, mas analisando o rosto de Fortunato, as expressões e tentando adivinhar os sentimentos que motivavam tais comportamentos sádicos por parte de seu amigo.
Por fim, se formos compartilhar as idéias de Todorov que diz que “o romance policial por excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se adapta (TODOROV, 2003, p. 95), poderemos supor que esse conto machadiano antecipa a consolidação de um novo gênero literário. O que não seria exagero de nossa parte, visto que a crítica afirma em uníssono o caráter atemporal da obra do Bruxo de Cosme Velho.

Welton Pereira e Silva é mestrando em Letras: Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Viçosa (MG). Cursou Letras: Português e Literatura também na UFV e se licenciou em Português na Universidade de Coimbra, em Portugal. Trabalha com a Análise do Discurso, mas seu lado crítico literário persiste em continuar. 





Referências bibliográficas:
ASSIS, Machado. Várias Histórias. Obra Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
CHANDLER, Raymond. A simples arte do crime. In Pérolas dão azar. São Paulo: Record, [s.d.]
TODOROV, Tzevan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.


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