A Causa Secreta, de Machado de Assis: antecipação da literatura policial?
Muito
já foi escrito a respeito do romance machadiano, inclusive, sob vários aspectos
literários, sociais, religiosos, filosóficos etc. No entanto, conforme a
crítica salienta, a contística machadiana não é tão estudada quanto o romance.
Neste presente ensaio, objetivamos analisar e discorrer um pouco acerca do
conto “A causa secreta”, presente na coletânea “Várias Histórias”.
O
conto narra a história de Garcia, Fortunato e Maria Luísa. Em um primeiro
momento, encontramos os três perplexos por algum motivo que mais tarde será
explicado. A narrativa, iniciada in media
res, regride no tempo e foca-se sobre um eixo temporal linear, relatando o
início da relação dos três personagens apresentados ao leitor. Nos deparamos
então com Garcia, um estudante de medicina que acaba conhecendo Fortunato
devido a um ferido a quem os dois foram socorrer. Nesse primeiro momento,
Fortunato se apresenta como um verdadeiro altruísta, no entanto, ao rir-se do
ferido que, já curado, vai lhe agradecer, Garcia começa a perceber que a
bondade de Fortunato era algo além disso.
A
partir de então, Garcia passa a fazer a vez de um verdadeiro detetive que busca
a compreensão das atitudes e pensamentos de Fortunato. Na verdade, o próprio narrador o apresenta
como alguém analítico, que possuía a capacidade de decifrar a mente humana:
Este moço
possuía, em gérmen, a faculdade de decifrar os homens, de compor os caracteres,
tinha o amor da análise, e sentia o regalo, que dizia ser supremo, de penetrar
muitas camadas morais, até apalpar o segredo de um organismo. Picado de
curiosidade, lembrou-se de ir ter com o homem de Catumbi, mas advertiu que nem
recebera dele o oferecimento formal da casa. Quando menos, era-lhe preciso um
pretexto, e não achou nenhum. (ASSIS, 1994, p. 30).
Ao presenciar o mal
trato de Fortunato para com o ferido, Garcia resolve tentar entender os
verdadeiros motivos daquele. É interessante notar que o próprio narrador dá ao
personagem a característica de analítico, pois este tinha “o amor pela
análise”. Ora, alguns anos mais tarde, a característica analítica fará parte da
classificação dos detetives em romances policiais. Percebemos, então, que algumas
décadas antes do surgimento propriamente dito do que viria a ser conhecido como
“romance policial”, o narrador machadiano já nos apresentava um personagem cuja
curiosidade faz com que ele tente deduzir e descobrir a respeito dos
pensamentos de outro personagem até o ponto de solucionar o mistério e chegar a
uma conclusão: “Castiga sem raiva”, pensou o médico, “pela necessidade de achar
uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste
homem”. (idem. p. 33). Ao final do
conto, Garcia encontra Fortunato torturando um rato e em seu rosto estava uma
visível sensação de prazer masoquista, graças a isso o jovem médico pôde chegar
à conclusão acima referida.
Notamos, portanto, que
mesmo anterior ao surgimento do gênero romance policial, Machado de Assis já
nos apresentou um personagem que possui características próprias de um
detetive. Na verdade, os detetives clássicos viriam a ser criticados devido aos
seus métodos científicos quase que laboratoriais. Como nos diz Chandler, “o lógico
implacável produz tanta atmosfera quanto uma prancheta de desenho. O detetive
científico possui um laboratório reluzente e novo, mas lamentavelmente não
possui um rosto”. (CHANDLER, [s.d.], p. 171). O nosso personagem busca
solucionar seu mistério não se utilizando de ciência ou analisando pistas
concretas, mas analisando o rosto de Fortunato, as expressões e tentando
adivinhar os sentimentos que motivavam tais comportamentos sádicos por parte de
seu amigo.
Por fim, se formos
compartilhar as idéias de Todorov que diz que “o romance policial por
excelência não é aquele que transgride as regras do gênero, mas o que a elas se
adapta (TODOROV, 2003, p. 95), poderemos supor que esse conto machadiano
antecipa a consolidação de um novo gênero literário. O que não seria exagero de
nossa parte, visto que a crítica afirma em uníssono o caráter atemporal da obra
do Bruxo de Cosme Velho.
Welton Pereira e Silva
é mestrando em Letras: Estudos Linguísticos na Universidade Federal de Viçosa
(MG). Cursou Letras: Português e Literatura também na UFV e se licenciou em Português
na Universidade de Coimbra, em Portugal. Trabalha com a Análise do Discurso,
mas seu lado crítico literário persiste em continuar.
Referências
bibliográficas:
ASSIS,
Machado. Várias Histórias. Obra
Completa, Machado de Assis, vol. II, Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1994.
CHANDLER,
Raymond. A simples arte do crime. In Pérolas
dão azar. São Paulo: Record, [s.d.]
TODOROV,
Tzevan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.
0 comentários:
Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.