domingo, 16 de agosto de 2015

O transporte público da pessoa humana.




Voltei a andar de ônibus na cidade. Sabe, eu fico assustada quando uso transporte público. Trocam-se os ônibus, mas pouco muda. Por mais que os veículos sejam novos, que sejam outros, o ranger e o chacoalhar permanecem. Mas o que mais, de verdade, incomoda e sinaliza no sentido de que as coisas ainda vão muito mal no Brasil é o destreinamento dos trabalhadores do transporte, cobradores e motoristas, a falta de formação nas suas funções e, infelizmente também, de educação como pessoas. Porque vai muito além de uma formação profissional, mas é claro, isso não elide a total indiferença das empresas de transporte empregadoras quanto à importância social do serviço que prestam.
Moro em Santo André-SP, uma cidade bonita e metropolitana, que já foi muito mais bonita e cuidada, que já foi pioneira em muita coisa, mas que hoje, corre atrás de se modernizar, se atualizar, atender a uma demanda de humanização e descoisificação do cidadão, pra se conformar com os direitos com os quais nos comprometemos, como país, lá fora.
Não quero fazer aqui um discurso político. Independentemente de qual partido esteja na administração da cidade, esses pontos terão que ser pensados pelas pessoas, conscientizados e, depois, cobradas providências no sentido de que sejamos melhor tratados como administrados e como gente.
Eu acho que esse pessoal do transporte faz um trabalho muito mais importante do que pensa. Não se trata de apenas levar pessoas para cá e para lá, não se trata de despejar pessoas no seu destino -não, é muito mais.
Eu vou dar uns exemplos de fora, porque quando a gente só conhece um modelo, fica difícil vislumbrar uma outra realidade, uma possibilidade muito melhor. Em Coimbra, Portugal, onde morei por uns meses, os ônibus não passam toda hora, têm horários fixos e você tem que ficar de olho, pra não ficar hora esperando.... Isso garante acesso digno ao cidadão (que sabe o horário pontual dos ônibus), sem perda para a empresa. Mas o que mais vale a pena pensar sobre como funciona o transporte por lá, vai muito além. Se você compra mais passagens, paga menos; os veículos são rastreados e a velocidade é controlada; há várias linhas, os ônibus (ou autocarros como se diz lá) não passam todos pelos mesmos pontos; o motorista (não há cobrador) prioriza o bem estar e segurança de idosos e crianças - não se anda antes que eles se acomodem totalmente dentro do ônibus; há a figura do fiscal, que nos ônibus dessa cidade, verificam se foi passado o cartão do ônibus e como estão conduzindo, os motoristas.

autocarro sob os Arcos de Ooimbra

representantes e cidadãos portugueses, esperando o autocarro na paragem

Pra quem usa ônibus na cidade, nem preciso dizer quanta diferença! Aqui, como em muitos outros serviços prestados, o cidadão vale bem pouco... Não sei quantas vezes ouvi casos de idosos acidentados porque antes de ingressar nos ônibus, o motorista arrancou com o carro, por exemplo.
Outra coisa repugnante, são essas catracas ridículas, em que pessoas obesas tem dificuldade de passar e que restringem o espaço dentro dos veículos - nos horários de pico, andar de ônibus é um verdadeiro martírio. E a porta de saída, que sendo uma só, faz todo mundo andar o ônibus inteiro, pra descer no seu destino.

exemplo de cobrador brasileiro e catraca de ônibus

Lá fora eles resolvem isso abrindo todas as portas, porque a pessoa já no início inseriu seu cartão e teve descontada a passagem. Você não precisa ficar transitando pelo ônibus. Inclusive, em outras cidades, como Roma, por exemplo, você valida seu cartão em todas as portas, como um código de barras, não há porta específica pra entrar. Isso garante que você entre no ônibus e não precise transitar por ele.  Se ele estiver lotado, como é comum por lá, você só espera quieto a sua paragem, sem necessidade de se locomover.
A fiscalização fica por conta também de fiscais, que em vez de ficar sentados, parados, mexendo no celular, verificam se os cidadãos validaram seus passes (caso contrário, levam uma gorda e não compensadora multa), bem como o andamento do serviço prestado, que, no caso, depende da boa condução do motorista.
E nesta parte, reside o principal. Porque quando se é transportado, a gente tem que sentir que merece respeito. Gente não pode ser transportada igual gado, chacoalhando e batendo, empurrando e amassando, arrancando com o carro e com preocupação de chegar na garagem no horário determinado (horários, inclusive, incompatíveis com um serviço de transporte bem prestado, que exigem do motorista e do trânsito , um andamento impossível e relegam o cidadão a uma condição imoral, objeto do lucro empresarial e nada mais).
Gente tem que ser transportada como gente, cuidando principalmente de idosos e crianças - não basta lugar marcado, é necessário um bom tratamento pessoal - e os funcionários do transporte infelizmente, ainda que haja exceções, movidos pelo interesse lucrativo de seus empregadores e nenhum outro, não estão treinados pra tratar pessoas como pessoas e ter cuidado com o cidadão.
Não é culpa só deles ! Longe disso. Trata-se de uma questão estrutural. Poder público não preocupado, empregador pensando no lucro, funcionário pensando em voltar pra casa e o cidadão, ah!, o cidadão conformado com seu habitual tratamento despersonalizado,desumanizado, como coisa útil à obtenção de ganhos pelas empresas, sejam elas quais forem. Mas isso precisa mudar.
Em Liverpool, numa das minhas viagens ao exterior, tive a seguinte experiência que abalou todo o estereótipo do inglês para mim (de que são frios): quando cheguei no aeroporto, primeira vez num país de língua inglesa, sem hotel certo pra me hospedar e de madrugada, bateu um leve desespero. Mas, então, um motorista de táxi, vendo nossa aflição, ligou para o hostel cujo endereço a gente tinha na mão e fez a gentileza de descobrir se eles tinham vaga, conduziu-nos até o hostel e antes de ir embora, esperou que o portão do hostel se abrisse pra gente entrar.

táxi inglês e acessibilidade

exemplo de cortesia do taxista inglês

Isso deu uma impressão maravilhosa do povo inglês. De educação, boa formação e humanização, totalmente contrários à ideia inicial, estigmatizada, de que não se interessam pelo outro. Tudo isso porque aquele motorista de táxi, nosso primeiro contato com o povo inglês, nos tratou como gente, gente da melhor espécie.
Agora, que impressão um motorista de táxi, ou de ônibus, do nosso país, passaria a um estrangeiro e, pior, que recado um motorista transmite ao cidadão brasileiro sobre o interesse do poder público e das empresas prestadoras de serviço público, por ele???
Motoristas de ônibus e cobradores têm que ter formação em direitos humanos pra lidar com pessoas, a educação nossa, como um todo, tem que melhorar, tanto para que saibamos brigar por nossos direitos e não seja considerado normal deixar que conduzam nossos velhos como saco de batatas.
Ainda que depois dos sessenta anos, os cidadãos da minha cidade não paguem mais pelo transporte, o que merecemos é muito, muito mais do que isso, e não podemos deixar de exigir e de pensar melhores maneiras de viver e de, como aqui exposto, irmos e virmos com dignidade humana.



ouça esta canção e entenda com o coração, o que não está dito.






Larissa Germano é autora de "Cinzas e Cheiros" e escreve nos blogs Palavras Apenas (naoapenaspalavras.blogspot.com) e Nunca Te Vi Sempre Te Amei (cafehparis.blogspot.com), tem perfil no facebook e no twitter e a página Lári Prosa e Trova no facebook. É também compositora intuitiva e tem perfil no Sound Cloud e Youtube.

2 comentários:

Marcos Liotti disse...

Achei interessante o tema escolhido por você Larissa, e gostei de observar e ler sua visão, como utilizador de transportes públicos também, já tinha observado e me questionado sobre quase tudo que você escreveu, e tendo vivido outras experiências e realidades no exterior como você, já me questionei várias vezes sobre a importância ainda de cobradores nos ônibus no Brasil, merecia uma reflexão das empresas, de seus modelos e processos, e uma reestruturação que obviamente não prejudicasse ninguém com mero desemprego, mas que enquadrasse novas formas e modelos com os meios que possuem, eliminando a tal catraca e permitindo até criar mais assentos para os passageiros. Poderia citar outras tópicos e exemplos que deu, mas me faria escrever um texto do tamanho do seu ou maior, e prefiro focar num ponto que sei que é o mais importante de todos, a fiscalização, tendo trabalhado mais de 15 anos no sector público em dois países de 2 continentes, com uma das especializações em técnicas de fiscalização, considero que este é sem dúvida o principal ponto de partida para qualquer processo de mudança, os sectores públicos no mundo todo, carecem de fiscalização seleccionada e bem paga, para evitar o que sabemos... Não precisa ser em quantidade, desde que a cúpula e sua direção seja bem competente e comprometida com os objectivos propostos, quando se fala em fiscalização, todos pensam de imediato, processos punitivos e multas, mas, a fiscalização pode e deve ser muito mais do que isso, a fiscalização de pessoas e processos, não pressupõe a necessidade de punição apenas, e com certeza este é no Brasil algo que faz toda a diferença em todas as áreas da sociedade, e neste tema dos transportes também... Exemplo do efeito positivo e eficaz de uma boa fiscalização, está nos processos em curso no País e que lemos e ouvimos todos os dias, protagonizados pelo Ministério Público, Procuradoria e Polícia Federal, faltando apenas transpor e adaptar esta força, para uma Autoridade Administrativa civil, que com processos de fiscalização preventiva e punitiva, possam ajudar o público e privado, prestarem melhor serviço, humanizar e como diz, se modernizarem... Bem, e fico por aqui, se não ainda teria muito mais para escrever... :)))

16 de agosto de 2015 às 10:41
Lari Germano disse...

Muito legal sua fala, Marcos! Acho que é bem por aí a evolução da política de construção das coisas no país, formação, educação, prevenção, que depende também, é claro, de fiscalização! porque o ser humano, infelizmente, não é assim tão bem dotado pra fazer as coisas certas de própria vontade sempre!... Na maioria das vezes, precisamos que sejam aparadas as arestas e que haja uma condução para o mais correto, mais eficaz e honesto possível resultado de todas as nossas ações... É isso aí! Valeu mais uma vez pelo comentário! Bjbj

17 de agosto de 2015 às 20:44

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