terça-feira, 14 de junho de 2016

Maracanazos


Em menos de uma semana, o estupro coletivo sofrido pela adolescente carioca já tinha parado no canto inferior esquerdo – comprovadamente o de menor visibilidade – da capa de um dos nossos principais jornais. Enquanto isso, o terço superior da página era dominado pelo futebol, esporte que costuma alegrar o domingo dos machos.

É assim que as coisas funcionam hoje: toda indignação tem seus quinze segundos de fama (e olhe lá).

Não por acaso Michel Temer chegou a dizer que, para ele, havia no país uma “onda de violência” contra a mulher – onda essa que, segundo historiadores, existe desde que Adão atirou o fruto proibido na cabeça de Eva e a levou desacordada, pelos cabelos, até uma caverna. A rapidez tsunâmica com que crimes e escândalos são descartados pela mídia talvez explique o lapso do presidente interino.

É curioso que de outros lapsos a memória nacional não sofra. Quantos de nós não sabem o significado da expressão “Maracanazo”, com seu emezão e zê espanhol? Pergunte mesmo aos que nasceram bem depois de 1950 e muitos responderão que a palavra é sinônimo de tragédia – uma tragédia que marcou a história não só de uma seleção de futebol, mas também de uma nação inteira.

Quem nunca ouviu falar da derrota de dois a um para o Uruguai na final da Copa, diante de duzentas mil testemunhas no velho Mário Filho?

A comoção gerada pelo inesperado vice-campeonato dentro de casa foi tão grande (ou tornada tão grande), que inspiraria o dramaturgo Nelson Rodrigues a criar o termo “complexo de vira-lata”: “a inferioridade em que o brasileiro – um narciso às avessas – se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”, segundo o próprio escritor.

Não é o caso de alimentarmos ainda mais esse sentimento – mesmo com um crime tão bárbaro (quanto o que vitimou a jovem citada) a nos assombrar. Afinal, abusos como esse acontecem não apenas em nossas favelas ou condomínios de luxo; acontecem também em universidades americanas, cidades alemãs e ônibus indianos. A cultura do estupro está disseminada nas mais diversas latitudes.

Mas não seria o caso, sim, de transformarmos o episódio em trauma que atravessasse gerações? Não seria o caso de cada pai, cada mãe contar essa história de terror aos seus filhos para que eles contem aos filhos deles? Não seria o caso de as escolas incluírem em seus currículos (mais) discussões sobre a violência contra a mulher? Não seria o caso de a imprensa dar cada vez mais espaço para o tema?

Não seria no mínimo educativo que, daqui a quarenta ou cinquenta anos, cada cidadão brasileiro ainda guardasse na memória não a derrota numa partida de futebol – não o sete-a-um de dois anos atrás, por exemplo, edição revista e ampliada do Maracanazo –, mas aquela infame goleada de cinco, dez, vinte, trinta e três a... uma?

Quem sabe assim, um dia, os milhões de treinadores se tornassem também milhões em ação contra o machismo e a misoginia – esses dois brucutus do pensamento que há muito tempo já deveriam ter sido expulsos de campo.







Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.

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