A diferença é a gaiola
Era uma vez um ratinho muito fofo que vivia sozinho numa gaiola enoooorme e praticamente vazia. Suas únicas companheiras eram duas garrafas de plástico sem graça. A primeira só tinha água; a segunda, água e heroína. Um belo dia, o ratinho bebeu a mistura. E bebeu de novo. E bebeu mais. E se viciou. Noutro dia (não tão belo), o ratinho morreu.
Era uma outra vez um ratinho igualmente fofo que vivia numa gaiola igualmente enoooorme, só que cercado de queijo, de bolas, túneis e escorregadores coloridos, de outros ratinhos (e ratinhas). Praticamente a Disneylândia. Ah, aquelas duas garrafas de plástico sem graça também estavam lá. Uma com água, a outra com água e heroína. Um belo dia, os ratinhos beberam a mistura. Mas não beberam de novo. Não beberam mais. Não se viciaram. E viveram felizes todos os belos dias de suas vidas.
Não, não são histórias da carochinha, queridos leitores. São apenas um resumo de dois experimentos realizados em laboratório já há algumas décadas. Mais detalhes sobre ambos podem ser encontrados no livro do jornalista britânico Johann Hari Chasing the scream: the first and last days of the war on drugs.
Outra história também interessante sobre vício vem da Guerra do Vietnã, durante a qual um em cada cinco soldados americanos consumia heroína. A revelação, feita pela imprensa na época, gerou o temor nos Estados Unidos de que, terminado o conflito, o país tivesse de conviver com milhares de drogados. Não foi o que aconteceu: nove em cada dez soldados “viciados” largaram a heroína assim que voltaram para casa.
Convenhamos: se você fosse enviado a uma selva distante, coagido a lutar por uma causa que não a sua, obrigado a matar; se você corresse o risco de perder a vida a qualquer momento, visse de perto a morte de companheiros, lidasse com corpos mutilados diariamente – injetar uns mililitros de heroína na veia para fugir desse cenário não seria uma ideia tão mirabolante assim. Uma ideia que dificilmente passaria por sua cabeça se você estivesse em seu lar doce lar, ao lado de sua família e de seus amigos – se você estivesse, em outras palavras, na sua Disneylândia.
Ainda em outras palavras: quando botamos o ser humano na primeira gaiola – estimulando seu isolamento em relação ao que está ao redor –, aumentamos muito as chances de ele buscar uma fuga ou pelo menos um alívio. Uns procuram essa anestesia contra a realidade nas redes sociais, outros na pornografia, no álcool ou no jogo. E há ainda aqueles que a procuram nas drogas ilícitas.
Posso estar enganado, mas, se o que aproxima as pessoas dos entorpecentes e as torna dependentes é menos a composição química deles e mais a relação delas com o mundo (o fato de se conectarem ou não com ele e com os seres que o habitam), não ajuda nem um pouco no combate às drogas a mais recente tentativa da União e de alguns estados, como o Rio de Janeiro, de desmantelar nosso ainda fragilíssimo Estado de bem-estar social – nossa ainda megaprecária Disneylândia.
Ou alguém acha que o que ajuda a construir aquela segunda gaiola é investir menos em saúde e educação e tornar ainda mais difícil a vida de quem precisa de escolas e hospitais públicos? é impor um ajuste fiscal que protege os ricos e castiga os pobres? é aumentar a jornada de trabalho e diminuir ainda mais o convívio entre pais e filhos? é fechar restaurantes populares e colocar em risco a única refeição diária de moradores de rua e desempregados? é suspender o aluguel social e despejar de suas moradias temporárias as vítimas de desastres naturais (como o da Região Serrana e o do Morro do Bumba, em Niterói)? é acabar com programas de complemento de renda e devolver à miséria milhares de pessoas? é confiscar trinta por cento do salário de servidores públicos (inclusive aposentados) e prejudicar ainda mais quem já não tem recebido seu pagamento em dia?
Nem vou citar o caso dos que estão do lado de lá da gaiola (os presidiários), aos quais já é imposta uma rotina de maus-tratos e sem perspectiva de reintegração à sociedade.
Moral da história: talvez tudo isso explique, em parte, a recente ascensão política de tantos pastores; enquanto deixamos nossos ratinhos cada vez mais abandonados à própria sorte, crivellas e malafaias fazem culto na cadeia e levam conforto espiritual às comunidades ignoradas pelo Estado – distribuem lá, entre os mais vulneráveis, suas garrafas plásticas cheias de uma água aparentemente pura.
Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008), escreve no Pasmatório, tem perfil no Twitter e no Facebook.
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