RECICLAGEM: QUANDO O IDEAL PODE NÃO SER REAL
O
lixo configura temário notavelmente complexo e heterogêneo,
permitindo muitas interfaces de discussão e controvérsias para
todos os gostos.
Gosto
de polêmicas. Sejam em sala de aula, em conferências ou em
quaisquer outras modalidades de interação com público interessado,
a discussão é sempre bem-vinda. No final das contas, quando uma
contradição conquista expressão, trocamos a conspiração pela
compreensão.
Assim,
quando faço apresentações com foco nos resíduos sólidos,
corriqueiramente exponho por meio do Power
Point uma grande imagem do que se
convencionou definir como “símbolo da reciclagem” - justamente a
figura que abre esta matéria -, e brincando com a platéia, dirijo
ao público presente uma pergunta retórica:
Digam-me:
que símbolo é este?
Obviamente,
a unanimidade é geral. De pronto, quase que num reflexo automático,
todos confirmam que as três setinhas são o apurado símbolo da
recuperação dos materiais descartados nas lixeiras.
Claro
que esta resposta seria tão esperada quanto óbvia. Poderia ser
outra? Basta conferir os produtos que tiramos das gôndolas dos
supermercados. Lá estão presentes, em todas as rotulagens que se
propõem amigas da natureza, as onipresentes setinhas.
No
mais, este signo está glamourizado por toda sorte de produtos
visuais: cartazes, camisetas, bottons
e numa vasta tipologia de suportes comunicacionais com pretensão
expressa de granjear as sobras com uma nova oportunidade para serem
úteis.
Mais
ainda, tal como sugere o movimento do símbolo, reciclar seria
processo animado por dinamismo interminável, eterno e infinito,
poupando o meio natural das desastrosas sequelas do consumismo.
Efetivamente,
levados que somos pelo sofisticado equipamento ótico indissociável
do nosso código genético a entender como real tudo o que nossa
visão capta em termos de imagens, é justamente esta a mensagem que
o símbolo suscita.
Todavia,
a função que nos cabe como profissionais da educação é
questionar o senso comum. E não apenas isso, devemos também calçar
nossa argumentação com ponderações que permitam ampliar o
entendimento de mundo, tão ameaçado que está pelas mazelas da
destruição dos recursos naturais.
Nesta
perspectiva, dado que nem tudo que reluz é outro, nem sempre o que
nos chega do mundo ideal é algo efetivamente real. Assim, retornando
à cena do auditório, quando todos aguardam aprovação pela
resposta dada à minha pergunta, sentencio algo secamente:
Não,
não é.
Pasmo
geral. A expressão facial dos presentes denota surpresa e
inconformismo pelo veredicto. Sempre tem alguém que se manifesta e
indaga:
Como
assim não é?
Então,
passo a expor as razões do que se torna uma intercomunicação
maiêutica acompanhada da curiosidade acesa do público presente. À
vista disso, façamos, pois uma análise por partes.
Primeiramente,
o suposto símbolo da reciclagem não passa de versão de modelo
teórico esboçado pelo matemático alemão August
Ferdinand Mobius (Figura 1) no Século XIX, empreendimento que
não teve nada a ver com ecologia, nem com economia dos materiais e
tampouco com a recuperação dos refugos.
A
formulação deste notável pesquisador
é catalogada como Fita de Mobius ou
Möbiusband (Figura
2). Definida como um modelo matemático topológico, a concepção da
imagem prescreve um espaço helicoidal cíclico, pressupondo
enunciado hipotético para o qual a noção de infinito e de ausência
de entropia (perda de energia), é um pressuposto mais do que
inconfesso.
Isto
porque num ambiente exclusivamente teórico, no qual não ocorre
dissipação de energia, qualquer ponto seguindo a linha de borda da
imagem se manteria em movimento na fita até o fim dos tempos.
Claro
está que a idealização de Mobius expressa profundo senso
especulativo da matemática. Neste recorte,
seria mister resgatar que a matemática
se fundamenta a partir de primados que não podem ser restritos à
uma perspectiva simploriamente numérica. Em razão de seu magnífico
potencial explicativo e filosófico, a matemática se presta
inclusive elucidar uma ampla gama de conceitos que transitam pelas
ciências humanas.
Entenda-se
de igual modo que a topologia é um ramo especializado da matemática
que estuda, dentre outros relevantes assuntos, as
propriedades que permanecem inalteradas (as
invariantes), mesmo quando a forma das figuras é distorcida, e o
tamanho, modificado. Isto é, dedica-se ao estudo
dos homeomorfismos das figuras geométricas, sendo passível, por
esta vertente, articular-se com múltiplas categorias fenomenológicas
(Vide ANDRADE, 1971 : 48 e 70).
FIGURA
1 - AUGUST FERDINAND MOBIUS (1790-1868)
(
http://www.biography.com/people/august-ferdinand-m%C3%B6bius-40272
.
Acesso: 28-04-2017).
FIGURA
2 - A FITA DE MOBIUS OU
MÖBIUSBAND
(<
https://br.pinterest.com/pin/551761391818677729/
>. Acesso: 29-04-2017).
Contudo,
se a topologia matemática se presta a vários usos, está por outro
lado distante de sintonizar-se com qualquer uso. Em especial,
manifesta inadequação quando seus sofisticados modelos são
instrumentalizados pelos enganadores descaminhos pavimentados pela
sedução do senso comum, que induzem erros de interpretação ao
aplicarem mecanicamente definições abduzidas das intenções
originais em universos de entendimento cujas premissas são
singulares e diferenciadas.
Neste
senso, atentemos, em segundo lugar, que a transposição da criação
de Mobius para a finalidade de representar a reciclabilidade
inspiraria reparos, apensos e correções.
A
título de informação, saliente-se que a investidura da Fita de
Mobius como estandarte edulcorado da reciclagem resultou de concurso
lançado em 1970 pela Container
Corporation of America (CCA), tendo
por desafio a criação de símbolo gráfico a ser utilizado em
produtos de papel reciclado para certificar compromisso com o meio
ambiente.
A
competição, que também homenageava a realização do primeiro
Earth Day
(Dia da terra), realizado no mesmo ano, foi vencida por Gary
Anderson, designer gráfico e arquiteto que na ocasião, estudava na
Universidade do Sul da Califórnia.
A
proposta de Anderson, que adotou a Fita de Mobius como protótipo
imagético, venceu e o símbolo das três setinhas se tornou de uso
universal.
De
domínio público, a influência da marca cresceu a ponto de se
tornar foco de legislações regulamentando a utilização, evitando
assim a manipulação da boa fé pública, tendo por nexo central a
perdurabilidade dos materiais junto às redes produtivas.
Entretanto,
dois óbices pesam na transposição da grade conceitual da
Möbiusband na
senda de simbolizar a reciclagem.
Ponto
um: há que ser lembrado que a
reciclabilidade não é um dom propriamente ilimitado. Portanto, não
há como adereçar à reciclagem a atribuição de onipotência e de
solução por excelência para cessar a retirada de insumos da
natureza.
Com
efeito, papéis e plásticos, dependendo do tipo e da qualidade da
sucata, podem ser reciclados 5, 6, 7 vezes. Depois disso, partem para
o descanso eterno. Para sempre. Basicamente porque inexiste molécula
plástica ou de celulose que resista a uma sucessão ininterrupta de
“reencarnações”. Logo, o Nirvana as aguarda.
Mesmo
no caso dos metais existem perdas pela ação da oxidação, do
surgimento do zinabre e até quando simplesmente expostos à ação
da água. O alumínio e o aço, por exemplo, se desprendem, sem
alarde, das panelas onde preparamos nossa alimentação. O próprio
processamento industrial pode suscitar perdas através de escórias
que surgem na fundição, ainda que em pequena proporção.
Daí
que a reciclabilidade dos materiais está sujeita à entropia, tal
como tudo o que existe no mundo real.
Ponto
dois: a magna carta dos bons
princípios ecológicos da reciclagem não permitiria abonar a
percepção que a granjeia com a aura da onipotência resolutiva e
muito menos, dispensar observações críticas relativamente ao seu
papel no que tem sido definido como Civilização
do Lixo.
Neste
prisma, uma constatação reportaria à inscrição histórica da
reciclagem, que como se sabe, ocorre numa conjuntura regida sob o
signo da exacerbação da exploração dos recursos conjugada à
maximização dos índices de ejeção dos refugos, tornando
pertinente questionar qual tem sido seu sucesso efetivo em fazer tais
dinamismos retroagirem ou pelo mínimo, serem mitigados.
Urgiria
então admoestar relativamente ao questionamento a quanto, de fato, a
atividade recicladora constitui contraponto real ao carrossel do
consumo e à geração de detritos. Buscando ratificar esta
inquietação, retenha-se:
1.
Nas condições como a sociedade e a economia estão hoje
estruturadas, a reciclagem não tem como deter a disseminação dos
lixos e muito menos, impor recuos para a expansão dos rebotalhos;
2.
Pelo contrário, a reciclagem está passo a passo se conjuminando com
a dinâmica maior do sistema de produção de mercadorias responsável
pela depleção dos recursos naturais e gerador de rejeitos;
3.
Efetivamente, a reciclagem não
contesta a espiral de consumo e apenas a reapresenta sob novas
roupagens, agora ungida de afetações ambientais e beatificada pelo
evangelho do desenvolvimento sustentável.
Sem
meias palavras, atentemos que a ciranda do sistema produtivo tem
objetivamente nivelado a
zero muitos dos possíveis ganhos
advindos com a recuperação dos materiais.
Exemplificando,
embora no caso dos papéis a atividade recicladora tenha imposto
desaceleração no crescimento da demanda por polpa de madeira, a
recuperação serviu bem mais como complemento do que substituto para
a fibra virgem.
Sabidamente,
nunca se produziu tanta celulose na história humana quanto nos dias
atuais, cujo consumo cresce num nível tão rápido que suplanta a
possível poupança de recursos promovida pela recuperação dos
papéis.
Outras
ponderações poderiam ser endereçadas aos plásticos.
Exemplificando, no Japão, entre 1966-2.000, a reciclagem do plástico
PET cresceu 40%. Todavia, neste mesmo lapso de tempo o consumo de PET
duplicou, cancelando o quinhão de benefícios providos pela
recuperação desta sucata.
O
resgate de metais e vidros das lixeiras igualmente não consegue
sequer acompanhar o ritmo alucinante de consumo de cargas
sequestradas do reino mineral. Configurando faceta solenemente
ignorada pela literatura supostamente especializada, há uma
complementaridade que objetivamente ata a reciclagem com a cultura do
desperdício.
Disto
decorrre uma máxima cabal: Se nem sempre o que é idealizado pelo
imaginário social encontra respaldo na materialidade social, se
impõe diretriz em sentido inverso, a de que a partir da experiência
concreta passemos a estabelecer modelos que objetivamente dêem conta
dos problemas que nos acometem.
Assim
sendo, e sempre tendo em vista que a
reciclagem é essencial num pacote de práticas amigas da natureza,
entendamos de modo radical que somente com alteração real no modelo
tresloucado de consumo de bens, típico da vida moderna, é que
poderemos chegar a mudanças mais próximas do ideal.
Como
sempre, a prática continua a ser o critério de verdade. Como
sempre, a verdade se mantém como fio condutor do que fazemos neste
mundo.
Façamos,
pois do real, com toda determinação possível, um caminho
privilegiado para nossos melhores anseios e esperanças, construindo
neste repensar
os ideais necessários para a reforma do mundo.
É
isso.
TÍTULOS
DO MESMO AUTOR LANÇADOS EM 2016 PELA EDITORA KOTEV
COM
TEMÁTICAS RELACIONADAS A ESTE ARTIGO:
FALANDO
SOBRE LIXO
A
CIVILIZAÇÃO DO LIXO
PLANETA
LIXO: A RADIOGRAFIA DOS RESÍDUOS GLOBAIS
RECICLAGEM,
PRESERVAÇÃO AMBIENTAL E O PAPEL DOS CATADORES NO BRASIL
BIBLIOGRAFIA
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Lixo Domiciliar no Brasil: Dinâmicas
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Relatório de Pesquisa de Pós-Doutorado. Departamento de Geografia
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Ambiente & Antropologia
(Série Meio Ambiente, nº 6), 1ª. edição. São Paulo (SP):
Editora do Serviço
Nacional de
Aprendizagem Comercial (SENAC).
2006.
MAURÍCIO
WALDMAN é antropólogo, consultor
ambiental, editor, jornalista, professor universitário e
pesquisador.
Especialista
em resíduos sólidos e em recursos hídricos, Waldman é graduado em
Sociologia (USP, 1982), mestre em Antropologia (USP, 1997), doutor em
Geografia (USP, 2006), pós-doutor em Geociências (UNICAMP, 2011),
pós-doutor em Relações Internacionais (USP, 2013) e pós-doutor em
Meio Ambiente (PNPD-CAPES, 2015).
Em
2010, a partir de avaliação de pesquisadores dos EUA, Waldman
integrou lista de 96 personalidades brasileiras de origem judaica,
publicada em Brazilian Jews
(Books LLC, USA: Memphis, Tennessee, 2010).
Maurício
Waldman já colaborou com a mídia impressa em diversas modalidades.
Foi colunista, articulista e/ou colaborador da Agência Ecumênica de
Notícias, do jornal Diário do Grande ABC, Folha de São Paulo
(Seção do Grande ABC), revista Tempo & Presença, site da
Editora Cortez, boletim Linha Direta, revista Teoria & Debate,
revista Ambiente Urbano, site do Prof Assessoria em Educação, site
Cultura Verde, Secretaria de Comunicação de São Bernardo do
Campo, jornal O Imparcial e da revista Brasil-África Magazine.
Na
área dos resíduos sólidos Waldman atuou como Chefe da Coleta
Seletiva de Lixo da capital paulista, como professor de pós-graduação
no temário do lixo, em consultorias para empresas e ONGs. Dois dos
três pós-doutorados desenvolvidos pelo autor (UNICAMP, 2011 e
PNPD-CAPES, 2015), tem por foco a gestão dos resíduos sólidos.
Maurício
Waldman é um dos nomes de destaque no conhecimento sistematizado
sobre os resíduos sólidos no Brasil. Autor
de 17 livros, 25 e-books
e 700 artigos, papers
e pareceres de consultoria, Waldman é autor de Lixo:
Cenários e Desafios - Abordagens básicas para entender os resíduos
sólidos (Cortez Editora, 2010),
obra finalista do Prêmio Nacional
Jabuti de 2011 e texto de referência no
campo do estudo científico do Lixo.
MAIS
INFORMAÇÃO:
Blog
Pessoal:http://mauriciowaldman.blogspot.com.br/
3 comentários:
Excelente texto. Humor e inteligencia integrados. Falando de religiao: nao ha salvacao fora da reducao.
30 de maio de 2017 às 13:42Sobriedade ja!
E que tenhamos esperança sempre, especialmente com leituras que nos façam prosseguir, como por exemplo este artigo do prof. Maurício, incansavelmente pesquisador.
30 de maio de 2017 às 16:45Grato Milene pela gentileza do seu comentário! Maurício
5 de junho de 2017 às 16:21Postar um comentário
Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.