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O INDIZÍVEL NOS CADERNOS DE ELISE COWEN: texto de Emanuela Siqueira



 
 (Continuam as contribuições:  desta vez, texto escrito por Emanuela Siqueira, também aluna da disciplina "Escritoras da Geração Beat", PGLetras UFPR  2014-2]



“Houve mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias as internaram , elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era homem, podia ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava  trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum dia alguém escreverá a respeito.” Gregory Corso, citado em “A Geração Beat”, de Cláudio Willer


O breve depoimento do poeta beat Gregory Corso serve como uma ótima introdução sobre quem foi a jovem Elise Cowen e vai além, define o que era ser mulher em uma contracultura no começo do século XX. Com um semblante curioso e perspicaz, com ares de mulher que vive com o rosto enfiado em livros ou apenas uma bibliotecária atenciosa dos anos 50, Cowen tinha apenas 29 anos quando pulou da sacada do sétimo andar do apartamento de seus pais em Nova Iorque. A jovem, filha única de um casal judeu de classe média, em pouco menos de três décadas já carregava em seu corpo o fardo de ser mulher numa sociedade pós-guerra e conservadora. Mas antes de ser essa jovem acompanhada de uma história melancólica e opressiva, Cowen era poeta e foi uma das presenças femininas que figurava além dos protagonistas homens da Geração Beat.

O nome de Cowen não é incomum nos círculos de discussão sobre os Beats. Talvez não pelo melhor motivo - sua poesia - e sim por ter se relacionado brevemente de forma afetiva com Allen Ginsberg e por ter cometido suícidio, apenas um ano antes de outra poeta, Sylvia Plath. Tanto Ginsberg como outras figuras do movimento Beat relembraram e homenagearam a jovem algumas vezes após a sua morte. Lucien Carr costumava trocar o nome de Elise por “eclipse/elipse”, uma forma de fazer um trocadilho com seu nome e temperamento, que segundo eles, era bipolar mas também demonstra a forma como ela é lembrada dentro do círculo, apenas uma coadjuvante. Carr e Corso são alguns desses jovens que além de citarem Cowen como a datilógrafa do famoso “Kaddish” de Ginbesrg assumem que nem eles e talvez nem ela, conseguiram enxergar o enorme talento de Elise Cowen.
                                   
[…] O fantasma de Elise
correndo em pânico sob
os arcos góticos de Bellvue e arrastada
sob a luz do dia por sua família
polícia – O que ela estava
apontando, à noite no Rio Hudson,
as vozes que só ela podia ouvir
- e agora ela é somente esse fantasma
fugindo nas salas escuras de minha
vasta mente com seus olhos fechados.
(Allen Ginsberg sobre Elise Cowen em um diário, em 1962)

Profundamente influenciada por poetas como Emily Dickinson, T.S. Eliot, Ezra Pound e Dylan Thomas, a poesia de Cowen não deixa de dialogar com a liberdade dos versos beats, a ironia que corroía Allen Ginsberg também acometia ela, porém de forma mais amarga e fúnebre. O que sobrou da poesia da jovem Elise foi apenas um caderno usado entre o outono de 1959 e a primavera de 1960. Com um pouco mais de 80 poemas, e algumas anotações/fragmentos, o caderno foi o único a sobreviver aos ataques de ódio por parte dos pais e familiares de Elise que queimaram tudo que restou da jovem. O legado da jovem poeta era um fardo pesado para uma família tradicional judia e de classe média. Aceitar que sua única filha era suicida e bissexual, deixando isso tão claro em sua poesia, era demais para eles.

                                   
SONHO

Não consigo lembrar de tudo.
Ar limpo. Eu estou com Mamãe &
Papai. Estão me levando à um médico
porque estou doente, neurótica. Estão
enojados de mim, cansados, por todo
o sonho, especialmente Papai como na
vida real (?). Depois de falar com o médico
cujo o rosto não me lembro, ele, o
médico, senta em uma cama & retira
uma atadura de sua longa perna mostrando
uma ferida secando.


“Sonho” é o poema em prosa que abre “Poems and Fragments” (Poemas e Fragmentos, Ahsahta Press, 2014), a mais completa publicação sobre Elise Cowen organizada por Tony Trigillio, o pesquisador mais dedicado ao pouco que sobrou sobre a poeta. O verso livre de “Sonho” sinaliza e define um período árduo, ou pior, expõe como Elise se sentia em relação à seus pais. No fim da década de 50 e aos 26 anos Cowen já havia passado pela tradicional Barnard College, se relacionado com um professor mais velho que a apresentou a Ginsberg, saiu de casa, tentou se sustentar em empregos que pagavam pouco à mulheres, fez um aborto perigoso além do limite recomendado que a arrastou para uma depressão, e finalmente, Elise foi internada por seus pais em um hospital psiquiátrico.


A psiquiatra feminista Phylis Chesler, em  “Women and Madness” (Mulheres e Loucura, Palgrave Macmillan, 2005) relata ter sido comum o internamento de mulheres nas primeiras décadas do século XX, algo que já vinha acontecendo mas de forma um pouco menos recorrente - ou relatada - no século XIX. O histórico dos tratamentos mentais exclusivos à mulheres faz parte da história da repressão e machismo, práticas simples para tirar as mulheres de cena. Até a década de 50 dos anos 1900 o mundo já havia passado por duas guerras mundiais que mexeram profundamente com as estruturas sociais. As mulheres que começaram a se sentir empoderadas com a primeira onda do feminismo se viram reprimidas por uma retomada conservadora.

Não são poucos os exemplos de mulheres que foram alienadas pelas transformações sofridas nessa sociedade intolerante entre guerras. Virginia Woolf, Sylvia Plath, Anne Sexton e aqui no Brasil Ana Cristina Cesar são exemplos de escritoras que encontraram no suícidio uma forma de libertar-se ou mesmo de encarar o não pertencimento. Internamentos, abortos feitos de forma perigosa e sentimentos de deslocamentos sociais e sexuais iam além de motes para romances e poesias cruas e diretas.

Elise Cowen e Sylvia Plath tem muito em comum apesar da segunda ter tentado com mais afinco desenvolver um papel esperado de esposa e mãe. Aproximar as duas poetas é uma forma interessante de inserí-las em um mesmo momento. Elise era cobrada intensamente para desenvolver o papel de mulher nessa sociedade de Guerra Fria, tomada por mulheres sorridentes e agradecidas por terem seus homens de volta em casa. Porém ambas, assim como as outras escritoras citadas, em algum momento, se viram incapacitadas de bater de frente com suas famílias, maridos e filhos, o suícidio era o último ato de liberdade.

                                   
EU TENTEI

Tentei
Tenho tentado
Tentarei novamente
Embora a fraqueza do meu Ser
Não há nada digno
A não ser Deus e você
E Deus foi dormir


Mas em vida, a poesia também era como asas pouco domadas, porém libertadoras, em que Elise podia voar longe das cobranças. A morte e outros elementos kafkianos como insetos questionadores e pesadelos vão e voltam nos versos do único caderno de Elise Cowen. O indizível passeia pelas rimas e versos livres, as questões de gênero são pouco ou nada resolvidas, revelando uma formidável ambiguidade por parte da voz poética.  Em alguns momentos os poemas trazem ansiedade pela  liberdade, a busca incansável dos jovens beats, querendo sair e se deparar com seu destino, em outros momentos apenas dialogam com a morte e o deslocamento cotidiano. A poesia de Elise mostra não só o esforço em viver plenamente a sua inadequação à sociedade vigente mas também traz elementos da fraqueza de se manter à uma necessária marginalidade.

                                   
QUERO VESTIR E SAIR

Quero vestir e sair e subir em um ônibus pegar um cheque e declarar um
seguro desemprego.
Corpo, porque essa sensação esquisita – pavor
De que -
Morte? Morte tanto desejada?
“Morte da mente” - paz – não a dissolução a sete palmos


As pesquisadoras Ronna C. Johnson e Nancy M. Grace, focadas nas mulheres da Geração Beat, definem muito bem o que era ser uma mulher nesse meio. No capítulo introdutório de “Women Who Wore Black” (2002) relatam que as mulheres se reconheciam como Beats, no caso de Elise convivendo com Ginsberg e outros membros da tal irmandade de homens, colaborando com suas poesias - ao datilografar Kaddish não podemos afirmar até onde ela se envolveu com esse trabalho o editando, por exemplo - por outro lado eram integrantes de sua própria marginalidade de ser uma mulher nos anos 50, ao meio da boêmia, quebrando tabus, desconstruindo todo o contexto social em que foram criadas.

Elise Cowen não pertencia ao seu tempo, assim como todas as escritoras definidas como beats. Eram verdadeiras vanguardistas, deixaram o terreno pronto para a segunda onda do Feminismo e algumas seguem firmes até hoje, como é o caso de Diane Di Prima. Existe uma necessidade latente que essas mulheres não sejam esquecidas mas que também não sejam lembradas apenas por boatos, pré-julgamentos ou mesmo pelo culto à morte das que desistiram. E seguindo o que disse Corso, em seu depoimento sobre Elise Cowen, se depender de pesquisadores com olhares atentos, essas mulheres não ficarão trancafiadas atrás de pesados portões de hospitais psiquiátricos e sim vivendo, arrisco dizer para sempre, através de suas palavras e história.

Referências:

Chesler, Phyllis. Women and Madness. New York: Palgrave Macmillan. 2005
Cowen, Elise. Poems and Fragments. Ahsahta Press. 2014
Johnson, Ronna C. & Grace, Nancy M. Girls Who Wore Black: Women Writing the Beat Generation. New Jersey: Rutgers University Press. 2002
Willer, Cláudio

Emanuela Siqueira é graduada em Letras - Inglês e é pesquisadora independente de literatura feita por mulheres.


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ELISE COWEN, A BEAT QUE QUIS PARTIR CEDO



ELISE COWEN, A BEAT QUE QUIS PARTIR CEDO


Não foram poucas as jovens e talentosas escritoras que decidiram acabar suas vidas bem no início de carreiras literárias que tanto prometiam, ou inclusive, em alguns casos ( como os de Sylvia o Plath e Ana Cristina César) já estavam tendo reconhecidos frutos.  É evidente que o talento literário, assim como  a sensibilidade e inteligência que o acompanham, podem ser  também fonte de grande vulnerabilidade perante as dificuldades da vida, independentemente do sucesso ou reconhecimento obtido por seu portador ou portadora. Por outro lado, é arriscado tecer nexos entre as situações e biografias destas "mulheres que decidiram partir", pois  sabemos que tratando do psique humano, das forças e fragilidades da subjetividade, cada caso é um caso.  Mas há também a questão da condição social.  Por exemplo, no final do século XIX, quando qualquer mulher com talento intelectual  ou genialidade artística entrava facilmente em choque com a cultura vitoriana que preconizava o papel privado do "anjo do lar" - uma das mais severas da história em termos das suas restrições às aspirações públicas de pessoas de sexo feminino -  é bem possível que escritoras  sentissem o peso da normatividade como impossibilidade de viver. Sabemos que os conflitos subjetivos para as mulheres "extraordinárias" eram potencialmente insuportáveis.  Assim  como também, para as "mulheres comuns", pois como nos explica Maria Rita Kehl  (1998), os conflitos que emergiam em torno do imperativo/negação de ser sujeito no feminino eram de fato tão fortes que fizeram nascer a psicanálise:  o mestre Freud criando um espaço para as mulheres falarem, mas sem conseguir entender o porque do malestar que exprimiam.

Nas primeiras décadas do século XX, tornar-se escritora continuava difícil, como tão famosamente apontado e discutido por Virginia Woolf em Um  Teto todo Seu, tanto no Velho quanto no Novo Mundo.  As dificuldades particulares de ser escritora no contexto norte-americano -  como deixei claro em textos publicados em semanas anteriores - criava um "duplo padrão" dentro da propria boemia, dentre grupos que se vangloriavam de estar rompendo com restrições e relações sociais opressivas. Elise Cowen (1933- 1962), de vida breve,  foi membro do círculo Beat.  Desde menina, Elise sentiu-se  outsider em relação ao mainstream, deslocada da sua sociedade e da cultura de classe média que enfatizava a beleza e submissão femininas e impunha o casamento e o cuidar de filhos e marido. Tinha uma forma de ser  diferente, que a marcava.  Joyce Johnson, com quem travou uma das suas mais fortes amizades, a descreveu como uma menina "silenciosa e teimosa, que ficava o dia todo no seu quarto lendo poesia", que "fumava e não tomava nenhum trabalho com questões de beleza" (apud Mlakar:68)

Mas dentro do círculo Beat, também  não era fácil ser mulher de talento.  A tendência, comentada por todas as que escreveram memórias ao respeito (como Johnson e Jones, discutidas  nesta coluna em semanas anteriores) foi de relegação ao papel de auxiliar, em lugar de realmente ser aceita como escritora (não muito diferente, neste sentido, da situação vivida por Sylvia Plath em círculos da elite literária da época).  A grande paixão que Elise teve pelo poeta e "alma gêmea"  Allen Ginsberg (efêmera, pois este logo encontrou seu grande amor em Peter Orlovsky) parecer tê-la vulnerabilizada bastante.  Elise começou a apresentar problemas "psiquiátricos" cada vez mais fortes.



Elise suicidou-se aos 27 anos, deixando como última mensagem para os familiares e amigos, este poema:


Sem amor
Sem compaixão
Sem inteligência
Sem beleza
Sem humildade
Vinte e sete anos bastam

Mãe – tarde demais – anos de maldade – sinto muito
Pai – o quê foi que ocorreu?
Allen – sinto muito
Peter – Rosa Sagrada Juventude
Betty – tanta coragem de mulher
Keith – muito obrigada
Joyce – tão garota linda
Howard – meu anjo se cuide
Leo- abra a janela e Shalom
Carol – deixe acontecer
Agora deixem-me partir por favor
Agora deixem-me entrar


 (tradução:  Miriam Adelman)


A pesar dos avanços trazidos pelo feminismo e outros movimentos sociais da segunda metade do século XX, a  cultura contemporânea continua reproduzindo uma hierarquia simbólica  na qual  os julgamentos caem sobre a vida das mulheres de formas severas, produzindo inseguranças de muitos tipos, potencialmente muito dolorosas ou até insuportáveis.  Mas o espaço público e acesso a amplos campos de realização - literária, artística, científica, existencial-  foram sendo paulatinamente ampliados ao longo das décadas que seguiram até o final do século XX.  Uma escritora mexicana, da mesma geração de Elise,  Rosário Castellanos (1925-1974)  refletiu sobre o valor e o desafio da vida de uma mulher, salientando as mudanças e as possibilidades, advirtindo  que

"No, no es la solución /tirarse bajo un tren como la Ana de Tolstoy/ni apurar el arsénico de Madame Bovary"   e nos encorajando a encontrar "Otro modo de ser humano y libre. Otro modo de ser." 

Durante sua curta vida, Elise escreveu centenas de poemas, alguns publicados após sua morte, mas outros destruidos por seus pais, que não souberam compreender o "as tematizações lésbicas e bissexuais" que neles apareciam (Mlakar:68) . Amigos de Elise como  Johnson e  Ginsberg  a mantiveram viva em obras escritas (memórias e poesia) , registrando assim não só a perda pessoal senão a importância que ela teve no surgimento do círculo Beat.  Ela é lembrada também nas obras de história e crítica que avaliam a contribuição de mulheres diversas a um movimento literário conhecido principalmente, até hoje, através dos seus integrantes de sexo masculino.

 
                                Imagem:  Miriam Adelman


Referências.

Johnson, Joyce.  (1983) Minor Characters. New York: Houghton Mifflin.

Jones, Hettie. (1990) How I Became Hettie Jones. New York: Grove Press.

Kehl, Maria Rita (1998)  Deslocamentos do Feminino: a Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade.  Rio de Janeiro: Imago

Mlakar, Heike (2007).  Merely Being There is Not Enough:  Women's roles in Autobiographical Texts by Female Beat Writers.  Boca Raton:  Dissertation.com



  Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta.  Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991.  Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição.  Mantém também o blog pessoal,
Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com) 

Imagem:  Janaina Ina.
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