O INDIZÍVEL NOS CADERNOS DE ELISE COWEN: texto de Emanuela Siqueira
“Houve mulheres, estiveram lá, eu as conheci, suas famílias as internaram
, elas receberam choques elétricos. Nos anos de 1950, se você era homem, podia
ser um rebelde, mas se fosse mulher, sua família mandava trancá-la. Houve casos, eu as conheci, algum dia
alguém escreverá a respeito.” Gregory Corso, citado em “A Geração Beat”, de
Cláudio Willer
O breve depoimento do poeta beat
Gregory Corso serve como uma ótima introdução sobre quem foi a jovem Elise
Cowen e vai além, define o que era ser mulher em uma contracultura no começo do
século XX. Com um semblante curioso e perspicaz, com ares de mulher que vive
com o rosto enfiado em livros ou apenas uma bibliotecária atenciosa dos anos
50, Cowen tinha apenas 29 anos quando pulou da sacada do sétimo andar do apartamento
de seus pais em Nova Iorque. A jovem, filha única de um casal judeu de classe
média, em pouco menos de três décadas já carregava em seu corpo o fardo de ser
mulher numa sociedade pós-guerra e conservadora. Mas antes de ser essa jovem
acompanhada de uma história melancólica e opressiva, Cowen era poeta e foi uma
das presenças femininas que figurava além dos protagonistas homens da Geração
Beat.
O nome de Cowen não é incomum nos
círculos de discussão sobre os Beats. Talvez não pelo melhor motivo - sua
poesia - e sim por ter se relacionado brevemente de forma afetiva com Allen
Ginsberg e por ter cometido suícidio, apenas um ano antes de outra poeta,
Sylvia Plath. Tanto Ginsberg como outras figuras do movimento Beat relembraram
e homenagearam a jovem algumas vezes após a sua morte. Lucien Carr costumava
trocar o nome de Elise por “eclipse/elipse”, uma forma de fazer um trocadilho
com seu nome e temperamento, que segundo eles, era bipolar mas também demonstra
a forma como ela é lembrada dentro do círculo, apenas uma coadjuvante. Carr e
Corso são alguns desses jovens que além de citarem Cowen como a datilógrafa do
famoso “Kaddish” de Ginbesrg assumem que nem eles e talvez nem ela, conseguiram
enxergar o enorme talento de Elise Cowen.
[…] O fantasma de Elise
correndo em pânico sob
os arcos góticos de Bellvue e arrastada
sob a luz do dia por sua família
polícia – O que ela estava
apontando, à noite no Rio Hudson,
as vozes que só ela podia ouvir
- e agora ela é somente esse fantasma
fugindo nas salas escuras de minha
vasta mente com seus olhos fechados.
(Allen Ginsberg sobre Elise Cowen em um diário, em 1962)
(Allen Ginsberg sobre Elise Cowen em um diário, em 1962)
Profundamente influenciada por
poetas como Emily Dickinson, T.S. Eliot, Ezra Pound e Dylan Thomas, a poesia de
Cowen não deixa de dialogar com a liberdade dos versos beats, a ironia que
corroía Allen Ginsberg também acometia ela, porém de forma mais amarga e
fúnebre. O que sobrou da poesia da jovem Elise foi apenas um caderno usado
entre o outono de 1959 e a primavera de 1960. Com um pouco mais de 80 poemas, e
algumas anotações/fragmentos, o caderno foi o único a sobreviver aos ataques de
ódio por parte dos pais e familiares de Elise que queimaram tudo que restou da
jovem. O legado da jovem poeta era um fardo pesado para uma família tradicional
judia e de classe média. Aceitar que sua única filha era suicida e bissexual,
deixando isso tão claro em sua poesia, era demais para eles.
SONHO
Não consigo
lembrar de tudo.
Ar limpo. Eu
estou com Mamãe &
Papai. Estão
me levando à um médico
porque estou
doente, neurótica. Estão
enojados de
mim, cansados, por todo
o sonho,
especialmente Papai como na
vida real (?).
Depois de falar com o médico
cujo o rosto
não me lembro, ele, o
médico, senta
em uma cama & retira
uma atadura de
sua longa perna mostrando
uma ferida
secando.
“Sonho” é o poema em prosa que abre
“Poems and Fragments” (Poemas e Fragmentos, Ahsahta Press, 2014), a mais
completa publicação sobre Elise Cowen organizada por Tony Trigillio, o
pesquisador mais dedicado ao pouco que sobrou sobre a poeta. O verso livre de
“Sonho” sinaliza e define um período árduo, ou pior, expõe como Elise se sentia
em relação à seus pais. No fim da década de 50 e aos 26 anos Cowen já havia
passado pela tradicional Barnard College, se relacionado com um professor mais
velho que a apresentou a Ginsberg, saiu de casa, tentou se sustentar em
empregos que pagavam pouco à mulheres, fez um aborto perigoso além do limite
recomendado que a arrastou para uma depressão, e finalmente, Elise foi
internada por seus pais em um hospital psiquiátrico.
A psiquiatra feminista Phylis
Chesler, em “Women and Madness”
(Mulheres e Loucura, Palgrave Macmillan, 2005) relata ter sido comum o
internamento de mulheres nas primeiras décadas do século XX, algo que já vinha
acontecendo mas de forma um pouco menos recorrente - ou relatada - no século
XIX. O histórico dos tratamentos mentais exclusivos à mulheres faz parte da
história da repressão e machismo, práticas simples para tirar as mulheres de
cena. Até a década de 50 dos anos 1900 o mundo já havia passado por duas
guerras mundiais que mexeram profundamente com as estruturas sociais. As
mulheres que começaram a se sentir empoderadas com a primeira onda do feminismo
se viram reprimidas por uma retomada conservadora.
Não são poucos os exemplos de
mulheres que foram alienadas pelas transformações sofridas nessa sociedade
intolerante entre guerras. Virginia Woolf, Sylvia Plath, Anne Sexton e aqui no
Brasil Ana Cristina Cesar são exemplos de escritoras que encontraram no
suícidio uma forma de libertar-se ou mesmo de encarar o não pertencimento.
Internamentos, abortos feitos de forma perigosa e sentimentos de deslocamentos
sociais e sexuais iam além de motes para romances e poesias cruas e diretas.
Elise Cowen e Sylvia Plath tem
muito em comum apesar da segunda ter tentado com mais afinco desenvolver um
papel esperado de esposa e mãe. Aproximar as duas poetas é uma forma
interessante de inserí-las em um mesmo momento. Elise era cobrada intensamente
para desenvolver o papel de mulher nessa sociedade de Guerra Fria, tomada por
mulheres sorridentes e agradecidas por terem seus homens de volta em casa.
Porém ambas, assim como as outras escritoras citadas, em algum momento, se
viram incapacitadas de bater de frente com suas famílias, maridos e filhos, o
suícidio era o último ato de liberdade.
EU TENTEI
Tentei
Tenho tentado
Tentarei novamente
Embora a fraqueza do meu Ser
Não há nada digno
A não ser Deus e você
E Deus foi dormir
Mas em vida, a poesia também era
como asas pouco domadas, porém libertadoras, em que Elise podia voar longe das
cobranças. A morte e outros elementos kafkianos como insetos questionadores e
pesadelos vão e voltam nos versos do único caderno de Elise Cowen. O indizível
passeia pelas rimas e versos livres, as questões de gênero são pouco ou nada
resolvidas, revelando uma formidável ambiguidade por parte da voz poética. Em alguns momentos os poemas trazem ansiedade
pela liberdade, a busca incansável dos
jovens beats, querendo sair e se deparar com seu destino, em outros momentos
apenas dialogam com a morte e o deslocamento cotidiano. A poesia de Elise
mostra não só o esforço em viver plenamente a sua inadequação à sociedade
vigente mas também traz elementos da fraqueza de se manter à uma necessária
marginalidade.
QUERO VESTIR E SAIR
Quero vestir e sair e subir em um ônibus pegar um cheque e declarar um
seguro desemprego.
Corpo, porque essa sensação esquisita – pavor
De que -
Morte? Morte tanto desejada?
“Morte da mente” - paz – não a dissolução a sete palmos
As pesquisadoras Ronna C. Johnson e
Nancy M. Grace, focadas nas mulheres da Geração Beat, definem muito bem o que
era ser uma mulher nesse meio. No capítulo introdutório de “Women Who Wore
Black” (2002) relatam que as mulheres se reconheciam como Beats, no caso de
Elise convivendo com Ginsberg e outros membros da tal irmandade de homens,
colaborando com suas poesias - ao datilografar Kaddish não podemos afirmar até
onde ela se envolveu com esse trabalho o editando, por exemplo - por outro lado
eram integrantes de sua própria marginalidade de ser uma mulher nos anos 50, ao
meio da boêmia, quebrando tabus, desconstruindo todo o contexto social em que
foram criadas.
Elise Cowen não pertencia ao seu
tempo, assim como todas as escritoras definidas como beats. Eram verdadeiras
vanguardistas, deixaram o terreno pronto para a segunda onda do Feminismo e
algumas seguem firmes até hoje, como é o caso de Diane Di Prima. Existe uma necessidade
latente que essas mulheres não sejam esquecidas mas que também não sejam
lembradas apenas por boatos, pré-julgamentos ou mesmo pelo culto à morte das
que desistiram. E seguindo o que disse Corso, em seu depoimento sobre Elise
Cowen, se depender de pesquisadores com olhares atentos, essas mulheres não
ficarão trancafiadas atrás de pesados portões de hospitais psiquiátricos e sim
vivendo, arrisco dizer para sempre, através de suas palavras e história.
Referências:
Chesler, Phyllis. Women and Madness. New York: Palgrave
Macmillan. 2005
Cowen, Elise. Poems and Fragments.
Ahsahta Press. 2014
Johnson, Ronna C. & Grace,
Nancy M. Girls Who Wore Black: Women Writing the Beat Generation. New Jersey:
Rutgers University Press. 2002
Willer, Cláudio
Emanuela Siqueira é graduada em
Letras - Inglês e é pesquisadora independente de literatura feita por mulheres.
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