ELISE COWEN, A BEAT QUE QUIS PARTIR CEDO
ELISE COWEN, A BEAT QUE QUIS PARTIR CEDO

Nas primeiras décadas do século XX, tornar-se escritora continuava difícil, como tão famosamente apontado e discutido por Virginia Woolf em Um Teto todo Seu, tanto no Velho quanto no Novo Mundo. As dificuldades particulares de ser escritora no contexto norte-americano - como deixei claro em textos publicados em semanas anteriores - criava um "duplo padrão" dentro da propria boemia, dentre grupos que se vangloriavam de estar rompendo com restrições e relações sociais opressivas. Elise
Cowen (1933- 1962), de vida breve, foi membro do círculo Beat. Desde menina, Elise sentiu-se outsider em relação
ao mainstream, deslocada da sua sociedade e da cultura
de
classe média que enfatizava a beleza e submissão femininas e impunha o casamento e o cuidar de filhos e
marido. Tinha uma forma de ser diferente, que a marcava. Joyce Johnson, com quem travou uma das suas mais fortes amizades, a descreveu como uma menina "silenciosa e teimosa, que ficava o dia todo no seu quarto lendo poesia", que "fumava e não tomava nenhum trabalho com questões de beleza" (apud Mlakar:68)
Mas dentro do círculo Beat, também não era fácil ser mulher de talento. A tendência, comentada por todas as que escreveram memórias ao respeito (como Johnson e Jones, discutidas nesta coluna em semanas anteriores) foi de relegação ao papel de auxiliar, em lugar de realmente ser aceita como escritora (não muito diferente, neste sentido, da situação vivida por Sylvia Plath em círculos da elite literária da época). A grande paixão que Elise teve pelo poeta e "alma gêmea" Allen Ginsberg (efêmera, pois este logo encontrou seu grande amor em Peter Orlovsky) parecer tê-la vulnerabilizada bastante. Elise começou a apresentar problemas "psiquiátricos" cada vez mais fortes.
Mas dentro do círculo Beat, também não era fácil ser mulher de talento. A tendência, comentada por todas as que escreveram memórias ao respeito (como Johnson e Jones, discutidas nesta coluna em semanas anteriores) foi de relegação ao papel de auxiliar, em lugar de realmente ser aceita como escritora (não muito diferente, neste sentido, da situação vivida por Sylvia Plath em círculos da elite literária da época). A grande paixão que Elise teve pelo poeta e "alma gêmea" Allen Ginsberg (efêmera, pois este logo encontrou seu grande amor em Peter Orlovsky) parecer tê-la vulnerabilizada bastante. Elise começou a apresentar problemas "psiquiátricos" cada vez mais fortes.
Elise suicidou-se aos 27 anos, deixando como última mensagem para os familiares e amigos, este poema:
Sem
amor
Sem
compaixão
Sem
inteligência
Sem
beleza
Sem
humildade
Vinte
e sete anos bastam
Mãe
– tarde demais – anos de maldade – sinto muito
Pai
– o quê foi que ocorreu?
Allen
– sinto muito
Peter
– Rosa Sagrada Juventude
Betty
– tanta coragem de mulher
Keith
– muito obrigada
Joyce
– tão garota linda
Howard
– meu anjo se cuide
Leo-
abra a janela e Shalom
Carol
– deixe acontecer
Agora
deixem-me partir por favor
Agora
deixem-me entrar
(tradução: Miriam Adelman)
A pesar dos avanços trazidos pelo feminismo e outros movimentos sociais da segunda metade do século XX, a cultura contemporânea continua reproduzindo uma hierarquia simbólica na qual os julgamentos caem sobre a vida das mulheres de formas severas, produzindo inseguranças de muitos tipos, potencialmente muito dolorosas ou até insuportáveis. Mas o espaço público e acesso a amplos campos de realização - literária, artística, científica, existencial- foram sendo paulatinamente ampliados ao longo das décadas que seguiram até o final do século XX. Uma escritora mexicana, da mesma geração de Elise, Rosário Castellanos (1925-1974) refletiu sobre o valor e o desafio da vida de uma mulher, salientando as mudanças e as possibilidades, advirtindo que
"No, no es la solución /tirarse bajo un tren
como la Ana de Tolstoy/ni apurar el arsénico
de Madame Bovary" e nos encorajando a encontrar "Otro modo de ser
humano y libre. Otro modo de ser."
Durante sua curta vida, Elise escreveu centenas de poemas, alguns publicados após sua morte, mas outros destruidos por seus pais, que não souberam compreender o "as tematizações lésbicas e bissexuais" que neles apareciam (Mlakar:68) . Amigos de Elise como Johnson e Ginsberg a mantiveram viva em obras escritas (memórias e poesia) , registrando assim não só a perda pessoal senão a importância que ela teve no surgimento do círculo Beat. Ela é lembrada também nas obras de história e crítica que avaliam a contribuição de mulheres diversas a um movimento literário conhecido principalmente, até hoje, através dos seus integrantes de sexo masculino.
Referências.
Johnson, Joyce. (1983) Minor Characters. New York: Houghton Mifflin.
Jones, Hettie. (1990) How I Became Hettie Jones. New York: Grove Press.
Kehl, Maria Rita (1998) Deslocamentos do Feminino: a Mulher Freudiana na Passagem para a Modernidade. Rio de Janeiro: Imago
Mlakar, Heike (2007). Merely Being There is Not Enough: Women's roles in Autobiographical Texts by Female Beat Writers. Boca Raton: Dissertation.com
Miriam Adelman é socióloga, tradutora e poeta. Nascida nos EUA, morou dos 19 aos 29 anos no México. É radicada em Curitiba desde 1991. Professora da UFPR desde 1992, atualmente actúa nos Programas de Pós-graduação de Estudos Literários (PGLETRAS) e Sociologia (PGSOCIO) dessa instituição. Mantém também o blog pessoal,
Juntando Palavras (www.conviteapalavra.blogspot.com)
Imagem: Janaina Ina.
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