quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Um reencontro com Warhol em Buenos Aires


Em visita a meu irmão, em Buenos Aires, no fim de semana de 20 de novembro, fui surpreendida, no bonito Museu de Arte Latinoamericano/Malba, por um reencontro com o as obras do norte-americano Andy Warhol - um dos artistas com os quais trabalhei em minha tese. Trata-se de uma pequena retrospectiva montada com obras do acervo da Fundação Andy Warhol; sem comparação com as grandes mostras dos museus da Europa e dos EUA, possui importância para nós, da América Latina, que pouco vimos as serigrafias e os filmes daquele que melhor retratou o que Fredric Jameson definiu como o “curto século americano”.

Latas de sopa Campbell’s, notas de dólar, a estátua da liberdade, o edifício Empire State, acidentes automobilísticos, cadeiras elétricas, Marilyn Monroe, Jacquie Kennedy, Mao Tse Tung, Elvis Presley: objetos consumidos no dia-a-dia e celebridades que circulam no imaginário do norte-americano são transpostos para galeria/sala do museu pelo artista que, para o crítico Peter Schjeldahl, está sempre “irritantemente certo”. Segundo Schjeldahl, Warhol teria até mesmo sido baleado no momento histórico certo (1968, quando uma das freqüentadoras da Factory, Valerie Solanas, quase o mata). Ele se acomoda, gruda, por assim dizer, no cotidiano norte-americano de tal modo que se confunde com ele. Ao percorrer suas imagens, acompanhamos a história do império norte-americano que impõe ao mundo a democracia do consumo. Lacônico, o artista reconhece como “maravilhosa” a idéia de América “maravilhosa”, pois “quanto mais uma coisa é igual, mais americana ela é”. Afinal,

“Na Europa, a realeza e a aristocracia costumavam comer muito melhor do que os camponeses (...) Mas quando a rainha Elizabeth veio aqui e o Presidente Eisenhower lhe comprou um cachorro-quente eu tenho certeza de que ele estava confiante de que ela não poderia ter levado para o Buckingham Palace um cachorro-quente melhor do que aquele que ele comprou para ela por talvez 20centavos no parque. Porque não existe melhor cachorro-quente do que um cachorro-quente de parque.Nem por um dólar, nem por 10dólares, nem por 100 mil dólares ela poderia comprar um cachorro-quente melhor. Ela poderia conseguir um por 20 centavos do mesmo modo como qualquer outra pessoa”.

Nesse mundo da classe média circulam imagens abundantes, repetidas à exaustão, sem profundidade ou volume. Warhol bem sabe que a Marilyn são suas imagens, e assim nos leva a conhecê-la numa sucessão de serigrafias, tal como “existe” no cinema e nas páginas da revista Life - uma presença ricamente imaginada, mas que nunca esteve realmente ali. Ele não estava pintando uma mulher de carne e osso e complexidade psicológica, mas uma fotografia de publicidade de um bem criado no estúdio de Hollywood. Ele desmonta e remonta a imagem da atriz a partir de diferentes telas serigráficas (uma correspondente ao cabelo, outra correspondente aos lábios/batom, ainda outra à face...). Faz assim uma espécie de crônica da sociedade americana a partir de seu próprio processo de produção e consumo. A serialização dos produtos/imagens encontra-se em seu processo de trabalho, constituindo, aliás, seu próprio método. A alternância das cores das Marilyns, executada afinal por meio da serigrafia, garante a espécie de vibração da seqüência, a sensação de aproximação e de afastamento das imagens. Assim Warhol converte o “mecanismo” do consumo rápido daquelas imagens para o funcionamento da sua obra. E, para a impossível solução econômica da obsolescência planejada, ele propõe sua espécie “estética” de economia: cancela, por assim dizer, a perda de interesse que se segue imediata ao interesse súbito despertado por aquelas imagens no espectador, através da repetição.

Warhol assume a lógica do consumo como fazer poético. Do desperdício a certa permanência, toma uma eficiente direção visual a implacável linha de raciocínio do artista: “Comprar é mais americano do que pensar”. No melhor de seu laconismo, o artista distingue a cultura da abundância norte-americana do tradicional comércio ou mesmo do capitalismo de massa do século XIX: “Na Europa e no Oriente as pessoas gostam de comercializar – comprar e vender, vender e comprar (...) americanos não estão tão interessados em vender – de fato, eles preferem jogar fora a vender. O que eles realmente gostam é de comprar – pessoas, dinheiro, países”. Ele reconhece, ao seu modo abrupto, o arrogante domínio econômico dos EUA pautado no raciocínio do consumo, ou seja, uma via de mão única, em tudo oposta a uma efetiva relação. Falta à base social americana da segunda metade do século XX a efetiva troca, capaz de assegurar identidade, individual e social.

A posição geográfico-estratégica privilegiada, vivenciando in loco a emergência da sociedade de consumo, e uma aguda inteligência visual se combinam para que ocorra a interpenetração recíproca entre forma e matéria capaz de “formar” o mundo atual. “Mundo Warhol”, onde, para o Maurizio Cattelan, artista residente em Nova York, nós vivemos tanto quanto na cidade do Empire State – o edifício simplesmente está lá, você o conhece, de vez em quando olha pra ele para se orientar quando está perdido, mas você não pensa realmente nele . Nesse sentido, a obra de Warhol parecia antecipar nosso cotidiano onde as imagens são cada vez mais onipresentes. Enquanto nos anos 60 o artista dirigia (ou era dirigido por ela, como repetia) uma Fábrica, onde reproduzia objetos e pessoas em serigrafias e filmes, hoje todos nós instalamos em nossas casas e escritórios mini-factories, sob a forma de micro-computadores e seus acessórios. Do mesmo modo, se nos anos 70 Warhol não saía de casa sem sua câmera fotográfica, hoje, boa parte de nós tem suas câmeras já acopladas em seus aparelhos celulares.

Assim, em nosso mundo cheio de imagens reproduzidas por uma variedade cada vez maior de aparelhos, os trabalhos de indiscutível força visual, ainda são capazes de nos fazer rever e repensar nossa realidade. E afinal, a arte não trata mesmo de fazer com que olhemos a realidade de um modo até então não visto?

Warhol repete em cores vibrantes objetos, celebridades e cenas corriqueiras veiculadas à exaustão na mídia. Produtos industrializados, atrizes (além da Marilyn, Liz Taylor lhe é cara), atores, músicos, acidentes automobilísticos, Jackie Kennedy de luto pela morte do marido. Expõe, por assim dizer, o imaginário norte-americano, sendo capaz, inclusive, de dar “forma” a um objeto raramente visto pelo público norte-americano – a cadeira elétrica, método de execução que começa a ser empregado em alguns estados norte-americanos, ganhando os noticiários.

Quem irá ocupar aquela cadeira? Note-se o aviso “silêncio”: em meio à ruidosa cultura de massa, exige-se que cada um de nós se posicione diante dela. Da experiência das diferentes obras fica um arrepio da consciência, disposição mental que, se não muda a forma prática de nossa vida real, coincide com nossa conduta em relação a ela – e não seria este o único modo de mudá-la?


Obs: Todas as citações de Warhol foram retiradas de “The Philosophy of Andy Warhol (from A to B and back again)”, de sua autoria.





Fernanda Lopes Torres, historiadora da arte, graduada pela ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) da UERJ, mestre e doutora em História pela PUC-Rio, pesquisadora de arte da Multirio (Empresa Municipal de Multimeios) escreve às quintas-feiras quinzenalmente no ContemporARTES.





fernandalopestorres@uol.com

0 comentários:

Postar um comentário

Seja educado. Comentários de teor ofensivo serão deletados.