Contribuição do blogue amigo: O Clovis


Hoje abriremos espaço para um texto especialmente cedido pelos nossos amigos do blogue O Clovis. Mas quem é esse tal de Clovis? Bem, segundo o seu editor Ulisses Figueiredo:

Diego, Bruno e Ulisses
O blog O Clóvis surgiu como uma idéia em janeiro de 2009, em uma conversa entre Diego, Ulisses e Bruno. Sem saber como concretizar algumas aspirações do trio, as conversas giravam em torno de unir as habilidades reflexivas de cada um de alguma forma. O pensamento era mais do que criar algo no qual pudéssemos nos expressar, mas algo no qual pudéssemos nos doar às pessoas. Ter um lugar onde pudéssemos compartilhar com os leitores o dom que recebemos e que desenvolvemos ao longo de nossa vida. Todos os três concordamos que escrever seria a melhor forma de fazer isso, até porque nos identificamos muito com essa forma de comunicação: Bruno, Diego, Luciano e Danielle já eram blogueiros.... eu (Ulisses), Sandro e André somos compositores. Das discussões, não demorou para que a criação de um blog em conjunto fosse uma aspiração de todos. Diego, Bruno e eu (inicialmente) nos ocupamos de pensar na forma na qual isso aconteceria. No formato do blog.... no layout. Na medida em que desenvolvíamos essas idéias, discutíamos a participação de Luciano Fortunato no grupo. Escolhemos o nome do blog: O Clóvis. Como nossa intenção era um blog de reflexões sobre tudo a nossa volta, pensamos nos antigos bobos da corte que satirizavam a sociedade. Trouxemos isso para o Brasil e lembramos da figura do “ bate-bolas” , também chamado de “clóvis” , derivado do inglês clown(palhaço). Danielle foi procurada por mim para criar uma imagem para o blog a partir de todas essas idéias.

Artista plástica audaciosa como sempre, nos surpreendeu com a imagem destacada de testículos de boi, criada a partir de sua pesquisa relativa aos palhaços bate-bolas, que usavam sacos escrotais bovinos para fazer suas “bolas” . O seu envolvimento com o projeto foi definitivo para o convite a escrever conosco. Em setembro o blog O Clóvis vai ao ar surpreendendo e criando uma leitura alternativa aos inúmeros blogs, vlogs e microblogs pessoais e vazios em conteúdo. Após um ano, através de seleção junto aos nossos leitores, comemoramos nosso primeiro aniversário com a aquisição de Sandro Cortes e André Fraga ao time de escritores. Esse é O Clóvis: criado não só pela necessidade de nos expressarmos, mas pela necessidade de compartilharmos nossas vivências e percepções. Sem público direcionado, O Clóvis está vivo pela nossa crença de que a palavra pode transformar pessoas.

É isso mesmo cara leitora e caro leitor! Além de publicarmos contribuições individuais, também publicamos contribuições coletivas. Através dessa iniciativa esperamos fortificar a rede de relacionamentos virtual que produz cultura independente e de boa qualidade. Lembrando que esse intercâmbio entre o Clovis e a ContemporARTES foi feito pelo contemporâneo Filipe Batalha. Então vamos logo ao texto clovista:



Abrir a felicidade?
A vida de um homem comum e a nova campanha do refrigerante preto

Estou aqui. E estar aqui é doce e amargo. Pronto. Lá vem um desses cronistas depressivos pra baixar ainda mais o astral nesse invernozinho gripado e pouco contente do Rio de Janeiro, pensarão. Realmente, o que estou matutando pras próximas linhas tem contra-indicações, e é mais dor que sorriso. Se “a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerantes”, como cantou de forma provocante Humberto Gessinger, eu não sei. Assim como não sei de muita coisa. Só sei que estou mergulhado numa das minhas confusões de existir. Amargo, tentando não perder o que me resta de doçura.Tenho, no decorrer da minha vida, aprendido a apreciar o amargo e também a me enjoar fácil do que é doce. Estou aqui nesta vida e neste mundo, e minha cabeça não mais vive tanto em outros mundos. O meu “algo além” não ultrapassa mais a estratosfera. Hoje pouco penso em astronomia, na organização dos astros – não que isso não mais me importe em definitivo. Os meus predadores, eles fazem-me ficar mais pra caverna do que pra céu. Quem são os meus predadores? São aqueles mesmos que me deram a vida e me ensinaram sobre a vida: os atores sociais. A sociedade é o deus dos deuses. Ela é quem nos faz ser e deixar de ser. Ela é quem nos ensina tudo o que sabemos e nos faz desaprender o essencial. Ela é quem nos torna confortáveis, “sociáveis”, e, ao mesmo tempo, nos deixa sem jeito, sem graça, com mal estar de ser. Ela e seus dogmas morais impossíveis de serem cumpridos com gosto. Ser imoral é estar vivo. E ser vivo é sofrer sanções de variada sorte.

Eu nunca tive paraíso, nem hipotético. Eu nunca acreditei em céu. E também nunca cri em inferno. E também nunca cri em formas absolutas de bem viver. Me fizeram pensar que eu pudesse acreditar nessas coisas. Creio que, na verdade, nunca acreditei em nada. Acho que eu fingi durante muito tempo – pra mim mesmo – acreditar. Mas isso já faz alguns anos.

Resta-me então agora olhar para o micro. A vida pequena e funcional. A cozinha, a sala, a cria, a companheira, os amigos, o umbigo: estas são as coisas às quais devo me ater. Verdade absoluta? Deus? Satanás? Espíritos? Big Bang? Galáxias? Creio que já gastei tempo demais com isso tudo. E, no entanto agora, o que entra no lugar de Deus e das Galáxias? O dinheiro? Não. Deus saiu e o dinheiro não entrou. Isso me deixou vazio de tudo, cheio de questões e formulações incompletas, que são como vapor de éter. Não guardo comigo as coisas que mais protegem um homem, são estas dinheiro e Deus. Sinto-me então às vezes como um pequeno homem solitário num pequeno barco, num grande mar, à mercê do tempo. Meus braços até têm alguma força para remar, mas a terra firme está longe demais. Minha vida é incontinência. Cansaço em descansos compulsórios.

Estou aqui. Tentando me distrair com arte e afins. Tentando extrair um mínimo de satisfação da arte. Música e artes visuais. São elas, as artes pop, a minha religião, onde me refugio tentando satisfazer meu não-sei-o-que. Satisfação. Alguém, em algum dia, provavelmente uma bactéria, inventou que satisfação é o que de fato importa na vida. A luta por satisfação pode ser vista no comportamento de qualquer inseto, planta ou micróbio. E de lá pra cá – desde as bactérias primordiais – isso é tudo o que buscamos. Satisfação pode ter como sinônimo a palavra felicidade. Antigamente, que eu me lembre, o slogan da Coca-cola era um simples “Coca-cola é isso aí”. Como é que alguém conseguia vender um produto dizendo sobre ele apenas “... é isso aí”? “É isso aí” pode ser, na verdade, a expressão máxima irredutível da afirmação do ser. Era eu um menino, e no dia em que eu ganhei uma camisa da Coca-cola, numa tampinha premiada, pensei, sem ter feito a formulação em si, mas pensei: “eu sou”. Nada mal o trabalho daqueles marqueteiros. Depois vieram outras frases ainda bem interessantes como a recente “Viva o lado Coca-cola da vida”. Mas nada supera e consegue ser mais pesado e contundente que o novo slogan. E eles pegaram bem pesado desta vez: “Abra a felicidade”. “Abra a felicidade”, este é o novo slogan da multinacional. Num mundo que busca a felicidade como algo a ser conquistado imediatamente – uma felicidade fast food – nada poderia ser mais oportuno que essa nova campanha. A felicidade nunca esteve tão barata: o preço de uma Coca-cola. São os truques, os mecanismos do capitalismo para multiplicar seus ganhos e manter o povo anestesiado. É um grande barato. Há muitas coisas baratas. Somos idiotas felizes com uma bebida barata, e todos os tipos de felicidade forjada e barata, como um crediário a perder de vista para comprar uma nova TV, e assim poder ver nela, em bom vermelho, o rótulo do refrigerante. A felicidade que vem da TV às vezes é mesmo muito barata, como esta coisa, essa possibilidade de extraí-la de dentro de uma garrafa como se uma lâmpada maravilhosa fosse. Porém o eterno e aparentemente imortal american way of life trazido pela televisão não é tão barato assim. Há um vasto repertório de sonhos pré-fabricados que não saem nada barato para os pobres do mundo. Há muitos sonhos caríssimos. Sonhos impossíveis. Sonhos que eram inconcebíveis antes do advento da comunicação de massa. Sonhos que eram insonháveis e que agora habitam nossas almas. Burguesia e plebe sonham juntos os mesmos sonhos, porém só a primeira tem poder para realizá-los a contento, transformando-os em, mais do que sonhos, projetos de vida.

Confesso que fico feliz quando abro uma Coca-cola com garrafa de vidro. Há estudos sobre o papel das marcas no mundo contemporâneo e seu papel na felicidade das pessoas que confirmam o que eu estou falando, o que não faz de mim um louco varrido por me contentar com uma coisa tão pequena como abrir uma Coca-cola. Sou apenas mais uma vítima do mercado mundial. Há muitas coisas bem baratas que me trazem contentamento psicológico – que é o único contentamento que existe –, como abrir uma Coca-cola, alugar um filme na locadora, comprar um CD e ouvir as músicas que estão nele, comprar um livro e ler o que nele está escrito, sabendo inconscientemente de antemão o conteúdo, pois muito do que se lê nos livros já se sabe. Quase sempre assim: comprar, comprar, comprar. Mas como eu faço para comprar as felicidades mais caras – aquelas que só as pessoas da parte de cima da pirâmide social podem comprar... O sol nasce para todos? Tá legal. Alguém hoje em sã consciência realmente se satisfaz com essa informação, de que o sol nasce para todos? Entramos então naquelas velhas novas anedotas: “O que você prefere? Aproveitar esse sol que nasce pra todos, de pés descalços com uma enxada nas mãos, longe da sombra num sertão sem nuvens, ou ainda na sombra quente e insalubre de uma fábrica, fazendo hora extra, ou preferiria olhar para esse sol com óculos escuros de dentro de uma Mercedes Benz conversível, com uma bela e despreocupada mulher ao seu lado numa estrada paradisíaca?”.

Seria a Coca-cola um deus? Sei lá. De qualquer forma, Deus abençoe a Coca-cola! A felicidade vinda desta bela garrafa com seu belo rótulo vermelho, me custa apenas duas moedas. Quanto ao feio líquido negro que vem dela, que mais lembra suco de petróleo ou de cocô? Ah, isso é o que menos importa. E quando Ele, Deus, puder dar uma olhadinha nos trabalhadores rurais, operários e todos os pobres compradores de aparelhos de TV e de garrafas de Coca-cola... Que não falte comida barata, diversão barata e arte barata aos pobres do mundo.

Tudo o que eu escrevi nos parágrafos anteriores está impregnado de ironia e tristeza, isso parece claro. Houve, porém, um intervalo entre o tempo em que eu os escrevia e o instante imediatamente atual, este aqui. Não fui assistir TV. Mas fui tomar um banho em chuveiro quente – uma dessas maravilhosas invenções que só puderam ser disponibilizadas a todos, graças ao nascimento e desenvolvimento da burguesia capitalista industrial. Botei uma confortável blusa de lã, meu jeans, meus velhos tênis adidas, e fui até o meu quintal, de onde vislumbrei as discretas montanhas do meu bairro com suas casas, do outro lado da ferrovia. Olhei pra minha garagem, pro meu carrinho velho e tosco, mas, no fundo, simpático e funcional, e pensei se eu precisaria mesmo de um Mercedes. Voltei do quintal mais animado. Minha doce e atenciosa esposa – uma mulher boa, porque é, entre vários atributos, uma boa lutadora – passa álcool no telefone. Puxa vida... Chuveiro, ferrovia, telefone... este computador aqui... tudo isto advém do tal capitalismo industrial. Talvez eu ame o capitalismo mais do que presuma. Esse amor pode trazer na bagagem toda essa minha carga de ódio. Amor e ódio são irmãos em luta. Quem afinal não gosta disso tudo que nos rodeia? Quem não gosta da TV? Bobagem. Todos gostam, ainda que alguns não admitam ou não saibam. E todos gostam da idéia do grande e delicioso bolo – aquele quase mítico bolo que deve crescer pra depois ser distribuído. Eu queria apenas que o bolo fosse mais igualitariamente dividido. Eu queria uma fatia maior para mim e os meus. Uma fatia mais justa e mais irmã para todos. Mas, enquanto o bolo não chega... Vamos trabalhando e vivendo o prazer das “pequenas coisas”. E, pieguice ou não, o sol nasce pra todos, sim. Abrir a janela e ver a luz do sol é, na verdade, abrir a felicidade. E nada contra a minha querida Coca-cola. Até porque não posso contra ela.

Luciano Fortunato

Texto originalmente publicado no blog O Clóvis no dia 12 de outubro de 2009.
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Tropa de Elite 2, osso duro de roer.....








Todo filme é uma obra de criação e como tal denuncia sua subjetividade na mão forte do criador...  não importa se o produto final é intitulado de documentário ou ficção. Certa vez durante uma aula, depois de algumas considerações do professor Arlindo Machado,  um aluno perguntou: Arlindo, como  se reconhece um filme documentário mediante tantas objeções e conceitos distintos atribuídos a esse gênero? Ele respondeu sorrindo: Se o realizador for um documentarista então o filme é um documentário.
Tropa de Elite 2 começa com estes dizeres: “Este filme é uma obra de ficção portanto .. blá, blá, blá ......” Com a utilização de atores e esse texto acima antes de iniciar o filme, seus criadores se eximem da responsabilidade das autorias dos crimes e castigos, que poderiam ser atribuídos a vários autores.... bela sacada do diretor. No entanto, a alusão à realidade é muito intensa durante todo o filme; na criação das personagens, na história, nos cenários ou nas situações apresentadas. O “documentarista” José Padilha mandou bem.
















José Padilha é produtor, diretor e roteirista de filmes documentários e ficcionais, ele tem essa coisa de produzir nos dois gêneros com a mesma levada: a da seriedade e do compromisso social. Seus filmes são como tapas na cara da sociedade, como podemos ver em Os Carvoeiros, 1999 e em Garapa (2008), documentários premiadíssimos. Nos filmes de ficção ele conserva o mesmo intuito: Ônibus 174, 2002 e Tropa de Elite e Tropa de Elite 2, 2007, 2010, respectivamente. 



Em Tropa de Elite 2, o casting de primeira faz a diferença, e ao meu ver, alguns atores dão o tom do filme: Wagner Moura conduz a personagem do Tenente Coronel Nascimento com extrema naturalidade tornando-a muito convincente. O talentoso músico e ator, Seu Jorge surpreende mais uma vez com sua pegada forte dando visibilidade a personagem Beirada. Seu Jorge já participou em seriados de TV e em vários filmes como: Cidade de Deus, 2002 como Mané Galinha … Amparo de Jesus, 2008 e outros. Outra atuação impressionante foi do ator André Mattos na pele da personagem Fortunato, um apresentador de TV, daqueles de programas sensionalistas estilo Datena, que leva o público a dar aquela risada dolorida: rir da própria  desgraça. 
Outro fator que merece destaque no filme é a trilha sonora,  com a música da banda de rock Tihuana, Comboio do Terror, acerta mais uma vez e define o slogan do filme: Tropa de Elite 2 osso duto de roer..... Outros nomes do rock  dão ritmo ao filme, como: Paralamas do Sucesso, com O Calibre, O Rappa, com Tribunal de Rua, Legião Urbana, com Que País é Este? e Cazuza, com Brasil. Ainda tem Marcelo D2, (Candidato Caô Caô), Mc Leonardo e Junior (Tá Tudo Errado), Leci Brandão (Zé do Caroço) e Zeca Pagodinho (Quem é Ela).
Mediante tantas matérias escritas sobre o filme, não queria que o leitor da Contemporartes padecesse ao ler repetições daquilo que já está publicado em jornais, revistas e afins,  então tive uma idéia fascinante para acrescentar algo de novo e relevante ao nosso debate fílmico. Que tal um antropólogo para falar do filme? Então convidei o Leandro Daniel que resolveu dar sua contribuição e escreveu especialmente para a coluna AS HORAS. Aproveitem e acompanhem a leitura.

Leandro Daniel Santos Carvalho é formado em Ciências Socias pela USP, bolsita CNPQ - INCT, no NEV (Núcleo de Estudos da Violência da USP ).

Tropa de Elite 2 atropela qualquer resquício de inocência. Apesar da lembrança irônica, no início do filme, que  nos avisa que o filme é uma obra de ficção, o que vemos até o último minuto é uma alusão mais que direta à pura realidade, se ela existe. Personagens, situações, objetos inseridos no filme, falas, todos elementos com referência à acontecimentos ligados a segurança pública no Rio de Janeiro.
E ele aborda questões delicadas, vamos dizer assim. Investiga quem são os grandes diretores da guerra cotidiana abordada em Tropa 1. Do 1 para o 2, distando 15 anos terrestres entre um e outro, existem diversos pontos de virada: a paulatina conscientização da personagem do Capitão Nascimento (agora tenente-coronel Nascimento), a mudança estrutural na política do crime no Rio e  a transformação da tragédia de uma escala micro em uma de grandes proporções.
O filme mexe com questões de valores, busca culpados, provoca o espectador. Isso não é novo, mas a forma que o filme adota, tendo o Nascimento como fio condutor, nos faz entrar na pele da personagem, que se atraca com todos os fatores que compõem sua existência. E, se pensarmos bem, o filho do capitão torna-se uma peça central nessa continuação do primeiro para o segundo filme.
Vamos descortinando os envolvidos, refazendo as ligações, tudo isso guiado pelo grande personagem representado por Wagner Moura, um monstro em cena. 


Milícias ou máfias?


O filme aborda o que seria o surgimento das chamadas milícias no Rio, nome que foi adotado pelos meios de comunicação nos fins de 2006. Tratam-se basicamente de grupos armados irregulares formados por agentes do Estado, como policiais militares e civis, bombeiros, guardas civis (quase sempre associados a políticos), que utilizam um discurso de proteção aos habitantes como argumento para estabelecer o controle coativo em determinado território.
Apesar de parecer um fenômeno  recente, é de conhecimento de todos a ocorrência de grupos de extermínio desde a década de 70, preponderantemente na Baixada Fluminense. Esses grupos, também compostos por agentes do Estado, eram amparados por comerciantes, empresários e políticos, que se beneficiavam publicizando seus feitos de “limpeza” (execuções sumárias).
As chamadas milícias “abocanham” toda uma parcela de poder quando implementam, através da força e do medo, o domínio de comunidades. Esse poder passa de “mão em mão”, distribuindo lucros, influências e prestígios.
Desde o controle de instalação de TV a cabo clandestina, cobrança de taxas por serviços, negociações com pessoas envolvidas com tráfico de drogas e armas, bicheiros, até o fino trato com deputados e vereadores, alçados eletivamente a seus postos graças a esse apoio. As chamadas milícias, apesar de sua dinâmica de posições e meios de atuação, tem como fator central o estabelecimento de uma rede que tem seu nó fundamental no Estado: por ele e pela sua falta elas devem sua existência. Nas comunidades o Estado é deficitário, abrindo espaço para esse poder paralelo; mas ele é realmente paralelo, já que ele é alimentado pelo próprio Estado?
Nesse sentido que as “milícias” assimilam-se às máfias, tal qual conhecidas na Itália, atuando no intercâmbio entre legal e ilegal, dentro e fora do Estado, tudo isso acobertado por uma cortina de fumaça, que nem é tão densa assim. O filme nos joga isso na cara, sem pena...as respostas? Saídas? Muito debate, informação e ação...
Indicação de leitura para saber sobre o tema:

Coletânea de artigos “Segurança, tráfico e milícias”, organizada pela Justiça Global e com apoio da Fundação Heinrich Böll

Filmes relacionados com o tema:

                                   Gomorra, 2008 (Itália)
O Profeta, 2009 (França), já citado em coluna anterior.

Filmes de grande sucesso no Brasil serão sempre ligados a sangue?
Ou à Globo Filmes?

Bom filme!


Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO e na UNIP nos Cursos de Comunicação e é integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sobre a direção de Antônio Benega.


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Rio, Que Foi Meu Um Dia!!!



Canção: AQUELE ABRAÇO (1969)
(Gilberto Gil)
Fotos: RIO, QUE FOI MEU UM DIA! (junho/2010)
Duda Woyda


O Rio de Janeiro
Continua lindo
O Rio de Janeiro
Continua sendo
O Rio de Janeiro
Fevereiro e março
Alô, alô, Realengo
Aquele Abraço!
Alô torcida do Flamengo
Aquele abraço
Chacrinha continua
Balançando a pança
E buzinando a moça
E comandando a massa
E continua dando
As ordens no terreiro
Alô, alô, seu Chacrinha
Velho guerreiro


Alô, alô, Terezinha
Rio de Janeiro
Alô, alô, seu Chacrinha
Velho palhaço
Alô, alô, Terezinha
Aquele Abraço!
Alô moça da favela
Aquele Abraço!
Todo mundo da Portela
Aquele Abraço!
Todo mês de fevereiro
Aquele passo!
Alô Banda de Ipanema
Aquele Abraço!



Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
A Bahia já me deu
Régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu
Aquele Abraço!
Prá você que me esqueceu
Ruuummm!
Aquele Abraço!
Alô Rio de Janeiro
Aquele Abraço!
Todo o povo brasileiro
Aquele Abraço!






DUDA WOYDA, ator, com experiências no Paraná e Rio de Janeiro, cidade com a qual mantem contatos profissionais. Integra a CIA Ateliê Voador e a CIA Teatro da Queda. Pesquisa questões relacionadas ao teatro físico e a sua relação entre dramaturgia corporal e teatralidade, priorizando a multidisciplinaridade.
dudawoyda@yahoo.com.br
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O dengo que a nega tem


   
Hoje trazemos a colaboração de Vanessa Deguti, uma reflexão sobre a música O dengo que a nega tem. A análise foi feita durante as atividades do seminário Vozes da Globalização, módulo Reinventando Afroidentidades que se realiza aos sábados na Casa da Palavra de Santo André. No dia 9 de outubro eu e Cícero Barbosa Jr. proferimos a palestra Teu cabelo não nega: a representação da mulher negra na canção brasileira na qual houve uma oficina de interpretação de letras e música de canções da MPB relacionadas ao assunto. Vanessa sistematizou as atividades de seu grupo e traz ao Contemporartes o que se esconde atrás da linguagem afetiva e carinhosa (o tal dengo) que trata da mulher negra brasileira em canções populares.


O Dengo Que A Nega Tem


Compositor: Dorival Caymmi
É dengo, é dengo, é dengo, meu bem
É dengo que nega tem
Tem dengo no remelexo, meu bem
Tem dengo no falar também


Quando se diz que no falar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no andar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no sorrir tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no sambar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem

É dengo, é dengo, é dengo, meu bem
É dengo que nega tem
Tem dengo no remelexo, meu bem
Tem dengo no falar também

Quando se diz que no bulir tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no cantar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem
Quando se diz que no olhar tem dengo
Tem dengo, tem dengo, tem dengo tem

É no mexido, é no descanso, é no balanço
É no jeitinho requebrado que essa nega tem
Que todo mundo fica enfeitiçado
E atrás do dengo dessa nega todo mundo vem
E atrás do dengo dessa nega todo mundo vem




Nega, remelexo e preconceito
por Vanessa Deguti
      A mulher carrega valores na sua imagem definida pelo sexo. Tais valores são atribuídos pela sociedade desde épocas remotas. Podemos citar como exemplo, a bíblia que logo na introdução denota a surgimento da humanidade na terra como consequência do ato de uma mulher sobre o homem causando a expulsão do Paraíso.
         Nas épocas coloniais do Brasil, a negra, de teve que suportar duplamente a sua carga de sobrevivência:  por ser escrava e por ser mulher. Ou seja, além dos maus tratos em consequência da sua cor, sofria também o estigma sexual feminino que carregava.
         Retomando esses valores atribuídos às mulheres, a música “O dengo que a nega tem” denota em seus versos não a mulher intangível e virtuosa, mas ‘aquela’ cheia de dengo “no remelexo”, “no mexido”, “no balanço”, sobretudo a mulher negra, a “nega” como já se mostra desde o título. Observando também que “dengo” é uma palavra vinda do africano, especificamente do quimbundo.
         A música se inicia com o verso “É dengo, é dengo, é dengo, meu bem”, após a repetição da música do “é dengo”, que é uma afirmação ressaltada pela repetição, a frase termina com a expressão “meu bem” que pode ser interpretada de forma coloquial. Porém é interessante observar que “meu” é pronome possessivo e “bem” tem carga ambígua. A expressão pode ser tratar do advérbio de modo “bem” que denota algo de modo bom, virtude ou como o substantivo de ‘benefício’.
          Estando ligado diretamente ao pronome de posse e à ideia de que se trata de uma mulher negra,  pode também ser interpretado como ideia de “bem material” o subordinado da posse, ideia que não se distancia do contexto histórico explorado a partir da letra da música.
          A descrição da ‘nega’ expõe não sua interioridade ou intelectualidade, mas seu “remelexo” “mexido” “balanço” “jeitinho requebrado que essa nega tem”. Tal denotação traz a imagem lasciva da mulher negra, justificando o a sedução que ela causa.
          Característica atribuída ao ‘feitiço’ próprio da mulher, da ‘bruxa’, conceito dado pela sociedade à mulher por séculos que é reforçado no verso “Que todo mundo fica enfeitiçado”. Fato que historicamente foi usado como pretexto para abuso de muitas e muitas mulheres.
          Dado esse exemplo, vemos então que além da influência africana na construção sonora e rítmica, a Música Popular Brasileira carrega também essa história nas composições de suas letras.

Vanessa Deguti é estudante de Letras da Fundação Santo André prestes a se formar, ministra voluntariamente oficina sobre concepção musical através da sensibilidade por meio de contextos históricos e culturais na ELD, participou da ELL, e às vezes aparece em alguns fanzines e workshops referentes à expressão corporal.








Veja as próximas palestras do Módulo Reinventando Afroidentidades do Seminário Vozes da Globalização.

Realização: Prefeitura Municipal de Santo André.
Apoio  - ASSOCIAÇÃO CULTURAL MORRO DO QUEROSENE
Aos sábados - das 10h30 às 12h30
Casa da Palavra - 4992-7218
Praça do Carmo, 171, Santo André

Uma série de oito palestras que propõe a discussão da afroidentidade na contemporaneidade e sua interface na Literatura, na História nas Artes Plásticas e na Música. Especialistas - professores universitários e literatos - farão incursões sobre grandes problemáticas atuais, propondo uma reavaliação das representações do negro. A participação é aberta a todos. As palestras são independentes, apesar de versarem sobre temáticas semelhantes. A entrada é franca, e cada palestra dá direito a um certificado de horas culturais.

Palestra - Narrativas infantis africanas na literatura
Dia 06/11 - (sábado) das 10h30 às 12h30
Palestrante: Kiusam Oliveira


Palestra - Alternativas do escritor colonizado:
A escrita à serviço das identidades nas literaturas angolana e moçambicana
Dia 27/11 - (sábado) das 10h30 às 12h30
Palestrante: Cristiane Santana


Palestra – Solistas dissonantes: história de cantoras negras
Dia 04/12 - (sábado) das 10h30 às 12h30
Palestrante: Ricardo Santhiago


Palestra – A representação do negro no modernismo brasileiro
Dia 11/12 - (sábado) das 10h30 às 12h30
Palestrante: Renato Gilioli


*         *             *
Outros assuntos:

Já estão abertas as inscrições
O evento ocorrerá entre os dias 24 e 26 de novembro de 2010, com organização do Centro Acadêmico de História.
Nota enviada pelo editor-assistente da Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades Antonio Gasparetto - que participa da  Comissão de Comunicação do Centro Acadêmico de História

*   *   *
Ampliadas até 8 de novembro as inscrições para o simpósio acima, organizado pelo Programa de Mestrado em História da Universidade Severino Sombra (Vassouras, RJ) que se realizará nos dias 1, 2 e 3 de dezembro de 2010 na USS – Vassouras – RJ.

Mais informações pelo site: http://www.uss.br/web/page/simposiopol.asp

Junto a Rosângela Dias e Katia Peixoto (colunista da Contemporartes) estarei coordenando um Simpósio Temático sobre Cinema.


1. Cinema e História: discussões de linguagens historiográficas
Coordenação:
Katia Peixoto dos Santos (PUC-SP)
Rosangela de Oliveira Dias (USS)
Ana Maria Dietrich (UFABC/USS)
Inaugurada por Marc Ferro na década de 60, a intersecção entre as duas áreas de conhecimento Cinema e História será objeto de reflexão desse seminário temático. Pretendemos agregar pesquisas que explorem os questionamentos teóricos e metodológicos que demandam dessa discussão interdisciplinar, assim como conhecer os atuais estudos que privilegiam a análise de imagens audio-visuais e/ou a linguagem cinematográfica. O cinema enquanto narrativa específica elaborada como resultado da composição de diversos elementos fílmicos e polissêmica ao utilizar o som e a imagem também serão foco de análise.

*   *   ¨*


Encontram-se abertas as inscrições de comunicações de pesquisa. O seminário  se realizar entre os dias 30/11 e 02/12/2010 nas dependências do Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Serão aceitas inscrições referentes a resultados de pesquisas de pós-graduação concluídas ou em andamento, bem como resultados de projetos de iniciação científica.
PERÍODO DE INSCRIÇÕES PARA PARTICIPANTES COM APRESENTAÇÃO DE TRABALHO: 10/10 a 30/10/2010
TAXA DE INSCRIÇÃO PARA PARTICIPANTES COM APRESENTAÇÃO DE TRABALHO: R$25,00
OBSERVAÇÕES:
O pagamento poderá ser feito através de depósito bancário ou pessoalmente na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História (ICH – Campus da UFJF).
Caso a comunicação proposta não seja aprovada, o valor da taxa de inscrição pago não será devolvido.
O resultado dos trabalhos aceitos será divulgado no dia 20/11/2010.
MAIORES INFORMAÇÕES:
            Secretaria do Programa de Pós-Graduação em História da UFJF
            Telefone: (32) 2102-3129
Nota enviada pelo editor-assistente da Contemporâneos - Revista de Artes e Humanidades Antonio Gasparetto - que participa da  Comissão de Comunicação do Centro Acadêmico de História.



Ana Maria Dietrich é coordenadora junto a Vinicius Rennó, da Contemporartes-Revista de Difusão Cultural.
contemporartes@gmail.com
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O ladrão do tempo




Por todos os cantos escuto pessoas reclamando sobre o quanto o ano passou rapidamente. Eu, entre elas, não entendo como estamos já encontrando novembro na virada da esquina.Alguns esotéricos dizem que o universo está em uma rotação diferente e que deveria haver um novo relógio. Não sei dessas coisas, só sei da minha luta diária para dar conta de tudo o que tenho por fazer. Procuro o tempo perdido e percebo que muitas vezes sou eu quem o oferece ao ladrão, que não entra pela janela usando máscaras e luvas. Ele vive na minha casa. Eu o convidei quando me apresentaram à modernidade. São tantas tentações tecnológicas e informativas hoje em dia, que se Eva vivesse agora, teria surtado e jogado a maçã na cara da serpente, dizendo que a maça que lhe dava prazer era um Apple iMac, iPhone ou  iPod Touch. Diria a Adão que estava apaixonada por Steve Jobs. Além do mais, ela nem confiaria na serpente, pois uma rápida pesquisa no Google lhe traria informações sobre o caráter da  reptilia. Sem confiar totalmente nas informações limitadas da internet, ela leria inúmeros livros:”As consequências de comer maçãs”, “Os tipos existentes de maçãs”, “Como superar a vontade de comer maçãs”, “Depressão em quem não come maçãs”, “Coma a maçã e seja feliz”, além de entrar em uma comunidade de relacionamento virtual intitulada “ EU ODEIO AMAR MAÇAS”. Depois de saciar a fome devorando informações, Eva faria uma videoconferência com as amigas para discutir o assunto. Seria convidada para dar entrevistas a jornais e revistas. Alguma jornalista feminista levantaria a questão da culpa do Adão pela obsessão de Eva por maçãs, evidentemente carência afetiva, algum advogado seria convidado para esclarecer a Eva as questões mais importantes em caso de separação do companheiro e divisão das árvores do Pomar do Éden, um psiquiatra ofereceria remédios para Eva não ter mais fome nem lembrar o que é uma maça, além de terapia para resolver o conflito com a serpente. Por fim, Eva chegaria a conclusão que a fome exagerada a tornara obesa quando substituiu a maça por hambúrguer com coca-cola e faria algumas plásticas redutoras, morrendo por infecção hospitalar causada por uma super bactéria que ataca quem não come maças. Como eu não sou Eva, tento apenas identificar onde se esconde o meu tempo. Percebo que a tecnologia é a maior culpada,consumir tanta modernidade custa tempo. É preciso estar antenado, mas é impossível assimilarmos o tsunami de informações que a internet nos oferece, os livros que são lançados, os periódicos que circulam, utilizar todos os aparelhos ofertados e seus inúmeros recursos e ainda dar conta da manutenção e consertos. Somos nós que temos o poder de escolher se aceitamos ou não a entrada do ladrão do tempo em nossas vidas. Uma vez, um amigo me disse uma frase que ficou gravada: “Uma hora na frente do computador passa voando mas uma hora em uma quadra jogando tênis demora muito para passar”. Será que mudou a rotação do universo ou nós mudamos nossas escolhas?




Simone Pedersen, formada em direito, escritora,  morou onze anos no exterior onde teve vivência multicultural e conheceu diferentes estilos linguísticos.Desde essa época já escrevia crônicas para os amigos sobre  a diversidade que vivenciava. Atualmente reside no interior de São Paulo  e, há dois anos,  participa ativamente de concursos literários,  tendo conquistado inúmeros prêmios  no Brasil e no exterior.Tem textos publicados em dezenas de antologias de contos, crônicas e poesias. É colunista do Folha de Vinhedo. Seus livros  Infantis “Vila Felina”, “Sara e os óculos mágicos”, “Conde Van Pirado” e “Vila Encantada”, "Coleção Pá-pum" e Coleção Fuá" foram lançados na Bienal de SP 2010, sendo os últimos dois livros que ensinam a desenhar, foram ilustrados pelo renomado artista plástico Paulo Branco. Além de  “Fragmentos e Estilhaços” com contos, crônicas e poemas selecionados em concursos. Todos disponíveis na Livraria Cultura. Blog:http://www.simonealvespedersen.blogspot.com


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A Poesia Premiável de Antônio Barreto


O Silêncio Poético de Antônio Barreto
por Altair de Oliveira


Alguns anos atrás fui apresentado em Belo Horizonte, pelo amigo e diretor teatral mineiro Belisário Barros, à poesia de Antônio Barreto, jovem talento da poesia dos anos 70 e 80, através do livro "O Sono Provisório". O livro havia sido publicado pela editora Francisco Alves em 1978 e, um ano antes, havia ganhado o concurso nacional "Prêmio Remington de Poesia", mas na época o poeta, que era engenheiro e já havia se aventurado como artista plástico, havia arrebatado também vários outros prêmios de poesia. Consta que neste período o poeta frequentava o meio universitário e boêmio da capital mineira e era amigo de intelectuais importantes da literatura brasileira, como por exemplo os escritores Roberto Drummond e Murilo Rubião.

Ao ler o Barreto de "O Sono Provisório", pude logo constatar que se tratava de um grande poeta. Seus versos livres e contundentes tratavam o lirismo de uma forma arguta, isenta aos apelos de engajamento político e das referências residuais da poesia concreta, que eram comuns na poesia dos anos 70, o que me fez lembrar de um outro grande bardo, que também despontava na época, o paranaense Paulo Leminski. Ambos eram então vistos como grandes esperanças à poesia brasileira do futuro.

Pesquisando depois um pouco mais sobre Antônio Barreto, vi que também ele havia vencido o "Prêmio Nestlé de Literatura" na edição de 1988 com o livro "Vastafala", que na época era um dos prêmios mais importantes da poesia nacional, e lembrei-me que na ocasião eu quis adquirir o livro, que havia sido saudado com entusiasmo por poetas como Carlos Drummond, Afonso Romano de Santanna e Ledo Ivo, e que infelizmente nunca encontrei nas livrarias onde busquei. Só recentemente, vasculhando pelos sebos de Belo Horizonte, finalmente encontrei um exemplar deste livro, que na verdade parece a junção de 2 livros, "Revelações do Abismo - Livro Primeiro" e "Espantário", que fora publicado em 1988 pela editora Scipione. Enfim, outra bela obra de poesia brasileira, que já nasceu sob o signo de raridade.

A partir dos anos 90, o poeta Antônio Barreto, que havia frequentado vários suplementos literários através de seus poemas e vencido diversos prêmios importantes de literatura, ao que parece-nos abandonou de vez a poesia para se dedicar à prosa, especialmente aos trabalhos de literatura infanto-juvenil. Coincidentemente ele se afastou também dos círculos boêmios e literários, sem contudo deixar de produzir belos textos e de estar presente nas finalizações dos concursos literários em que participa. Em 2009, o seu livro de crônicas "Papagaio de Van Gogh" recebeu "mensão honrosa" no concurso Literatura para Todos, do MEC. Este título, obtido neste concurso governamental para formação de neoleitores, permitirá que seu livro seja editado e, numa tiragem de 300 mil exemplares, seja distribuído para as bibliotecas de escolas de todo o Brasil. Consta-nos que o poeta tem hoje quase 30 títulos publicados, sem contudo ter retonado à publicação de seus poemas.




Um pouco sobre o poeta Antônio Barreto


Antonio Barreto (Antonio de Pádua Barreto Carvalho) nasceu em Passos - MG, em 13 de junho de 1954, com 18 anos mudou-se para Belo Horizonte para estudar, onde cursou História (Fafi-BH), Letras (UFMG-Uemg), Desenho de Projetos (INAP/Utramig) e Engenharia Civil (UFMG-Fumec) e onde reside até os dias de hoje. Morou também em algumas cidades do Oriente Médio, onde trabalhou como projetista de Engenharia Civil, na construção de estradas, pontes e ferrovias. O poeta ganhou vários prêmios nacionais e internacionais de literatura, para obras inéditas e publicadas: poesia, conto, romance e literatura infanto-juvenil. Entre estes: Prêmio Jabuti (Câmara Brasileira do Livro - venceu três vezes e foi oito vezes indicado), Bolsa Vitae de Literatura, Prêmio Remington, Bienal Nestlé de Literatura, Prêmio Minas de Cultura, Prêmio Nacional de Contos do Paraná, Prêmio “Guimarães Rosa” de romance, Prêmio “Emílio Moura” de poesia, Prêmio “Cidade de Belo Horizonte” - poesia e contos, Prêmio “João-de-Barro” de literatura infantil e juvenil , Prêmio “Carlos Drummond de Andrade” e “Manuel Bandeira” de poesia, UBE (SP), UBE (PE), UBE(RJ); Prêmio “Henriqueta Lisboa”, Prêmio “Petrobrás” de Literatura, Prêmio Nacional de Literatura/UFMG, Prêmio Bienal do Livro de BH, Prêmio Bienal Internacional do Livro de SP, Prêmios de “Leitura Altamente Recomendável” para crianças e jovens/FNLIJ-RJ, Prêmio “Tereza Martin” de Literatura, Prêmio Internacional da Paz/Poesia (ONU), Prêmio “Ezra Jack Keats” da Unesco/Unicef (EUA), Prêmios/ Obras/Catálogo do IBBY (Unesco) e Prêmios/Obras/Catálogos Bienais Internacionais do Livro de Bratislava, Barcelona, Bolonha, Frankfurt e Cidade do México. Barreto partipou ainda de várias antologias nacionais e estrangeiras de poesia e contos. Como jornalista ele foi redator do Suplemento Literário do Minas Gerais, articulista e cronista do jornal Estado de Minas e da revista “Morada” (BH). Colaborou com textos críticos, poemas e artigos de opinião para “El Clarín” (Buenos Aires), “Ror” (Barcelona); “Zidcht” (Frankfurt), “Somam” (Bruxelas); ” : e outros periódicos. Atualmente coordena a Coleção “Para Ler o Mundo”, da Formato Editori.




Três Poemas :


PARÁVOLA

Em palavras vos digo
do pouso do pássaro
preso no muro

Em parábola vos digo
da seiva e do fruto
morto no ventre

E assim postos: apóstolos
pássaro e fruto
só me resta a semente
a ser lançada no escuro.


Poema de Antônio Barreto, in: "O Sono Provisório"

***

OS FRUTOS DA INSÔNIA

Paremos.
Não no meio do dia absoluto
quando a enorme solidão de Deus
com seus papéis
assina
com tinta azul
sobre as cabeças
petições urgentes
para a tarde começar.

Paremos.
Não no intervalo das bombas
dos motores
quando passará por entre as rodas
dentes engrenagens
a graxa vespertina das notícias
o cansaço pendular dos suicidas
e o timbre dos desastres.

Paremos, sim.
quando o poente for um fato consumado
e o preparo da noite estiver pronto
e findo
o dia do verme, o dia do gato
o animalesco
dia do Homem.

Paremos, sim,
quando a noite (flor futura)
estiver nascendo na pétala dos minutos
e o fruto da insônia for apenas um susto / ou posto
que sobre a mesa do porvir
a vertigem nos aguarda
e a todo custo nos retarda.

A todo custo paremos,
não dentro do escuro inviolável,
mas por fora do brilho das estrelas
ambulantes
na memória da pintura dependurada
num guindaste
do divã imóvel
para escutar o galo com seus traumas de infância
o galo psicanalítico
o galo neurastênico
o galo psicolinguístico
o galo em plenilúnio, não em dia claro.

Paremos.
Não na câmera escura do laboratório dos caminhos,
mas na química noturna dos jasmins
e nos sentemos sobre a noite
ao lado da maçã no escuro *
(com sua pele de fogo)
para tirar retratos da pedra.

Escutemos.
Há um verme se mexendo
dentro dela: um verme vermelho,
o verme-vida
e uma parte da maça
(a noite mordida)
guarda o sabor da boca que a beijou.

No centro do fruto
acorrentados
a fome e a sede
a água e o fogo
e um inseto que transita na fruteira
onde a imagem de um ovo o eterniza.

Paremos, portanto,
não na utopia deste instante inadiável
não na continência deste corpo fora da pele
não na estrutura deste espaço dentro de si mesmo
não na paz que é a fotossíntese da luz da fala
não no surrealismo da aranha sobre a Lua
não no naturalismo do relógio das abelhas
não na serenata inacabada desta insônia
não na paisagem da cidade estilhaçada
não no procurado pelas ruas da cidade
não na mesma estrada onde um anjo se imolou
não na solidão de quem amou e não morreu
não no manifesto do poeta transmutante
não na consciência bêbada dos amantes
não na turbulência da água em sua sede
não no vendaval das palavras mais profanas
não no gargarejo da garganta, o sal dos frutos
não na sombra da floresta, a alma errante
não no navio ancorado no poente
não no mês de Agosto, quando o morto é semiótico.

Paremos, o teorema da insônia

é um problema metafísico.
A solução está na faca dos discursos.

E a lâmina do silêncio,
parte o escuro em dois?
Uma parte * da noite está no dente,
outra parte * da treva está no osso?
E as duas metades no depois?

(Uma face de nós dentro do rosto,
outra parte no intestino grosso)

Mas se por trás da folha vem o fruto,
a morte, o dia vasto é o usufruto?

Paremos.
A digestão se fará no abismo
quando a manhã voltar com seus chocalhos
e o escuro for o claro em estado bruto.


Poema de Antônio Barreto, in: "Vastafala".
* referência ao livro de Clarice Lispector e ao poema "Traduzir-se", de Gullar.

***


POÊMIOS




Os poêmios bebem a noite inteira
e eruditos sobre a mesa
arrotam odes a Herodes
e nênias a Homero e Nero

Quando já cansados de lero-lero
e exaustos de tangar boleros
e sonâmbulos de sambar requebros
os poêmios se recolhem pelos
escuros becos alexandrinos

E assim se vão como bons meninos
a poemar
os prêmios
de seus destinos
até que a noite tire do bolso o dia

E a poemada toda em algaravia
pára no caminho pra comer bombom
onde justamente outro poêmio dorme
como a pedra enorme
de Drummond


Poema de Antônio Barreto.


***

Ilustrações: 1- foto do poeta mineiro Antônio Barreto; 2- capa do livro "O Sono Provisório"; 3- capa do livro "Vastafala"; 4- trabalho do suerrealista René Magritte.


Altair de Oliveira (poesia.comentada@gmail.com), poeta, escreve quinzenalmente às segundas-feiras no ContemporARTES a coluna "Poesia Comovida" e conta com participação eventual de colaboradores especiais.
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