o "Sentimento de Mundo" drummondiano



Devemos ter em mente, antes de iniciarmos uma análise e leitura de qualquer poema de Sentimento do Mundo que este livro desponta como um reflexo da pobre condição humana no mundo. Considerando o projeto ideológico surgido a partir de 1930, podemos entrever nos poemas que compõem este livro uma verdadeira reflexão da vida do homem, da realidade na qual se vive, além de crítica ao social e um engajamento político – principalmente se considerarmos que tal obra foi lançada em 1940 no período em que a Segunda Guerra Mundial acontecia – há também, para Abgar Renault (1978, p. 79), a representação de um profundo amargor, o que proporciona que “a ‘humanidade’ do poeta debruça-se, comovida, sobre a ‘humanidade’ alheia e com ela sofre”. O resultado desse novo momento vivente por Carlos Drummond de Andrade é a criação de “uma poesia que anda, viva, no ar, na terra, nas águas, nos corpos e nas almas: poesia que acontece...” (RENAULT, 1978, p. 80).

Drummond em variados momentos criticou a literatura inútil, vazia de vida e de utilidade. Talvez, porque para ele a literatura necessita de um estudo, de um engajamento, uma vez que ela, bem como o poeta, têm deveres a serem cumpridos. Muitas vezes a palavra nos poemas drummondianos é um instrumento de luta, reivindicação. A universalidade da poesia teorizada por Theodor Adorno encontra campo fértil em Sentimento do Mundo, uma vez que neste livro há a transposição do minimamente pessoal, para um campo mais coletivo para problemas que transcendem o Eu e remetem ao Nós. Dois exemplos que refletem a condição humana, o amargor e a impotência humana diante do mundo são os poemas “Sentimento do mundo” e “Confidência do Itabirano”. Vejamos cada um desses poemas na íntegra.
O primeiro deles:
Tenho apenas duas mãos 
e o sentimento do mundo, 
mas estou cheio escravos, 
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige 
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu 
estará morto e saqueado, 
eu mesmo estarei morto, 
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram 
que havia uma guerra 
e era necessário
 trazer fogo e alimento. 
Sinto-me disperso, 
anterior a fronteiras, 
humildemente vos peço 
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem, 
eu ficarei sozinho 
desfiando a recordação 
do sineiro, da viúva e do microcopista 
que habitavam a barraca 
e não foram encontrados 
ao amanhecer
esse amanhecer 
mais noite que a noite.




O segundo:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

 De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; 
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

 Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!

Em “Sentimento do mundo”, nos deparamos com um retrato e uma reflexão acera da Segunda Guerra Mundial (que pode, obviamente, remeter aos tantos conflitos do ser humano). Já na primeira estrofe nos é apontada a prostração do ser humano perante o mundo que o circunda em “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”. O eu lírico nos apresenta um quadro de vivência pessoal (obviamente se faz universal), no qual sente as aflições mundanas, os danos e as injustiças que se alastram pelo planeta, ao mesmo tempo nada pode ser feito por ele, que perante as angustias que lhe afiguram possui as mãos atadas. Em “Confidência do Itabirano” também a figuração do sofrimento e da angustia que perpassam ao homem “Alguns anos vivi em Itabira/ Principalmente nasci em Itabira/ Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.”. Itabira ensinou ao eu lírico a sofrer, o fez forte e mostrou principalmente que o mundo não é um local onde somente existem acontecimentos agradáveis e este aprendizado também faz com que o sujeito lírico (em extensão, a humanidade), muitas vezes, se subjugue diante de certos eventos destrutores e se veja impossibilitado de intervir.

Em meio à vil população mundial, há ainda elementos que de certa forma conseguem levar o eu lírico de ambos os poemas analisados para caminhos aparentemente melhores nos quais ele consegue tocar a vida, decifrá-la e, de certa maneira, aproveitá-la, como nas passagens a seguir: “mas estou cheio de escravos,/minhas lembranças escorrem/ e o corpo transige/na confluência do amor” ou ainda “A vontade de amar que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem/mulheres nem horizontes”. Os elementos encontrados nos caminhos percorridos acalmam, mas refletem a tristeza da condição humana, a escravidão e a falta de horizontes, por exemplo, conseguem minimante representar o “Sentimento de mundo” que grita no interior do poeta, que o impele em direção ao combate até mesmo de pulsões que carrega dentro de si.

Ambos os poemas encerram um enorme sentimento do social, ao se vislumbrar os acontecimentos que o rodeiam, o sujeito poético, como dissemos, aprende a sofrer, mas nem por isso aceita o sofrimento em silêncio, ao contrário, nos deparamos com uma constante aflição, com um desejo implícito de parar a guerra, de parar o mundo e cessar “esse amanhecer/ mais noite que a noite”, “este orgulho, esta cabeça baixa...”.A derrota do ser para o mundo o faz sentir-se “[...] disperso,/ anterior as fronteiras”, além de contribuir para que “E o hábito de sofrer, que tanto me diverte” seja apenas um divertimento irônico, uma vez que não só o poeta, a vida, as ruas são, em sua grande parte, constituídos de ferro, de impossibilidades, de atamentos e de reflexões que não resolvem os problemas do mundo.

Não somente Itabira como fotografia na parede dói, dói também o corpo, a alma, dói tudo que o rodeia, uma vez que por mais que possa entender e lutar por algo, o eu líriconão o alcançará na sua individualidade e principalmente na sua impotência diante do mundo frio e mecânico que reduz as pessoas a objetos de manipulação.

No que diz respeito à estética dos poemas analisados, arriscamo-nos a afirmar que muitas conquistas da geração de 22 são utilizadas magistralmente pelo poeta, como o verso livre, que muitas vezes se aproxima de uma narração, ao mesmo tempo o poeta não se deixa guiar pelo espírito de destruição que caracteriza a “primeira” geração modernista. Vislumbramos o verso livre de Drummond próximo à narrativa nas seguintes estrofes:
Os camaradas não disseram
Que havia uma guerra
E era necessário
Trazer fogo e alimento.
Ou ainda:
“Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou um funcionário público.”

Carlos Drummond de Andrade proferiu algumas vezes que sua preferência pela corrente Modernista se deu, principalmente, pela sua “falta de jeito para ‘versejar conservadoramente” e da incapacidade de estudar, [...], os compêndios da metrificação” (MORAES, 1978, p. 98).  Ele, muitas vezes, deixou clara também a sua insubordinação mental a qualquer corrente, o que propiciou o fato de, em sua lírica, haver rumos próprios traçados, ou melhor, maneiras particulares de se jogar com as palavras, dentre as quais se destacam uma “técnica de composição consistente na perturbação das formas líricas tradicionais” relacionado à quebra do ritmo interno das palavras relacionadas. Isso não significa que os poemas drummondianos não possuem ritmo, este elemento é muito empregado pelo poeta e de maneira original, como no emprego de repetições, como na repetição da palavra morto no poema “Sentimento do mundo”, “Quando me levantar, o céu/ estará morto e saqueado,/ eu mesmo estarei morto,/ morto meu desejo, morto/ o pântano sem acordes”, ou ainda na repetição do vocábulo Itabira no poema “Confidência do Itabirano”, “Alguns anos vivi em Itabira./ Principalmente nasci em Itabira”.  Através da repetição o poeta alcança o ritmo desejado, de maneira que a composição lírica não se torne monótona.

Emanuel de Moraes (1978) ainda aponta o uso de rejet nos poemas de Carlos Drummond e exemplifica com a passagem já citada do poema “Sentimento do Mundo”, “eu mesmo estarei morto,/ morto meu desejo, morto/ o pântano sem acordes”. Para o crítico em questão, o rejet é responsável pela pausa que acontece entre segundo e terceiro versos, o que é responsável pela beleza lírica desta estrofe.

A linguagem utilizada pelo poeta é extremamente enxuta, sem excessos, sem preocupação com a forma, também existe o emprego de elementos comuns de que se revestem os meios expressionais. Tal linguagem permitiu que os poemas drummondianos possuam “fragmentos em que a música, o poderio pictorial, a força de sugestão, o inédito das imagens, a criação rítmica, a encarnação poética em quantidade reduzidíssima de verbos não podem deixar de ser notadas” (RENAULT, 1978, p. 76).

Referências bibliográficas:
ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: Notas de Literatura I. 34ª ed.  São Paulo: Duas Cidades, 2003, p. 65 - 90.
DRUMMOND, Carlos.Sentimento de Mundo. Rio de Janeiro: Record, 1995.
MORAES, Emanuel de. As várias faces de uma poesia. In: BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p. 98 - 122.
RENAULT, Abgar. Notas sobre um dos aspectos da Evolução da Poesia de Carlos Drummond de Andrade. In: BRAYNER, Sônia. Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1978, p. 73 - 82.


Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.
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O Juízo Final de Lars Von Trier: “Melancolia” resolve os conflitos exterminando a humanidade


O planeta Melancolia.

No lugar de alienígenas que explodem a Terra ou de sobreviventes que andam se arrastando sujos e maltrapilhos em cenários insípidos, Lars Von Trier nos presenteia com duas belas mulheres (Kirsten Dunst e Charlotte Gainsbourg) as irmãs Justine e Claire, para levar-nos de forma incisiva ao “fim os tempos”. Lars explorou a sensualidade, o corpo nu e o olhar de Kirsten Dunst para construir Justine; linda, talentosa, bem empregada e prestes a se casar com um homem que a ama. De Charlotte Gainsbourg, o diretor explorou a delicadeza, a fragilidade e a meiguice, características estampadas nas feições de Claire. As duas personagens protagonizam a história trazendo uma oposição interessante à trama. Claire, por ser mais velha e casada com um homem muito rico, tenta cuidar de Justine, que parece frágil e inconseqüente. Nada mal para nós, espectadores, irmos ao encontro do fim do mundo acompanhados destas duas estrelas e ainda ter a oportunidade de vivenciá-lo num cenário amplo, com belas paisagens que circundam a mansão de Claire, lugar onde ocorre a maior parte das cenas. Tudo parece muito perfeito para Von Trier que, como sempre, zomba da burguesia e expõe as relações familiares com ironia e vigor. Aqui não é diferente, a beleza resvala na hipocrisia, na dor e na melancolia do ser. 

A bela Kirsten Dunst como Justine
Charlotte Gainsbourg como Claire

Protegidos pela fantasia 
A escolha deste lugar afastado do povoado, das metrópoles e sem qualquer intromissão midiática (raramente INTERNET), contribui muito para dar a “Melancolia” uma atmosfera de sonho, isolamento e algo de atemporal. Como numa historia infantil de contos de fadas, “Melancolia” nos remete a um tempo qualquer, em um lugar qualquer no meio do nada, em que o tempo caminha devagar e onde a rotina é sempre acompanhada de momentos de contemplação. Alias contemplar é a palavra do filme. Olhar atento as coisas, as relações, o céu, as paisagens e para nós mesmos.
O filme é composto por um Prólogo e duas partes, sendo uma dedicada a  Justine e outra a Claire. Logo no Prólogo é possível perceber que as belas imagens em câmera lenta, que se assemelham as pinturas de Rossetti (pintor pré-rafaelista), possuem algo de dantesco ao se moverem com dificuldade na imensidão da linda paisagem, sentimos logo que o filme irá explorar a contemplação. Nestas imagens, Justine aparece linda, de noiva, tentando caminhar na paisagem imensa e insólita, vencendo lentamente as cordas escuras e emaranhadas que repuxam seus passos. Desperta-se uma sensação de morbidez, que se completa com a cena da noiva imergindo em águas. A sensação de beleza é mesclada ao sentimento de perda e finitude, sugerindo dor, tristeza e melancolia. 


Justine corre para se libertar das amarras 
“Melancolia” não é, em tese, um filme sobre o fim do mundo. Não é essencialmente fatalista, pois está recheado de questões que abrangem as relações humanas, como a família e o trabalho, tendo como foco o sofrimento humanitário de todos, sejam eles ricos, pobres, bonitos ou feios, todos são igualados por esta essência humanitária que parece maior, muito mais relevante que o próprio fim do mundo.
É evidente que Lars faz referência a “Festa em Família” (1995) de Thomas Vinterberg, seu companheiro no Dogma 95, para tocar e discutir  sentimentos como hipocrisia, covardia, ciúmes e mesquinhez, ilustrados como um rejunte às avessas das relações familiares. São pessoas ligadas por algum sentimento, nem que seja o mais execrável deles. De forma complementar, Von Trier trata da esfera do trabalho, ressaltando o domínio hierárquico e calculista que o mesmo impõe ao individuo.
Justine entregue ao planeta Melancolia
Justine, linda e deslumbrante em seu casamento é acometida por uma supra consciência que a faz pensar e rever seu posicionamento mediante o mundo, enquanto Claire admite que a família, seu marido rico e o seu lindo filho, poderão lhe orientar e lhe dar segurança para continuar sem pensar muito sobre si mesma e seus medos. Outros personagens colaboram com a trama, representando a covardia, a indiferença e o desencantamento. A hipocrisia é um traço forte de John (Kiefer Sutherland), a indiferença está em Dexter (John Hurt) e o desencantamento em Gabi (Charlotte Rampling). Como numa “Commedia dell’Arte”, Von Trier traça o perfil dos personagens sem receio de parecerem chapados ou superficiais pois seus sentimentos são extremamente autênticos. Lembrei-me de Fellini e de Almodóvar, ambos possuem esta mesma maneira, este mesmo movimento caricato em direção ao personagem. Execução de extrema maestria. 
No dia de seu casamento Justine encontra no céu,  Melancolia 
Imagens de sonho lembram as pinturas pré-rafaelistas. A imensidão do universo perante a fragilidade humana
Algumas cenas me emocionaram muito como a que Claire delicadamente tenta convencer Justine, em extrema depressão, a entrar na banheira para banhar-se.  Justine tenta mas, num momento de extrema fraqueza, se recusa e solta o corpo devagar e um grito débil de dor sai quase sem propósito de dentro do seu ser. Outra cena que me tocou foi a da limusine branca, enorme, perfeita entalada nas alamedas lindas e floridas do caminho por onde Justine e seu recém marido precisam passar.
As imagens de “Melancolia” são fortes, representativas e amarradas pela musicalidade de partes da ópera “Tristão e Isolda” de Wagner. A escolha desta Trilha Sonora fortaleceu a dramaticidade do filme. Confesso que o filme me emocionou pela grandiosidade das imagens, pela interpretação dos atores e pela sensibilidade de Von Trier em não condenar apenas um ou outro personagem, mas sim a todos.
O sofrimento extremo sofrido por Selma Jekzova (Björn), personagem de “Dançando no Escuro” (2000)  punida duramente por tentar salvar o filho da cegueira, é incomensurável. Para ela lhe sobrou apenas a sentença de morte. Grace (Nicole Kidman)  em “Dogville” (2003), sofre muito por se doar sem limites, ela é punida duramente pelos atos de extrema bondade. Em “Melancolia”, Lars é mais democrático com o sofrimento, pois condena a todos à pena de morte. O que fica do filme pra mim: O extermínio da humanidade, da forma como Lars pressupôs, seria um lindo presente do Universo - do Planeta Azul Melancolia.
O fim dos tempos



“Nove dias antes de sua morte, Emmanuel Kant recebeu a visita de seu médico. Velho, doente e quase cego, levantou-se da cadeira e ficou de pé, tremendo de fraqueza e murmurando palavras ininteligíveis. Finalmente, seu fiel acompanhante compreendeu que ele não se sentaria antes que sua visita o fizesse. Este assim fez e só então Kant deixou-se levar para sua cadeira e, depois de recobrar um pouco as forças disse: “Das Gefühl für Humanität , hat mich noch nicht verlassen” _ ‘O senso de humanidade ainda não me deixou’” (PANOSFSKY, 2001:20,21).
Leandro Daniel (Musseque)
Para Leandro Daniel , Melancolia está em forma de poesia.
Poesia realizada após assitir o filme

"Melancolia"

Melancolia

Em instantes repetitivos
selados por passos desconhecidos
uma gama de personagens posta-se
em volta
de volta
em círculos concêntricos

FúriaDecepçãoAutopuniçãoRancorDorFatalismoMelancolia


cada vez mais próximos de si
em laço de forca
vão de encontro ao pescoço macio
destruir a traquéia e cessar a fala
causando uma embolia externa
um cérebro desoxigenado
um coração petrificado pelo veneno
composto de enzimas

Sentimentos que combinam um encontro
no fundo do poço
que atravessa a superfície material
e aloja-se na caverna da alma

 quando comunarem-se
nesse infame local
gerarão certezas, teses, antíteses
e em uma síntese magnânima
deliberarão pela destruição
 que findará a idéia de tudo que existe
Protestos?
As vozes vão ficando cada vez mais longe
silenciando em pensamentos
inúteis

ver mais poesias de Leo Musseque:   http://musseque.blogspot.com/

 Bom Filme!!!!!! Vale muito, muito a pena conferir "Melancolia"



Kátia Peixoto é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Mestre em Cinema pela ECA - USP onde realizou pesquisas em cinema italiano principalmente em Federico Fellini nas manifestações teatrais, clowns e mambembe de alguns de seus filmes. Fotógrafa por 6 anos do Jornal Argumento. Formada em piano e dança pelo Conservatório musical Villa Lobos. Atualmente leciona no Curso Superior de de Música da FAC-FITO, na FPA no Curso de Artes Visuais e na UNIP nos Cursos de Comunicação. É integrante do grupo Adriana Rodrigues de Dança Flamenca sob a direção de Antônio Benega.


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A música popular brasileira saiu do ensino médio?





Basta uma rápida olhada nos meios de comunicação para notar que a onda do sertanejo universitário virou uma febre nacional. A cada dia pipocam novas duplas, em número tão expressivo, que parece que estamos vivendo novamente o início da década de 90. Nesse novo contexto da música popular do Brasil, pode-se entender que a terceira geração do sertanejo, após muita batalha, agora cursa faculdade e prega um estilo de vida cada vez mais distante do mundo rural.

Milionário e Zé Rico: um sertanejo distante de um produto midiático

Os sertanejos do passado, como Tonico e Tinoco, Milionário e Zé Rico, entre outros, cantavam as dificuldades do homem do campo, o caipira, o brasileiro de pouca instrução que levava uma vida de dificuldades e sofria com um Brasil que avançava (sem planejamento adequado) para um processo de urbanização que esmagava a sociedade.
Com a ascensão de Fernando Collor de Melo na presidência da República, em 1990, temos um novo sertanejo nas paradas de sucesso. São as duplas que ascendem ao poder. Ganham dinheiro; impõem modas e costumes e fazem a transição da figura do caipira para o homem de raízes do campo, mas que vive nas grandes cidades e consome diversos bens e utensílios. Alguns se destacam, outros aparecem e somem como cometas. É a lei do mercado e da indústria cultural.
A resposta para essa urgência em consumir novos ídolos está na pouca fidelização da massa. O público que consome músicas populares, vendidas vorazmente pela mídia, não é fiel. Assim como o sertanejo, repleto de histórias de traições, o público é fiel apenas às paradas de sucesso, construídas por mídias e gravadoras.
Isso fica evidente na primeira década de 2000. Após o sucesso do pagode, torna-se moda associar um ritmo musical à palavra universitária. Com o poder de acesso das camadas mais pobres à universidade, o símbolo de ingressar e cursar uma faculdade é traduzido, inicialmente, no forró universitário. Trata-se de música feita para jovens de faculdade que não querem pensar em problemas como violência, política, crises econômicas e, talvez nem no estudo, mas, sim, apenas em curtir o ritmo em bares voltados a músicas populares. Nada mais dionisíaco para esses tempos pós-modernos.
Agora, um outro ritmo chega ao tão sonhado mundo das universidades. Porém, livre de rótulos, a dúvida é em termos de qualidade. Até que ponto se manterá a tal música deste universo universitário?
A resposta parece ser simples: até outro ritmo ingressar na "universidade da mídia".
Victor e Léo: um modelo rentável para a mídia

Nessa terceira onda sertaneja, mesmo com título de graduação, vimos que o gênero peca pelo mesmo fator que “matou” os outros ritmos popularescos: não há uma evolução temática. Os temas continuam sendo poligamia, traição e amores mal resolvidos.
Com tudo isso, talvez seja hora de termos duas reformas: uma na educação e outra na tal música popular brasileira.

Marcelo Pimenta e Silva é graduado em jornalismo pela Universidade da Região da Campanha, Bagé/RS. Como pesquisador atuou por três anos no Núcleo de Pesquisa da História da Educação, pela Urcamp, tendo produzido diversos trabalhos multidisciplinares. Tem como temas de pesquisa a imprensa alternativa brasileira; a contracultura e suas implicações na sociedade brasileira, além de temas como o ativismo na cibercultura. Conta com experiência em colunas sobre cultura, em jornais, em sites e em revistas. Atualmente, trabalha com jornalismo, assessoria de imprensa e pesquisa free-lance, além de cursar pós-graduação em comunicação mercadológica na Fatec Senac de Pelotas/RS. 




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Pequena análise de "Chuva Oblíqua" - Fernando Pessoa



Em “Chuva Oblíqua”, observaremos um Fernando Pessoa que traz um exarcebado culto ao vago, ao sutil e ao complexo, principalmente em relação à influência que sofrera do futurismo e do cubismo, em especial do segundo, pois “O cubismo, preconizando a geometrização da arte pictória” oferece uma nova ótica, “nova ótica real, caracterizada pela fragmentação do espaço” (MOISÉS, Massaud, 1998, p. 95).

Há no poema um ser fragmentado, que não sabe quem é realmente. Pode-se explicar tal fato, porque “foi porque sentia com extrema intensidade que pôde aperfeiçoar, a um grau da loucura, sua faculdade de pensar” (MOISÉS, Massaud, 1998, p. 26).



Iniciemos pelo nome da poesia: Uma chuva que é oblíqua, é uma chuva inclinada e que incomoda por não ter como fugir dela; ela atinge as pessoas por mais que tentem se esquivar. Nesta chuva há uma intersecção, um cruzamento de elementos bons e ruins, desejáveis e indesejáveis, do real com o imaginário; elementos estes, que aos poços vão transpassando pela cabeça e pelo imaginário daqueles que são atingidos por tal chuva.

“ATRAVESSA esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...

O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...

Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...

Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
e vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...”

Parece-nos que Pessoa, nesta parte, está a relatar as desgraças pelas quais a alma passa: a ideia de da limitação, da escuridão, palidez, o desejo de se ultrapassar, a insatisfação, desgraças essas que fazem com que o eu- lírico compare o que ele quer, com as reais possibilidades de consegui-las, mas vê que não há como, deixa de relutar e aceita a vida que lhe foi dada.

Através do sonho ele tenta se evadir dos males em que vive. O sonho é mais uma busca de superar tantas coisas ruins que lhe acontece, mas todas as suas tentativas não surtem efeito, porque a existência do homem já é uma obrigação fatal.

Neste poema temos a intersecção do real (o porto) com o irreal (uma paisagem vivenciada, cheia de árvores). E a nau que entra pela alma do poeta nada mais representa do que o duplo pelo qual o eu - lírico está passando, pela intersecção do real com o irreal. Por fim o próprio eu- lírico não sabe o que se passa realmente ao seu redor, toda essa intersecção de idéias parece enlouquecê-lo de tal forma que seu pensamento se mostra repleto de contradições a todo o momento.

Neste poema de Fernando Pessoa, observa-se um processo de sobreposição de imagens com o cruzamento da paisagem presente com a do passado, o real com o irreal. Nele percebemos o intenso relacionamento entre as ideias, uma cruzando a outra, sobrepondo-se à outra, “O Interseccionismo seria o Sensacionismo em duas dimensões, um Sensacionismo visual, por assim dizer, que procuraria filosofar através de imagens ambíguas e paradoxos visuais transpostos para a poesia” (FERREIRA, Ermelinda, 1998). O eu –lírico confunde fragmentos de si com a realidade, real com o irreal. Ele tenta fazer um re-unificação dos elementos e de si próprio através deles.

No poema a intersecção parece ser uma tentativa  de unificação de partes que formam um todo, mas estão separadas, essa tentativa de unificação podemos perceber no cruzamento dos elementos do texto e até , em algumas partes, na união desses elementos. Observamos a existência de uma reflexão da própria alma fragmentada de Pessoa, reflexão essa que se dá a partir dessa do relato das paisagens contrárias, por um lado a marinha de outro a terrestre.

Segundo FERREIRA (1998):
Pessoa descreve o Sensacionismo como a realização, em arte, de uma "decomposição da realidade em seus elementos geométricos psíquicos, com a finalidade de aumentar a autoconsciência humana", e compara a sensação a uma figura geométrica, o cubo, declarando que, apesar de reconhecer a influência das telas cubistas na criação do movimento, não pretende, porém, realizar a decomposição das coisas, mas da sensação das coisas, ressaltando o componente psicológico de sua criação, na qual o paradoxo sempre exerceu um papel fundamental.

“Ilumina-se a igreja por dentro da chuva deste dia,
E cada vela que se acende é mais chuva a bater na vidraça...
Alegra-me ouvir a chuva porque ela é o templo estar aceso,
E as vidraças da igreja vistas de fora são o som da chuva ouvido por dentro...

O esplendor do altar-mor é o eu não poder quase ver os montes
Através da chuva que é ouro tão solene na toalha do altar...
Soa o canto do coro, latino e vento a sacudir-me a vidraça
E sente-se chiar a água no fato de haver coro...

A missa é um automóvel que passa
Através dos fiéis que se ajoelham em hoje ser um dia triste...
Súbito vento sacode em esplendor maior
A festa da catedral e o ruído da chuva absorve tudo
Até só se ouvir a voz do padre água perder-se ao longe
Com o som de rodas de automóvel...

E apagam-se as luzes da igreja
Na chuva que cessa...”

Percebemos também nesta passagem o intenso relacionamento de pensamentos em que os planos se cruzam, criando novas combinações de realidade. Esses pensamentos podem ser enumerados:

Chuva / Igreja iluminada
vento,água / Canto do coro
automóvel / Missa
 Festa da catedral / vento
O plano marinho/ terrestre

A partir dessa intersecção de planos, somos levados pelo próprio autor a penetrar no interior da sua alma- alma essa que nos parece tão confusa e conflitante como as imagens do poema, isso porque ela se mostra fragmentada. Tal alma se mostra dupla, na busca de sensações e imagens que lhes são impossíveis.

Segunda Saraiva (1996) Chuva Oblíqua é um poema de modelo interseccionista, em que as imagens “estão dispostas no sentido de desarticular a própria evidência da percepção” (SARAIVA,A. J e LOPES, O. 1996, p.1048).

É um poema totalmente imerso em contraposição de imagens, de idéias, que são sensoriais. Não é um poema feito para encontrarmos a “evidência da percepção”, talvez o que Pessoa quis, ao escrever este poema, é que as pessoas não busquem entendê-lo, pois seu objetivo era fazer um poema para que ele expressasse, através do pensamento, as sensações que ele vivia em determinado instante.
Para conferir o poema na íntegra, acesse aqui.





Rodrigo C. M. Machado é Mestrando em Letras, com ênfase em Estudos Literários, pela Universidade Federal de Viçosa.
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