Raid das Moças e a Cultura
da depressão:
performance e humor subversivo ou quando Foucault visita as chanchadas da Atlântida
Durante
a ditadura militar no Brasil, a resistência artística não se deu
exclusivamente através do engajamento de esquerda. Houve uma
tendência cultural, detectada por Renato Ortiz (Ortiz, 1988) no
ensaio “O popular e o nacional / Do popular nacional ao
internacional popular”, que o autor nomeia de “Cultura de
Depressão”. Diz o autor que:
Cultura
de Depressão com variações no irracionalismo, no misticismo, no
escapismo, e sob o signo da ameaça, eis os traços essenciais que
acompanham alguns setores da produção cultural brasileira a partir
de 1969. (...) Declara-se espúria ou careta a esfera do político e,
através de um argumento equivocado do perigo da recuperação via
indústria cultural ou pelo establishment, faz-se a profissão de fé
do silêncio teórico, isto é, a recusa apologética do discurso
conceptualizado sobre a produção artística, sobretudo a musical.
Isto tudo mesclado a um culto modernoso do nonsense, a um repúdio à
pontilhação racional do discurso. Portanto, ênfase no sujeito
“alienado”, que busca na droga, no misticismo ou na psicanálise,
a forma de expressar sua individualidade; desarticulação do
discurso, reificação da linguagem, o que equivaleria a uma
desvalorização do conhecimento racional; recusa em se encarar o
elemento político (Ortiz,1988:158).
O
presente trabalho apresentará um fenômeno cênico que, advindo da
contracultura dos anos setenta viria a ser, na década de noventa e
depois, alvo de fervorosas discussões e responsável por uma
renovação da platéia brasileira. Híbrido por natureza e essência,
o Raid das Moças em sua proposta estética apresenta em cena o
pastiche, o nonsense costurado por canções consideradas brega e/ou
cafona da música popular brasileira destinada às consideradas
camadas populares. Com uma sonoridade que apresenta síntese da
música eletrônica com baladas de cunho romântico cujos conteúdos
refletem desilusões amorosas e a chamada “dor de cotovelo”
alicerçada por interpretações exageradas e melodramáticas,
coreografias retiradas de filmes das sessões da tarde e de
dançarinas de programas de auditório, respaldada por um figurino
que passeia pelo kitsch, pelos cabarés e boites gays; o grupo se
debruça neste espetáculo a mapear a partir de uma linha de tempo
histórico com inicio na década de sessenta até a atualidade a
re/apresentar cada bloco como pequenos esquetes que não privilegia
apenas o lado musical, mas traz ainda um forte apelo de teatralidade
e humor que resulta num espetáculo cênico lúdico e interativo.
Teatro
Besteirol designa montagens de humor não muito exigentes que buscam
antes de tudo cumplicidade com a platéia por debochar de temas
cotidianos, contando com atores que não hesitam em assumir a paródia
até o mais infame cabotinismo. Se a isso se incorporar temas
escatológicos e uma estética voluntariamente de mal gosto e
mal-acabada, estamos no caminho certo para esse começo de conversa.
Linda
Hutcheon, em Uma teoria da paródia (Hutcheon, 1986)assim define a
paródia: ‘A paródia é pois, repetição, mas repetição que
inclui diferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia
pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo’ (Hutcheon, 1986:54).
Versões irônicas de transcontextualização e inversão são os
seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático
vai do ridículo desdenhoso a homenagem reverencial.
Flávio
Marinho comenta que o espectador para usufruir do humor do espetáculo
necessita de uma certa formação cultural:
O
humor do espetáculo, no entanto requer uma certa informação
cultural do espectador e, especialmente, algum conhecimento (ou
vivência) teatral para melhor curtí-lo. De outra forma, corre o
risco de perder grande parte dos achados cômicos. Seja como for,
trata-se de espetáculo altamente recomendável que, devido ao seu
caráter meio marginal, talvez estivesse melhor abrigado – e com
maiores chances de sucesso em sessões de meia-noite do Cândido
Mendes do que no horário vespertino do Teatro dos Quatro (Marinho,
1983: Jornal ‘O Globo’).
Essa
idéia esboçada por ele – a de que o espectador da peça precisa
de uma certa formação teatral para melhor usufruí-la – vem ao
encontro do que Affonso Romano de Sant’Anna diz a respeito da
assimilação da paródia, paráfrase e estilização:
Os
conceitos de paródia, paráfrase e estilização são relativos ao
leitor. Isto é: depende do receptor (...) Isto equivale a dizer, em
outros termos: estilização, paráfrase e paródia (e a apropriação,
que veremos proximamente) são recursos percebidos por um leitor mais
informado. É preciso um repertório ou memória cultural e literária
para decodificar os textos superpostos (Sant’Anna, 2006: 26).
Citamos,
à guisa de exemplo, o texto que a atriz Kátia Leal fala entre a
primeira parte do primeiro bloco e a segunda:
“Nesse
verão nós decidimos reviver e recontar uma história de sucesso,
decidimos ficar em Salvador, na Varanda do SESI tomando nossos bons
drink (sic) nesse verão maravilhoso da Bahia e dividindo com vocês
esses momentos nossos. E teve boatos que nós ainda estávamos na
pior, se isso é tá na pior, poonrra! O que é dizer estar bem, né?”
(THÜRLER, 2011: original em cópia).
Esse
texto, responsável em si, por boa parte do riso do espetáculo só
faz sentido para quem conhece o famoso vídeo da travesti brasileira
radicada na Itália, Luiza Marilac:
Outro momento importante é o que a atriz Kátia Leal assume o papel da
Psicopedagoga especialista em linguagem de libras e traduz a música Fico assim sem você, de Claudinho e
Buchecha. Guardando algumas mudanças, inserções e releituras, o que fazemos é
um processo intertextual e tropicalista coma versão que o ator Raul Franco fez
para a mesma música em seu espetáculo solo "Saída de emergência”, que
ficou em cartaz no teatro Vanucci, no Rio de Janeiro.
Ainda
mais radical é a cena da diversidade, em que a cantora e atriz
Marilda Santanna interpreta, invocando a musa Nara Leão, uma típica
Bossa Nova. Até aí, nada de muito especial se não fosse esse
número uma apropriação da versão escatológica de Mc
Grizante para o clássico pop "I Will Survive" de Gloria
Gaynor.
Foi
comum durante os dias de espetáculo e frente à divulgação maciça
na imprensa brasileira a dúvida sobre a identidade sexual das
performers Claudia Sisan, Kátia Leal e Marilda Santanna. A
provocação intencional teve origem através do conceito de camp,
que para nós, pode ser entendido a partir das palavras Halperin
(Halperin, 2007), como uma forma de resistência cultural que repousa
sobre a consciência compartilhada de estar situado dentro de um
poderoso sistema de significações sociais e sexuais. O camp,
segundo o autor, resiste ao poder desse sistema de dentro dele por
meio da paródia, do exagero, da amplificação, da teatralização e
da explicitação de códigos tácitos de conduta – códigos cuja
autoridade provém de seu privilégio de nunca ser enunciado
explicitamente e, por conseguinte, de sua imunidade à crítica.
Contrastando
com outras posturas, a estética camp equivale, de alguma forma, à
estética gay, o aspecto camp mais marcante no espetáculo Cultura da
Depressão, aliás, é importante lembrar que, muitas vezes, as
representações estereotipadas com personagens afeminados e com uma
estética camp, que, de acordo com Sontag (1987), pode ser
caracterizada pela “predileção pelo inatural, pelo artifício e
pelo exagero” (p.318) ou como “um certo tipo de esteticismo (...)
uma maneira de ver o mundo como fenômeno estético” (p.327).
O
camp é arte que se propõe a si mesmo como séria, mas que exige,
para sua recepção, uma atitude de valorização de seu artifício e
exagero, sua incorporação nostálgica e intelectual do mau gosto.
“Cultura da depressão” deve ser vista a partir das referências
culturais a gêneros considerados inferiores na Arte que nos permite
visualizar o tema da memória, a cultura de massa e uma postura
kitsch frente aos objetos sobrecarregados mediante um discurso
sentimental, só assim foi possível que o Raid das moças inserisse
uma marca pessoal na experimentação autoral com modelos populares.
Djalma Thürler é Cientista da Arte
(UFF-2000), Professor do Programa de Pós-Graduação Multidisciplinar em
Cultura e Sociedade e Professor Adjunto do Instituto de Humanidades,
Artes e Ciências da UFBA. Carioca, ator, Bacharel em Direção Teatral e
Pesquisador Pleno do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em
Cultura). Atualmente desenvolve estágio de Pós-Doutorado intitulado
“Cartografias do desejo e novas sexualidades: a dramaturgia brasileira
contemporânea dos anos 90 e depois”.