Alberto Giacometti



A Presença de Giacometti

Alberto Giacometti em seu ateliê à Rua Hippolyte-Maindron, em Paris, em 1957.
Foto de Robert Doisneau

Transeuntes de lugar algum. Estamos nós a transitar, muitas vezes sem saber nosso destino. Mas eles não. Aquelas figuras longilíneas marcham resolutas em busca de sua essência. Outras simplesmente descansam, imóveis, a fitar o horizonte. Nos corredores da Pinacoteca do Estado de São Paulo, estavam elas, as esculturas de grandes dimensões, como a Mulher de Veneza (1956), e no Octógono, espaço central do museu, a monumental e emblemática esculturaHomem caminhando, de Alberto Giacometti. A última obra integra o importante conjunto concebido para o projeto do Chase Manhattan Plaza, em Nova York, em 1960.


Esculturas: Mulher de Veneza, Homem que marcha e Cabeça, de Alberto Giacometti

Em 11 de junho de 2012 o público paulista se despediu das obras de Giacometti. A Pinacoteca do Estado de São Paulo trouxe a grande retrospectiva do artista ítalo-suíço Alberto Giacometti (1901-1966), exposição que contou com a curadoria de Véronique Wiesinger, diretora da Fondation Alberto et Annette Giacometti, Paris.

A primeira grande exibição da obra de Giacometti na América do Sul buscou traçar todas as linguagens desenvolvidas no percurso artístico ao longo de meio século de um dos maiores expoentes da arte do século XX, desde a formação na oficina do pai, o pintor impressionista Giovanni Giacometti, na Suíça, com destaque à influência da escultura africana e da Oceania, que marca o início da sua obra madura, até as últimas produções monumentais projetadas para as ruas de Nova York.

A mostra reuniu mais de 200 trabalhos – entre pinturas, esculturas, desenhos, gravuras e arte decorativa, cujo conjunto pertence essencialmente ao acervo da Fundação Alberto e Annette, legatário de Annette Giacometti, viúva do artista e sua principal modelo entre os anos de 1946 e 1966.


Alberto Giacometti, Autorretrato, óleo sobre tela, 1921, Kunsthaus Zürich


Alberto Giacometti nasceu em Borgonovo di Stampa, parte italiana da Suíça, em 10 de outubro de 1901 Faleceu em Coira, Suíça, em 11 de janeiro de 1966. Depois de estudar curtos períodos na Escola de Artes e Ofícios de Genebra e na Itália, Alberto mudou-se para a cosmopolita Paris, onde, de 1922 a 1925, trabalhou sob a orientação do escultor Émile-Antoine Bourdelle. Ainda e 1925, contudo, abandonou a escultura naturalista e entrou numa fase de intensa experimentação. Acabou por mergulhar no surrealismo em 1930 e, ao decorrer desta década, desenvolveu um estilo altamente individual, rompendo com os ditames de André Breton. Empenhou em um estilo de construções de estruturas abertas, bem exemplificadas na obra O Palácio às 4 da Manhã, de 1933.



Alberto Giacometti, Palácio às 4 da manhã, 1933,
Museum of Modern Art of New York (MOMA), Nova Iorque

Ao longo de toda sua carreira, Giacometti preocupou-se com a questão especialmente escultórica das relações espaciais, como notou Herbert Head, seus trabalhos dos anos de 1930 manifestam todo o propósito e o efeito da escultura surrealista - "a construção espacial de mecanismos preciosos que, sem se vincular a uma utilidade imediata, são todavia profundamente inquietantes". Em 1935, contudo, Giacometti rompeu com o surrealismo e voltou a esculpir a partir de modelos naturais.
Viveu em Genebra de 1941 1 1945, retornando então a Paris; seu estilo mais característico aflorou em 1947, constituindo-se de "construções transparentes" de seres humanos, às vezes dispostos em grupos, notáveis por seu caráter descarnado, alongado e inquieto, que estremece os nervos, como de O Homem apontando, de 1947.



Alberto Giacometti, Homem Apontando, bronze, 1977, Tate Modern, Londres


Suas figuras isoladas veiculam com frequencia um espírito de tragédia existencialista. Talvez esta sensibilidade seja em certa medida influenciada pelo contato com o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905-1980), que escreveu sobre sua obra em um belíssimo ensaio (traduzido para o português em uma edição da Martins Fontes). E sobre a originalidade de Giacometti Sartre se entusiasmou:

(...) É preciso admitir, no entanto, que os homens e mulheres de Giacometti estão mais próximos de nós em altura do que em largura, como se sua estatura estivesse à frente de si mesmos. Mas foi propositalmente que Giacometti os estirou. É preciso compreender, com efeito, que esses personagens que são completamente e de golpe o que são não se deixam nem conhecer, nem observar. Assim que os vejo, tomo consciência deles, eles irrompem em meu campo visual como uma ideia em minha mente, apenas a ideia é golpe tudo o que ela é. Assim, Giacometti resolveu a seu modo o problema da unidade do multiplo: simplesmente suprimiu a multiplicidade. O gesso ou o bronze é que são divisíveis: mas a mulher caminhando tem a indivisibilidade de uma ideia, de um sentimento,; ela não tem partes porque se entrega inteira de uma só vez. É para dar expressão sensível a essa presença pura, a esse dom de si, a esse surgimento instantâneo que Giacometti recorre à alongação. O movimento original da criação, movimento sem duração, sem partes, tão bem figurado por longas pernas gráceis, atravessa esses corpos à maneira de El Greco, e os erige em direção ao céu. Reconheço neles, mais do que num atleta de Praxíteles, o homem, princípio primeiro, fonte absoluta do gesto. Giacometti soube dar à sua matéria a única unidade verdadeiramente humana: a unidade do ato. Esse é, creio, a espécie de revolução coperniciana que Giacometti tentou introduzir na escultura. Antes dele, acreditava-se esculpir o 'ser', e esse absoluto desmantelava-se em uma infinidade de aparências. Ele resolveu esculpir a aparência 'situada' e revelou-se que por meio dela se atingia o absoluto. Oferece-nos homens e mulheres já vistos. Mas já vistos só por ele. Essas figuras são já vistas assim como a língua estrangeira que tentamos aprender é já falada. (...). (SARTRE, 2012, 31-34)

O estilo de Giacometti teve ampla repercurssão e influência. Como afirmou ceta vez, "antes da guerra, cheguei a fazer esculturas que representavam apenas a si mesmas e que, a meu ver, saiam do domínio da escultura. Tiveram um certo sucesso. Mas esse sucesso acabou por paralisar. Além disso, não me sentia a altura do papel que queriam que eu desempenhasse. Eu precisava de liberdade para trabalhar".

O artista suíço é geralmente considerado um dos escultores mais originais do século XX; a partir da década de 1950, sua reputação como pintor também se fez notar. A maior parte de suas pinturas e desenhos são retratos de família e de amigos. Alguns deles puderam ser vistos na retrospectiva em São Paulo, em que também puderam ser vistos desenhos de estudos fabulosos, os quais evidenciam o traçado escultórico do artista, sua linha que já buscava moldar a matéria. Seu irmão, Diego, hábil artesão e seu assistente, foi um de seus modelos favoritos, figurado em dezenas de esculturas, pinturas e desenhos.



Alberto Giacometti, Diego au manteau, 1954, bronze pintado, Raymond and Patsy Nasher Collection, Dallas, Texas, Fotógrafo: David Heald


Na exibição podiam ser apreciados os principais temas abordados pelo artista: a lição de Cézanne, a influência do cubismo, a descoberta da arte africana e da Oceania, a marca do pensamento surrealista, a invenção de uma nova concepção na representação do ser humano. A seleção de obras também ressalta os laços de Giacometti com escritores e intelectuais parisienses como André Breton e o surrealismo, ou Jean-Paul Sartre e o existencialismo.

Todos os módulos expositivos se articulavam em torno de obras emblemáticas. Entre os destaques Mulher-colher e Casal (ambas de 1927), que evidenciam o impacto da escultura “primitivista” na sua obra, mais à frente Bola suspensa (1930-31), considerada por André Breton, o mentor intelectual do surrealismo, como o exemplo, por excelência, do que deveria ser uma escultura surrealista. Em seguida, a mostra abordou o tema da cabeça humana, questão central na obra de Giacometti, que realizou centenas de estudos sobre a cabeça e sobre os olhos do ser humano.



Alberto Giacometti, Mulher Colher (versão 1953), gesso, da original de 1927.
Influência das Artes Africanas marca toda a produção de Giacometti



Colher Cerimonial, Civilização DAN, Libéria
The Art of Africa, the Pacific Islands, and the Americas /
The Metropolitan Museum of Art Bulletin



Alberto Giacometti, Couple, 1926, Bronze, Alberto

Giacometti Foundation, Zurich. ADAGP, Paris, 2000



Alberto Giacometti, Boule suspendue (Bola Suspensa), c. 1930-1931, gesso e ferro, Alberto
Giacometti Foundation, Zurich. ADAGP, Paris, 2000

Também mereceram destaque as esculturas A gaiola (1949-50) e A floresta (1950), além dos bustos, pintados ou esculpidos, que exemplificam a impossibilidade de retratar, na íntegra, as emoções e as expressões do modelo. Não menos importantes são os retratos da esposa de Alberto, Annette, e de Rita, a cozinheira de sua mãe.


Alberto Giacometti, La Cage, 1950, bronze, Fondation Beyeler cast, Susse Fondeur Paris,

foto: Robert Bayer, Basel




Alberto Giacometti, La forest, 1950, bronze pintado, Alberto
Giacometti Foundation, Zurich. ADAGP, Paris, 2000



Alberto Giacometti, Portrait of a Woman, c. 1947, Alberto
Giacometti Foundation, Zurich. ADAGP, Paris, 2000




Reprodução do livro Giacometti, monografia da curadora Véronique Wiesinger


Eis o verdadeiro trunfo de Giacometti: a figura solitária ao extremo do vórtice. Talvez o artista tenha se dado conta de quão sós está esta humanidade que marcha em busca de seus sentidos.Giacometti procurou em sua obra nos fazer partilhar suas descobertas: que o maravilhoso reside no ordinário e que é preciso manter o frescor do olhar fora das ideias preconcebidas; que qualquer coisa ou ser humano é fugaz e que sua representação não pode ser fixada de modo definitivo; que a aparência é feita de acúmulo daquilo que vemos e do que guardamos na memória; que qualquer coisa ou ser só existe em relação com o que o cerca.


In Ars Veritas



O filme exibido na mostra, "O que é uma cabeça? ou a passagem do tempo" (2001), narra a trajetória de Alberto Giacometti:
Parte 1
Parte 2
Parte 3
Parte 4
Parte 5


Para saber mais:

Fondation Beyeler
Foundation


Sobre a exposição "L’ATELIER D’ALBERTO GIACOMETTI" no Centre Pompidou, Paris
Vídeo mostra Alberto Giacometti executando uma pintura


Referências Bibliográficas:


CHILVERS, Ian (Org.). Dicionário Oxford de Arte. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

GENET, Jean. O Ateliê de Giacometti. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

READ, Herbert. Escultura Moderna: uma história concisa. Trad. Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

SARTRE, Jean-Paul. Alberto Giacometti. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo:Editora WMF Martins Fontes, 2012.

WIESINGER, Veronique (Org.). Giacometti. São Paulo: Cosac & Naify, 2012.






Mariana Zenaro é graduada e licenciada em História pelo Centro Universitário Fundação Santo André e bacharel em Comunicação Social, com ênfase em Jornalismo, pela Universidade Metodista de São Paulo. Tem Pós-Graduação, MBA em Bens Culturais: Cultura, Economia e Gestão, pela Fundação Getúlio Vargas. Frequentou os cursos livres de História da Arte na Escola do Museu de Arte de São Paulo (MASP) por dois anos e meio. Trabalhou em Museus, Arquivos e Instituições Culturais. Foi voluntária no Centro de Documentação e Biblioteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Dá cursos e palestras sobre história da arte em fundações, centros culturais e no Centro de Capacitação para professores da rede pública municipal de São Caetano do Sul (CECAPE- SCS). Atualmente trabalha na divisão de pesquisa e produção da Difusão Cultural da Fundação Pró-Memória de São Caetano do Sul.









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Castelo de Areia



Eram dois corpos tão próximos e em estados tão diferentes, numa troca de calor e frio que com o tempo levaria ao equilíbrio e a sintonia; já não seriam mais dois, apenas um. Peter Pan com seu sorriso mágico e sua voz brincalhona encantava a garota de olhos negros e franja caída. Por um momento estavam ali, sozinh@s, desconectad@s do mundo, numa fantástica experiência juvenil. Entre medos e esperanças, olhavam-se com profundidade e declamavam versos românticos, faziam promessas, juras de amor eterno, sobre um vento cortante e o sol que irradiava majestosamente naquela manhã inesperada. Compartilhavam, gostos, gestos, hábitos, sensibilidades, olhares ... A mão era beijada enquanto o abraço fraterno aproximava os corações frágeis. Dois mundos que se cruzavam naquele instante, num eclipse de possibilidades, num encontro incomum. Haviam sinais de que era muito (im)perfeit@ para ser verdadeir@, mas as mentes estavam distantes, só restavam ali, corpos sedentos, carentes, belos, que se entendiam diante do canto, dos versos, dos sorrisos; não eram necessárias mais palavras, apenas sinais suaves e indizíveis, apenas sentir, e só naquele momento. Era um belo castelo de areia. Que numa miragem distante parecia tão sólido e seguro. Mas que num mero toque se desmanchou. 


Um dia você entende, que as aparências, os fenômenos, por mais belos que sejam, muitas vezes escondem um universo sombrio e perigoso. Que se proteger e saber se retirar no momento exato é tão importante quanto se entregar plenamente. Que embora as coisas ou pessoas pareçam muito diferentes, estão tod@s atreladas às estruturas físicas, sociais e espirituais, sem as quais são incapazes de operar; com as quais passam a ter inteligibilidade e garantem a existência e preservação.


Não, não se pode negar um olhar, não se deve esconder um sorriso, não é preciso negar a aproximação. Porém, as sutilezas do envolvimento, são capazes de nos embaraçar a visão e de repente, nos fazer transcender rapidamente a um estado de ilusão e loucura, de paixão e utopia, de sonho e liberdade criativa. Liberdade que será castigada, por não poder se ancorar na realidade que a circunscreve, por estar obscurecida pelas pulsões e desejos secretos e incontroláveis. 


E a bela taça de cristal reluzente e brilhante se quebra, por um toque que vai além do que é permitido, do possível, da capacidade de suportar a força e a profundidade das emoções mais puras, doces, sinceras e selvagens que habitam os seres humanos. Emoções que como um vulcão, devem permanecer adormecidas, caso não se queira correr o risco de ser tomad@ pela tempestade de enxofre. Que queima, derrete, petrifica, mata e destrói o belo jardim com flores douradas que perfumam o amanhecer.

O que resta, é apenas um profundo deserto, no qual a aridez e o silêncio tomam conta. Onde o castelo de areia, reside submerso em mágoas e incompreensões eternas. O vazio, o nada, a dificuldade de se olhar para trás por medo de sentir a devastação que tomou conta dos sonhos que se despedaçaram. a imobilidade que impede que se tome alguma ação para sair deste estado de transe.

E há quem diga que o que importa é o amor, mas as experiências nos mostram que o que realmente importa nunca está dado, terá que ser descoberto, decifrado. Nem sempre será conhecido, às vezes adormecerá em nossas vagas lembranças futuras e irá nos marcar de uma forma tão violenta, que teremos que nos reinventar para poder suportar ...

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia na Universidade Federal do ABC. Integrante do grupo de pesquisa ABC das Diversidades. Bolsista de iniciação científica do CNPQ, no qual desenvolve pesquisa com o seguinte tema: Formação e atuação de entidades de representação LGBT no grande ABC: Impactos na formulação de políticas públicas.
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Documentos sonoros, Skinheads e a memória do 9 de Julho



Este ano, São Paulo comemorou os oitenta anos da Revolução Constitucionalista. Apesar de uma parte considerável dos paulistas não ter clareza do motivo da efeméride, diversos segmentos da sociedade, como Escoteiros, Maçonaria, estudantes de escolas públicas, associação de colecionadores de militaria, efetivos das polícias Civil e Militar, etc... e, claro, os poucos veteranos ainda vivos, promovem todo dia 9 de julho, em parceria com os governos estadual e municipal, o desfile cívico militar em frente ao "Monumento Obelisco Mausoléu ao Soldado Constitucionalista de 1932", no parque do Ibirapuera. O objetivo principal é exaltar a memória daqueles que lutaram contra o autoritarismo do governo Vargas.
 Além destes grupos, que de uma forma ou outra tem alguma relação direta com o episódio, entre o público é possível perceber um grupo de jovens de cabeças raspadas, calçando coturnos, enrolados em bandeiras do estado de São Paulo ou do Brasil, distribuindo panfletos ou portando faixas: são Skinheads.
Acompanho o evento há alguns anos, por conta do meu ofício de pesquisador do tema juventude e extremismo político e percebo nos trabalhos de campo que o público, de um modo geral, repudia a presença destes jovens, pois eles estariam maculando a memória dos veteranos com sua postura considerada violenta e racista e causando constrangimento ao público presente. No evento do ano passado, por exemplo, me lembro de uma situação na qual um jovem e sua mãe caminhavam tranquilamente até avistar um grupo de Skins. O jovem pergunta assustado a sua mãe: “Olha lá, mãe! Não são aqueles que batem em todo mundo?”. A mãe, instintivamente, acelerou o passo.  
Intrigado pela condição de persona non grata conferida a eles, mas, mesmo assim, por continuarem ali, procuro sempre conversar com estes jovens e entender a motivação de sua presença. Em primeiro lugar, eles procuram deixar claro que não são Skins nazistas e racistas. Estes seriam o Skins racialistas, defensores da supremacia da raça branca e de secessão de São Paulo. Eles afirmam ser nacionalistas, ou seja, antirracistas e defensores da unidade nacional.

Skinhead Nacionalista no desfile em comemoração ao 
aniversário da Revolução Constitucionalista de 1932. Crédito: Alexandre de Almeida.

Ao questioná-los sobre o que lhes atrai nestas comemorações, a resposta é a identificação com os jovens que há oitenta anos pegaram em armas para defender uma causa. Em outras palavras, é a identificação com ímpeto juvenil de transformação radical da sociedade, mesmo que implique no autossacrifício. É o milenar mito de Davi contra Golias mais uma vez evocado.
Ao mesmo tempo, dizem eles, comemoram a efeméride com a profunda nostalgia de uma época na qual, segundo creem, os paulistas não se acovardavam diante da tirania, algo que não ocorre nos dias atuais.
Chama-me a atenção nestas conversas é que muitos verbalizam, sem meias palavras, seu repúdio pela Democracia e seus mecanismos, como a Constituição elaborada por representantes do povo, justamente o documento pelo qual os jovens de 1932 se propuseram lutar.
 O fascínio destes jovens pela Revolução de 1932, não se resume a manifestações públicas. Existe uma intensa produção de documentos com referências a este episódio, em especial documentos sonoros, na forma de canções de homenagem.
Destaco aqui a canção “1932”, composta pela banda Skinhead Sãocarlense, Tumulto 64. Ela faz parte do CD lançado pela banda, em 2004, intitulado “Calçando suas botas”.
Além de cumprir a sua função mais evidente, que é homenagear o povo de São Paulo da década de 1930, representado pela figura do ex-combatente, por ser o único Estado a efetivamente se rebelar contra o governo Federal, considerado tirânico, ela também serve como um “lugar da memória”, na acepção do historiador francês Pierre Nora que seria, em linhas gerais, um instrumento de resgate da identidade de uma coletividade.
             
Na letra desta canção, os paulistas contemporâneos são herdeiros de um passado glorioso e isto não deve ser apenas comemorado, como diz o refrão. É possível perceber nos versos da canção a mensagem de que o passado é  uma força motriz para ações no tempo presente. Palavras chave como “glória” e “bravura” e a expressão “nunca esquecer”, são comuns neste tipo de canção, pois estimula o ouvinte a assumir o papel de protagonista de seu próprio futuro, mesmo que isto signifique utilizar a força bruta para defender seus ideais.
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Garota de Ipanema





Faz uma semana que conheci a Marilyn. E parece que faz sete noites.

Eu caminhando na praia. Solão. A areia abarrotada de famílias e outras tribos menos cotadas. Os franguinhos da padaria do Seu Joaquim  livres, leves, soltinhos  vendo o mar pela primeira e última vez. A farofa amilanesando os corpos fora de forma. O salva-vidas afogando um pivete sem modos. O vendedor de camarão enxugando o suor com guardanapos.

E a minha musa pulando ondinhas.

Não hesitei. Me aproximei dela com a pressa de uma próclise. Sussurrei dois ou três versinhos em seus ouvidos  que coisa mais linda, cheia de graça, seu balançado é mais que um poema do Vinícius, a beleza existe. Nem precisei de rimas e estrofes. Aquele peixão caiu na minha rede só por causa do amor. Era meu dia de sorte.

Arrastei-a pro meu cafofo e descobri que aquela garota não era apenas mais uma: cozinhava um bacalhau como ninguém, passava meus blusões como ninguém, lavava minhas cuecas e gravatas como ninguém, faxinava o quarto e sala como ninguém, tocava flauta transversa como ninguém, contava piadas como ninguém, amava como ninguém.

Me amava como ninguém.

Mas Marilyn tinha um senão: toda noite desaparecia. Sumia no ar. Se escafedia − também com a pressa de uma próclise. Ontem resolvi segui-la. Até um nightclub de nome nada, nada duvidoso: o Rainhas do Deserto. Onde ela serve mesas e prepara drinks da moda travestida de João. Isso mesmo. Jo-ão. Jota-ó-a-ó-til.

E o pior: estrela um musical que mistura pole dance, striptease, figurinos pavorosos, iluminação tosca, canções bregas, roteiro e direção pedestres chamado Quanto mais quente melhor. Um freakshow involuntário, uma obra-prima do mau gosto, uma inacreditável maçaroca − de fazer parecer Shakespeare qualquer teatrinho infantil de quinta.

Ninguém é perfeito.








Fábio Flora é autor de Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães Rosa (Quartet, 2008) e escreve no blog Pasmatório (http://pasmatorio.blogspot.com.br).
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Literatura, onde está? - Ainda Alberto Martins





“Aonde” anda a literatura? Talvez essa seja uma das perguntas que norteia a peça de Alberto Martins, proferida nada mais por outros três grandes nomes de nossa literatura: Álvares de Azevedo, Mário de Andrade e José Paulo Paes. Um fato é inegável: Não se sabe ou saberá onde ela está! Como já diria a Professora da USP, em seu livro Altas literaturas, a modernidade está em ruínas, e junto a ela, as artes estão se perdendo. Martins, com uma história leve na leitura, e densa no conteúdo, nos propõe essa visão, que nos leva a uma busca. Onde está a literatura?

O livro, que é introduzido com uma “Nota”, assim intitulada e assinada por A.M, já nos afirma se tratar de uma ficção, ainda que as personagens “reais” venham a se comportar de modo divergente à vida. Mesmo evidenciado que o cenário seja a cidade de São Paulo, podemos perceber que ela também é uma atuante na história, sendo utilizada não apenas como exemplo de urbanização e modernidade, como uma conseqüência desse processo industrial advindo dos séculos XIX e XX.

A história começa na Faculdade de Direito, curso esse que será indagado por Álvares a José Paes: “Como? Então é possível ser poeta sem ser bacharel em leis?”. E Paes, em sua inocência irônica, por mim considerada, responde que “Nesse ponto, o país progrediu”. Reitero tanto a inocência quanto a ironia, quando Zé Paulo comenta com Álvares que achava que a poesia era para ser séria. Em um discurso que corre e ocorre livremente, o poeta romântico afirma que a poesia era só fachada, causando a dúvida no contemporâneo. Sem dúvida, Álvares de Azevedo, segundo Zé Paulo citando Mário personagem, foi um gênio com seus defeitos... o primeiro deles foi ter deixado a poesia tão cedo, o que tornou um novo mito dentro da própria literatura.

Quando mencionamos que São Paulo é uma outra atuante, percebemos pelo próprio processo de construção do texto, que demonstra a evolução da cidade e as conseqüências dessa industrialização, seja nas ironias dos inúmeros mais de 30 bairros com nome de “Jardim”, ou nas colocações de Paes, que podem ser tomadas como a confirmação da conseqüência do próprio “modernismo” acelerado do início do século XX: “A mais nova invenção da cidade: congestionamento em tempo integral”.

Mas, e Mário de Andrade, que falamos pertencer a narrativa, por onde anda? Apesar de passear pela cidade com os outros dois poetas, só no final se pronuncia, no paradoxo de pesar e alegria de ter pertencido ao modernismo. Pode ser uma escolha pessoal, mas ficaria com as posições do jovem que muito viveu, ao mais velho, que se enclausurou: “O jogo sempre muda e quem está vivo... que se vire! Tristes os mortos, que não podem mudar as apostas”.

Para assinalar a pergunta levantada, acerca de “aonde” está a literatura, prefiro, novamente, voltar ao tom romântico de Álvares, porém sensato, e responder com outro questionamento: faz sentido procurá-la no passado? É melhor que e identifiquemos em suas funções e em nossos direitos, como já propõe Umberto Eco em Sobre literatura e Antonio Candido, Vários Escritos.





Renato Dering é escritor, mestrando em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), sendo graduado também em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Realizou estágio como roteirista na TV UFG e em seu Trabalho de Conclusão de Curso, desenvolveu pesquisa acerca da contística brasileira e roteirização fílmica. Atualmente também pesquisa a Literatura e Cultura de massa.



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Identidade

          


Identidade - Jorge Aragão

Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história
(2x)
Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade
Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história (...)
[1]


Sentado no sofá aguardava o próximo CD... Jorge Aragão. Quando a música “Identidade”, desconhecida por mim até aquele instante, apresentou-se em melodia e letra; imagens (a memória é constituída de imagens, rememorar é formar imagens mentais) surgiram como lembrança do último item do meu trabalho de mestrado: “A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes”.
Três Rios (inicialmente Vila de Entre-Rios, cidade do médio Vale do Paraíba do Sul no Estado do Rio de Janeiro) tem sua formação urbana vinculada aos espaços físicos relacionados às fazendas de café pertencentes à Mariana Claudina Pereira de Carvalho, a Condessa do Rio Novo e seus pais os Barões de Entre Rios, Antônio Barroso Pereira Junior e Claudia Venâncio de Jesus. Escravos, personagens com pouca acuidade para a história vista de cima, mas importantes no contexto historiográfico da Nova História Cultural, foram libertos por desejo expresso no testamento da Condessa que deliberou a utilização das terras da Fazenda de Cantagalo para o assentamento destes.
A pesquisa permitiu-me vislumbrar, em parte, a inserção da população pobre e negra no espaço urbano (inicio da formação em 1861) de relação da sociedade nascente da Vila de Entre-Rios, utilizando para tanto das fotografias do acervo acumulado na construção da dissertação, percebendo presenças e ausências destes indivíduos em determinados espaços e grupos de relação; um ...
“Decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.” [2]

 É possível admitir que a coletividade entrerriense, mesmo sendo de uma cidade em constituição no interior do Estado do Rio de Janeiro, refletia a configuração da sociedade brasileira a época: nova organização social burguesa republicana (comercial, industrial e financeira), capitalista e urbana e são os representantes desta elite que produziram as imagens analisadas: o olhar fotográfico reflete em sua maior parte “as cenas” do cotidiano deste grupo.
O período que se seguiu à libertação dos escravos – Mariana Claudina Pereira de Carvalho faleceu em Londres em 5 de junho de 1883 aos 87 anos -, e da Lei Áurea, encontra uma vila em processo de desenvolvimento urbano social, com a presença importante de trabalhadores funcionários da Estrada União e Indústria e da Estrada de Ferro D. Pedro II.
A principal expectativa por parte dos emancipados tornados libertos encontrava-se na possibilidade de possuir terras em lotes delimitados, plantar e viver das rendas de seu trabalho e o término da escravidão apresentou-se como uma das etapas de um processo que visava obter o tratamento e direitos igualitários de cidadão. Segundo Isabela Innocêncio [3] um total de 244 escravos conquistaram a liberdade, sendo 86 mulheres, 116 homens e 42 ingênuos.
Deste tempo até meados de 1935, quando do encerramento das atividades da Colônia Nossa Senhora da Piedade, Entre-Rios encontrava-se num crescente movimento político visando à emancipação da cidade de Paraíba do Sul/RJ, principalmente por superá-la economicamente.
Nesta região do Vale do Paraíba a minoria de negros (é possível considerar a chegada neste percurso de tempo de negros oriundos de outras fazendas e regiões) se confronta então com os interesses daqueles que aportaram nestas terras e seus descendentes, atraídos pelas possibilidades de trabalho e renda junto às estações, ao comércio e a indústria, oriundos do interior de Minas Gerais, bem como, imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, sírios e libaneses, e uma pequena parcela de alemães que vieram para a construção da cidade de Petrópolis e Juiz de Fora e ingleses que nesta terra chegaram junto com os trilhos, os vagões e as locomotivas.
As imagens fotográficas refletem as condições de inserção dos negros libertos não só na sociedade de Entre-Rios, mas como em todo país: “... somos herança da memória, temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história”.

   
Fotografia 1: Descendentes dos escravos libertos pela Condessa do Rio Novo poucos anos após o finalizar das atividades da Colônia Agrícola de Nossa Senhora da Piedade, assistidos pelo Grupo Espírita Fé e Esperança na cidade Três Rios/RJ, nesta tomada externa da sede da instituição realizada na segunda metade da década de 30 do século XX. Fotografia do acervo do Sr. Altair.

Uma análise da população da cidade de Três Rios na atualidade através dos espaços urbanos organizados em bairros residências populares e o centro dividindo-se principalmente entre os prédios mais luxuosos e casas residenciais e lojas comerciais – incluindo-se clubes, escolas particulares e universidades; consente constatar que os indivíduos negros e mulatos em sua grande maioria estão vivendo nos bairros em residências mais simples e trabalhando em atividades profissionais que exigem mais esforço físico e um nível escolar menor, demonstrando que vários descendentes de ex-cativos, identificados por uma escravidão velada, convivem com barreiras que impedem o acesso a um bom emprego, a uma habitação adequada, reafirmando que a senzala só mudou de lugar. Situação, provavelmente muito diferente, daquela desejada pela Condessa do Rio Novo.
  
  
Fotografia 2: Vista externa onde se observa os trabalhadores do Armazém de Café em Entre-Rios, que estão amontoando o café para a queima durante o governo do presidente Getúlio Vargas, todos os indivíduos, mesmo os que orientam a tarefa, são negros. Fotografias do início da década de 30 do acervo digitalizado de André Mattos, sem definição do seu autor.

 Fotografia 3: Vista externa da Rua Gomes Porto observando-se trabalhador informal negro (catador de papel) ainda presente na cidade de Três Rios. Fotografia de outubro de 2011 do acervo digitalizado de André Mattos.


 




André Luiz Reis Mattos é Mestrando em História Cultural pela Universidade Severino Sombra – Vassouras/RJ

A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.


[1] IDENTIDADE, composição de Jorge Aragão, letra disponível no site:< http://www.vagalume.com.br/jorge-aragao/identidade.html> Acesso em 5 de mar. De 2012.
[2] Chartier, Roger. O mundo como representação. Disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/ea/v5n11/v5n11a10.pdf. Acesso em 16 de agost. de 2011.
[3] INOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra. Rio de Janeiro/RJ. Folha Carioca Editora Ltda. 2005, p 55.
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