domingo, 8 de julho de 2012

Identidade

          


Identidade - Jorge Aragão

Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história
(2x)
Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
Nem resgata nossa identidade
Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história (...)
[1]


Sentado no sofá aguardava o próximo CD... Jorge Aragão. Quando a música “Identidade”, desconhecida por mim até aquele instante, apresentou-se em melodia e letra; imagens (a memória é constituída de imagens, rememorar é formar imagens mentais) surgiram como lembrança do último item do meu trabalho de mestrado: “A nascente sociedade urbana da Vila de Entre-Rios e o lugar dos escravos libertos e seus descendentes”.
Três Rios (inicialmente Vila de Entre-Rios, cidade do médio Vale do Paraíba do Sul no Estado do Rio de Janeiro) tem sua formação urbana vinculada aos espaços físicos relacionados às fazendas de café pertencentes à Mariana Claudina Pereira de Carvalho, a Condessa do Rio Novo e seus pais os Barões de Entre Rios, Antônio Barroso Pereira Junior e Claudia Venâncio de Jesus. Escravos, personagens com pouca acuidade para a história vista de cima, mas importantes no contexto historiográfico da Nova História Cultural, foram libertos por desejo expresso no testamento da Condessa que deliberou a utilização das terras da Fazenda de Cantagalo para o assentamento destes.
A pesquisa permitiu-me vislumbrar, em parte, a inserção da população pobre e negra no espaço urbano (inicio da formação em 1861) de relação da sociedade nascente da Vila de Entre-Rios, utilizando para tanto das fotografias do acervo acumulado na construção da dissertação, percebendo presenças e ausências destes indivíduos em determinados espaços e grupos de relação; um ...
“Decifrar de outro modo as sociedades, penetrando na meadas das relações e das tensões que as constituem a partir de um ponto de entrada (um acontecimento, importante ou obscuro, um relato de vida, uma rede de práticas específicas) e considerando não haver prática ou estrutura que não seja produzida pelas representações, contraditórias e em confronto, pelas quais os indivíduos e os grupos dão sentido ao mundo que é o deles.” [2]

 É possível admitir que a coletividade entrerriense, mesmo sendo de uma cidade em constituição no interior do Estado do Rio de Janeiro, refletia a configuração da sociedade brasileira a época: nova organização social burguesa republicana (comercial, industrial e financeira), capitalista e urbana e são os representantes desta elite que produziram as imagens analisadas: o olhar fotográfico reflete em sua maior parte “as cenas” do cotidiano deste grupo.
O período que se seguiu à libertação dos escravos – Mariana Claudina Pereira de Carvalho faleceu em Londres em 5 de junho de 1883 aos 87 anos -, e da Lei Áurea, encontra uma vila em processo de desenvolvimento urbano social, com a presença importante de trabalhadores funcionários da Estrada União e Indústria e da Estrada de Ferro D. Pedro II.
A principal expectativa por parte dos emancipados tornados libertos encontrava-se na possibilidade de possuir terras em lotes delimitados, plantar e viver das rendas de seu trabalho e o término da escravidão apresentou-se como uma das etapas de um processo que visava obter o tratamento e direitos igualitários de cidadão. Segundo Isabela Innocêncio [3] um total de 244 escravos conquistaram a liberdade, sendo 86 mulheres, 116 homens e 42 ingênuos.
Deste tempo até meados de 1935, quando do encerramento das atividades da Colônia Nossa Senhora da Piedade, Entre-Rios encontrava-se num crescente movimento político visando à emancipação da cidade de Paraíba do Sul/RJ, principalmente por superá-la economicamente.
Nesta região do Vale do Paraíba a minoria de negros (é possível considerar a chegada neste percurso de tempo de negros oriundos de outras fazendas e regiões) se confronta então com os interesses daqueles que aportaram nestas terras e seus descendentes, atraídos pelas possibilidades de trabalho e renda junto às estações, ao comércio e a indústria, oriundos do interior de Minas Gerais, bem como, imigrantes portugueses, espanhóis, italianos, sírios e libaneses, e uma pequena parcela de alemães que vieram para a construção da cidade de Petrópolis e Juiz de Fora e ingleses que nesta terra chegaram junto com os trilhos, os vagões e as locomotivas.
As imagens fotográficas refletem as condições de inserção dos negros libertos não só na sociedade de Entre-Rios, mas como em todo país: “... somos herança da memória, temos a cor da noite, filhos de todo açoite, fato real de nossa história”.

   
Fotografia 1: Descendentes dos escravos libertos pela Condessa do Rio Novo poucos anos após o finalizar das atividades da Colônia Agrícola de Nossa Senhora da Piedade, assistidos pelo Grupo Espírita Fé e Esperança na cidade Três Rios/RJ, nesta tomada externa da sede da instituição realizada na segunda metade da década de 30 do século XX. Fotografia do acervo do Sr. Altair.

Uma análise da população da cidade de Três Rios na atualidade através dos espaços urbanos organizados em bairros residências populares e o centro dividindo-se principalmente entre os prédios mais luxuosos e casas residenciais e lojas comerciais – incluindo-se clubes, escolas particulares e universidades; consente constatar que os indivíduos negros e mulatos em sua grande maioria estão vivendo nos bairros em residências mais simples e trabalhando em atividades profissionais que exigem mais esforço físico e um nível escolar menor, demonstrando que vários descendentes de ex-cativos, identificados por uma escravidão velada, convivem com barreiras que impedem o acesso a um bom emprego, a uma habitação adequada, reafirmando que a senzala só mudou de lugar. Situação, provavelmente muito diferente, daquela desejada pela Condessa do Rio Novo.
  
  
Fotografia 2: Vista externa onde se observa os trabalhadores do Armazém de Café em Entre-Rios, que estão amontoando o café para a queima durante o governo do presidente Getúlio Vargas, todos os indivíduos, mesmo os que orientam a tarefa, são negros. Fotografias do início da década de 30 do acervo digitalizado de André Mattos, sem definição do seu autor.

 Fotografia 3: Vista externa da Rua Gomes Porto observando-se trabalhador informal negro (catador de papel) ainda presente na cidade de Três Rios. Fotografia de outubro de 2011 do acervo digitalizado de André Mattos.


 




André Luiz Reis Mattos é Mestrando em História Cultural pela Universidade Severino Sombra – Vassouras/RJ

A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.


[1] IDENTIDADE, composição de Jorge Aragão, letra disponível no site:< http://www.vagalume.com.br/jorge-aragao/identidade.html> Acesso em 5 de mar. De 2012.
[2] Chartier, Roger. O mundo como representação. Disponível no site: http://www.scielo.br/pdf/ea/v5n11/v5n11a10.pdf. Acesso em 16 de agost. de 2011.
[3] INOCENCIO, Isabela Torres de Castro. Liberdade e acesso à terra. Rio de Janeiro/RJ. Folha Carioca Editora Ltda. 2005, p 55.

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