Sobre nosso humor




Coisa engraçada, dia desses peguei uma televisão emprestada com um amigo por que eu iria receber algumas visitas que não ficavam sem isso. Como as visitas não vinham (e não vieram até hoje), num certo dia, liguei o aparelho. Qual não foi meu susto assistir ao programa “Zorra total”. Fiquei pasmada, boquiaberta e pensei comigo: o que é isso? Estou exagerando? Talvez. Certo é que sem o aparelho há quase dois anos, acabei me desacostumando dele: deu nisso. Lógico que nesse tempo vi que muita coisa estranha (ou previsível) ainda acontecia nos “bastidores” televisivos. Tenho e-mails do Yahoo, site que sempre faz questão de me deixar a par dos “babados”. Além dos vários amigos do facebook, que além de não me deixarem esquecer que a sexta está próxima, ou que infelizmente já é segunda, ou que ainda o feriado não durou o suficiente, também me fazem saber de Carminhas e Ninas. Enfim! Fiquei pensando o que teria acontecido para chegarmos ao nível de um programa como o Zorra total ser exibido em rede nacional. Ora, não vou ser hipócrita para falar que nunca assisti programas idiotas na (da) TV. Alguém já disse que todo mundo precisa de um momento de alienação e eu, particularmente, adoro essa deixa. Gostava muito dos programas e desenhos infantis, como Caverna do Dragão (clássico!), Cavaleiros do Zodíaco, Cocoricó (qual marmanjo nunca cantou numa bateria ou guitarra invisível: “o Júlio na gaita e a bicharada no vocal, fazendo rock rural, cocoricó”?), Castelo Rá-tim-bum, Sítio do pica-pau amarelo, Os trapalhões... Fui seguidora assídua de algumas novelas, como Roque Santeiro, por exemplo. Mas algo mudou. Seria o humor ou o nosso humor? Corrijam-me, por favor, se eu estiver errada, mas acredito piamente que algo mudou. Eu me divertia tanto com Mussum e Zacarias, mas sequer consigo ouvir por um minuto aquele programa novo do Didi. E o esporte atual? Uma coisa é fazer um programa esportivo um pouco menos técnico, menos “duro”, outra coisa é achar que somos idiotas para assistir piadinhas idiotas, ideológicas e sem motivos esportivos (ou talvez sejamos mesmo idiotas). Nem vou entrar na questão de programas como Pânico na TV porque isso já é vergonhoso demais para mim.
Adelaide – personagem do Zorra Total

Falando sério, sempre me considerei uma pessoa otimista e não sou dessas que dizem “antigamente era melhor”, até por que meu antigamente é bem recente e é isso que me assusta. Gostava de fazer comparações do tipo: pelo menos hoje, nós mulher, podemos lutar pelos nossos direitos e não sermos queimadas em praça pública (pelo menos em alguns países). Podemos mandar a polícia, a religião, os políticos, e cia. Ltda. pra onde quisermos, pelo menos por palavras. Sim, doce ilusão essa tal liberdade. Mas estou sendo sincera, é o que eu pensava. Hoje, penso numa temível teoria: será que atingimos em algum momento um ápice na escala evolucionista e agora estamos em decadência? Será que a raça humana está próxima à sua extinção e seres mais evoluídos tomaram nosso espaço? Então, ao pensar assim, chego a uma conclusão: não.
Máscara da comédia grega. Por volta de 350 a.C

Somos uma raça muito estranha, mas sempre fomos. Somos capazes de produzir a nona sinfonia e o holocausto; sete ou oito peças para um ballet e as bombas nucleares; doze girassóis numa jarra e a chacina da Candelária; a Vênus de Milo e o genocídio ruandês; Hamlet e o apartheid, Dom Quixote e Chernobyl, Ladrões de bicicleta e o Holodomor, etc., etc., etc.. Sempre fomos assim. Mas será que precisamos continuar sendo? Precisamos continuar aceitando programas como Zorra total de braços abertos e nos obrigando a rir disso? Precisamos procurar a graça onde ela não está?
Sorriso de Sheldon Cooper

Faço uma confissão que muito me magoa: tenho consumido excessivamente cultura estadunidense, principalmente em se tratando de comédias. Gosto de assistir a The Big Bang Theory e Community, várias vezes. E o pior, não me canso. Rio infinitas vezes do sorriso medonho de Sheldon Cooper e das bizarrices do Señor Chang, mas só consigo sentir vergonha naquele quadro do metrô do já citado programa global. Julguem-me, apontem-me críticas nas comédias que eu citei. Mostrem-me nelas preconceitos escondidos (ou não), ideologias capitalistas, nazistas, fascista, o que for. Por favor, eu peço isso, pois tenho sido alienada nesse ponto. Existe o preconceituoso Pierce em Community: ninguém ri de suas piadas, riem dele, por ser preconceituoso. No Zorra total riem de tudo (que não tem graça) e riem de nós, pretos, brancos, homossexuais, bissexuais, transexuais, heterossexuais, mulheres feias, mulheres loiras, mulheres “gostosas”, mulheres banguelas, etc. Tudo se torna motivo de riso onde falta humor. E vejam que não estou falando de humor bom e humor ruim, que isso não existe. Bakhtin acreditava que o caráter crítico e autocrítico, um dos componentes principais do romance, gênero moderno por excelência, só poderia ter vindo do riso, do riso que familiariza objeto e ser para que este possa examiná-lo de perto, revirá-lo, desmembrá-lo. Onde ficou esse riso? Enfim, há tempos não vejo humor no Brasil e o fato de que não tinha televisão não é o motivo. Que me perdoem, de todo o coração, os que ainda o fazem, mas, o que tenho visto hoje, no humor brasileiro, aproxima-se mais do horror. Aquele horror sussurrado pelo coronel Kurtz. 


Ana Luíza Duarte de B. Drummond nasceu em Ferros, Minas Gerais, em 1988. Atualmente cursa Bacharelado em Estudos Literários e Licenciatura em Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou recentemente o conto “O pio da coã”, na antologia de contos fantásticos Fantasiando. Possui artigos publicados na área de Educação e Literatura. e-mail: analuizadrummond@yahoo.com.br





A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.

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Poema de Inquietação


Caros leitores,

Nesta sexta, a inspiração para escrever provém de uma reflexão sobre as ninfas. Tenho mergulhado em pensamentos mitológicos, em busca de condições para entender a beleza e a dor dos dias. As ninfas me representam o espetáculo da vida, a exaltação das possibilidades mais fortes e mais puras, mais verdadeiras e mais sonhadas do humano. Seria quase o mesmo que a exteriorização dos nossos anseios mais latentes e pulsantes. Pensá-las abre um caminho para ver algo além do passível de objetividade, além do concreto. Ninfas são a abstração da realidade, a recriação da vida com seus moldes de utopia, com seu vislumbramento de mudança. Se o homem é feito de sonhos, e deles dependem a entrega e as buscas, o poder da transformação está na experiência do imaginar mais alto que o palpável, no impulso para além do chão, o qual supera os limites, no alcance do infinito.

Adriano de Almeida.


 Poema de inquietação


Na noite calma,
fito seus olhos seguros...
Deixando-me assaltar,
invadir-me...



Permito seu sorriso cerrado,
sua face pálida...
Seus passos firmes...
Aceito seu suspiro inquieto.


Desconcerta-me sua voz penetrante,
como lâmina na pele.
Me fascina como um vício...
Perturbando meu equilíbrio.


Desejo seus traços perfeitos...
Excita-me seu brilho invasivo.
Ignorando meus conceitos...
Ultrapassando meus limites.


É amedrontador sua certeza,
insuportavelmente delicada...
Lábios e palavras,
monossilábicas...


Delírio ou verdade?
Loucura ou vontade?
A pureza das ninfas,
com a insanidade dos poetas...


Será sempre tal,
como um delírio...
Como um devaneio na noite,
repleta de insônia...




Adriano Almeida é pesquisador na área de cultura, imaginário e simbologia do espaço. Mineiro, tem se dedicado a escrever poemas, crônicas e contos. Seus escritos, de caráter introspectivo, retratam as incertezas, os conflitos, a melancolia e os encantos da existencialidade humana.



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Fragmentos sensíveis



Chega
Chega de surpresas desnecessárias e perguntas tolas, não tente fazer comparações e nem se assuste com as mudanças, a vida é muito mais do que suas narrativas bem comportadas tentam mostrar, bem menos interessante que as imagens produzidas pelos artíficios caricaturais. Chega de sessões de esterilização, do empastelamento intelectual, do clero do saber nos penetrar a alma e dirigir nossas emoções e ideias, é preciso viver, sentir, produzir significado. 

Olhe
Não me interessa as suas recomendações ancoradas no mofo de filosofias defuntas. Não tente me enquadrar nas caixas que tanto criticas e nas quais sepulta tantas mentes. Olhe ao redor, olhe para dentro, tente encarar diante do espelho o espantalho no qual você se tornou. Sim, é duro reconhecer nossa mediocridade, perceber nossa insignificância, ter que olhar para nossa alcova e desvelar o indesejável.

Quero
Eu quero Arte, Ciência, Filosofia, Fé e Liberdade ... Quero poder me entregar aos meus sonhos e utopias, minhas ilusões e heresias, ciente de que pude escolher o meu trágico fim. Quero pensar, amar, tocar, experimentar, criar, sem recomendações, regras e protocolos. Quero poder olhar nos rostos, falar com quem tem algo a dizer, e me tornar cega diante dos zumbis que rondam esta terra. 

Fique
Que fique com o sucesso da gentalha infeliz e frustrada que se inflama por títulos carimbados pelos cartórios dos ventos. Fique longe e não compartilhe comigo sua miséria existencial. Continue reproduzindo tudo o que te destrói, por medo de jogar tudo pelos ares e poder reencontrar a doce leveza do ser e a magia de uma vida que faça sentido. Fique calad@, não me conte seus palpites sobre as intenções alheias, é uma insanidade tentar desvendar as motivações humanas, mero fruto de um empreendimento que busca controlar e manipular o que há de mais íntimo nos seres humanos, uma subjetividade indecifrável. 

Pare
Pare de perder tempo, não sou convencível, me apego às minhas crenças como @ náufrago à rocha, nem o tempo nem o mundo conseguem me desencaminhar, sou resistente, persistente e intransigente. Não seja bob@, se parece que cedi, é por que apenas dei um tempo para colocar um ponto final. Pare de tentar olhar para o presente e prever o meu destino final, pobre de quem faz das abstratas e alienadas categorias sociológicas a lente para enxergar o mundo. Não sou uma peça nesta história moribundo, um artefato movido pela economia, um produto dessas relações de poder. Sou apenas eu, e só a partir de mim pode me ler, interpretar, interagir.

Vou
Vou fundar minhas epistemologias controversas, me guiar pelas éticas que emanam do meu ser e fazer políticas baseadas nos meus princípios e valores. Vou resgatar o que sobrou de mim, os resquícios de tempos pulsantes, vibrantes e alegres. Desfazer as amarras das falsas promessas de liberdade e dos enganos disfarçados de fino saber. Levantar da cova na qual fui enterrada pelas leituras inebriantes e fúteis. Me reabrir para o mundo, como aquela criança ingênua que encontra graça no canto dos pássaros e recolhe as pétalas das rosas que caem no jardim. 

Tatyane Estrela é graduanda no Bacharelado em Ciências e Humanidades e no Bacharelado e Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do ABC. Participa do DEFILOTRANS - Grupo de Debates Filosóficos Transdisciplinares Para Além da Academia.


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AMOR INCONDIONAL




Estava sonhando com um lindo jardim cheio de borboletas coloridas quando acordei com o despertador insistente, anunciando a hora de levantar. Rapidamente lembrei que ela ainda dormia e decidi, como em todas as manhãs, cheirar seu lindo pescoço, para despertá-la suavemente nesse novo dia. Ela se virou murmurando algo ininteligível. Então, passei para a segunda tática, que sempre funciona: mirei bem aqueles lábios carnudos e o narizinho empinado e lhe dei uma enorme lambida, bem molhada!... Abruptamente, ela se sentou na cama gritando, cheia de energia para o novo dia.
- Rex, eu vou te matar!... Quantas vezes pedi para não me lamber?
Ah, eu adoro quando ela acorda dizendo o meu nome! Comecei a puxar sua camisola, abanando a cauda freneticamente, para que ela abrisse a porta e eu corresse para o jardim esvaziar minha bexiga. Volto sempre correndo para estar ao seu lado por alguns minutos, antes dela partir para o longo dia de trabalho.
Depois do banho e de escovar os dentes, ela sobe na balança todos os dias. Nesse momento eu fico tenso, levanto as orelhas e aguardo sua reação, que, por vezes, é um grito de dor, e, em outras, um monte de palavras horríveis. Às segundas-feiras, normalmente, ela bate a cabeça na parede, repetindo algo do tipo: “nunca mais comerei lasanha na vida”. Ah, se não comesse tudo o que já prometeu, ela viveria só de filé de frango e eu seria um cão muito mais feliz e esbelto.
No quarto, em frente ao espelho, ela sempre começa a mesma brincadeira. Nunca entendi muito bem o porquê, se está sempre atrasada. Parece que, sem esse jogo, ela não pode sair de casa: tira uma roupa do armário, veste, dá uma volta em frente ao espelho e vem a sentença: “muito gorda”, “aparece a celulite”, “não sobressaem meus olhos azuis”, “quanta flacidez”, “uma ruga nova”, “cabelos brancos” - e tantos outros comentários que eu não entendo. Depois de uns quarenta minutos, ela encontra algo que a faz pular de felicidade; então, aquela roupa é a escolhida do dia, enquanto ela cantarola: “pareço uns dois quilos mais magra” ou ainda “parece que rejuvenesci cinco anos”.


Eu, um mero cachorro, jamais entenderei a raça humana, pois ela fica linda de qualquer jeito... Quem vai olhar suas dobrinhas, quando ela abre aquele sorriso encantador? Quem vai reparar naquelas jóias brilhantes, quando seus olhos verdes brilham mais que esmeraldas? Nós, os cachorros, somos seres inferiores e muito simplistas. Para nós não importa se a coleira tem diamantes ou é de couro velho. Se encontrarmos outro cachorro que não queira brigar, pronto, seremos amigos instantaneamente. Não sabemos classificar nossos amigos pelo que usam. Tampouco nos importa se somos de raças ou cores diferentes. A nós só importa sermos alegres e espontâneos. Mas eu sei, sou apenas um cachorro, como entenderia a complexidade da raça humana, ainda mais de suas fêmeas?...
Outro dia, minha dona dizia ao telefone que sentia solidão, sentia falta de uma família, um marido e filhos, e que eu só lhe trazia problemas. Eu não fiquei magoado com ela, porque logo lembrei que os humanos nem sempre falam o que realmente sentem. Muitas vezes, eles preferem culpar algo ou alguém pela sua dor, porque a dor é grande demais para ser expressa em palavras. E se não me amasse, porque teria ela me abraçado outro dia e estalado um beijo na minha bochecha caída? Dizem que os elefantes não esquecem, mas nós cachorros também não. Como temos um cérebro pequeno e só podemos nos lembrar de poucas experiências, preferimos nos lembrar só das boas. Somos mesmo seres inferiores e simplistas.
De repente, percebo que ela já passou pelo ritual da transformação, quando coloca muitas cores em seu rosto e, já parecendo outra pessoa, sobrepõe inúmeros objetos brilhantes nos dedos, braços, pescoço e orelhas, que desviam a atenção da sua alma. Nunca entendi muito bem o porquê dela trabalhar disfarçada. Acho que ninguém pode descobrir quem ela realmente é. Uma pena, porque eu acho que ela é muito mais agradável quando está sem a armadura e não precisa fingir ser outra pessoa.
Quando está assim, ela também muda o comportamento e até a voz fica mais austera, o sorriso parece mecânico e a gargalhada parece programada.Eu acho que ela trabalha no Exército... Talvez seja por isso que ela sente solidão! Ela precisa afastar as pessoas e esconder quem ela realmente é. Já sei, ela é um agente secreto, só pode ser isso. Nada mais justificaria esse comportamento, pois até mesmo os cachorros sabem que ninguém gosta de alguém que tenta ser quem não é.
Eu a acompanho até a porta todos os dias e fico observando sua imagem desaparecer. Ela sempre esquece de se despedir de mim, já que está sempre correndo. Eu dou umas boas latidas para ela saber que vou esperá-la ansiosamente. Quando ela se vai, o tempo parece não passar. Meu dia não é importante como o dela. Eu passeio pelo jardim desengonçadamente, corro atrás do gato do vizinho, tomo sol, rôo mais um pedaço do sofá, brinco com um galho que encontro por aí e caço borboletas que nunca pego. Sou um cachorro muito feliz...
Tenho uma dona maravilhosa que me deixa água e comida, e com ela não preciso fingir ser quem não sou. Ela sabe que eu tenho bafo canino (da lasanha, obviamente) e muitas vezes sou atacado por pulgas oportunistas. Além do que, estou ficando calvo com a idade e solto pelos pela casa o tempo todo. Mesmo assim, ela me dá banho, remédio e osso para roer. Para nós, cachorros, o amor é tudo, e não precisamos de outras sofisticadas demonstrações de carinho. Somos mesmo uma raça simples e pouco evoluída.
Quando chega a noite e eu escuto seu carro estacionando, meu coração começa a palpitar como uma revoada de maritacas e eu fico louco de felicidade. Corro para recebê-la. Sempre esqueço que ela chega cansada, diz para eu sair e fecha a porta do quarto no meu focinho! Mas eu não fico magoado com ela, sei que é muito desgastante passar o dia tentando ser outra pessoa, se preocupando com o disfarce, escondendo seus sentimentos e encenando ser uma pessoa perfeita. Eu deito no chão gelado e aguardo pacientemente ao lado da porta.
Sei que depois do banho, quando tirar aquele disfarce, ela se sentará no sofá usando uma camisola larga e pantufas velhas. Tranquila, ela finalmente permitirá que eu me aproxime. Então, vou-me sentar aos seus pés, feliz por sentir seu cheiro gostoso, seu calor e ver a beleza daquela pessoa humana, tão complexa, tão forte e tão frágil ao mesmo tempo.
E quando, finalmente, ela acaricia minhas costas com suas mãos delicadas e unhas por fazer, eu ronrono como um gatinho. Então, ela sabe que eu a amo mais que tudo... Exatamente como ela é.
 Simone Pedersen é escritora. Tem livros publicados para crianças e adultos.

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Um dia de aniversário



           Hoje eu tomo a liberdade de publicar um conto meu. Um conto cujo título tem tudo a ver com o dia de hoje. Sem mais, deixo que o leitor se deleite com o texto.


Ele acordou. Não era um dia comum, como qualquer outro. Era o seu aniversário. - Grande coisa! - Como de rotina, despertou, abriu o blackout de seu quarto, abriu a janela. Respirou um pouco daquele dia. - Que dia! -. Foi ao banheiro. Escovou os dentes, vestiu roupas, tomou banho, fez a barba, penteou o cabelo. Nada foi nessa ordem. Mas fez tudo o que devia fazer. Ligou o computador. Não nessa ordem. Abriu seu email, suas redes sociais - facebook e twitter - e fechou. 15 minutos.

Estava feliz. Nenhuma razão aparente. - Ah, era meu aniversário! -. Mas essa não era a razão de sua felicidade. Tinha outra, mas não queria revelar logo pela manhã. Comeria o pão de ontem, se não estivesse cheio de formigas. Preferiu o achocolatado - Toddynho -. Saiu aquela manhã de casa, como qualquer outra manhã. 10 minutos.

08 minutos. Chegou na escola. Sempre adiantado. Não eram 7 ainda. Mas já haviam muito mais que 7 na sala dos professores. Vieram dar os parabéns. Não que todos lembrassem da data. O mural da escola acusava os aniversariantes do mês, com aqueles balões coloridos, impressos diretamente do clipart. Afinal, era onde a secretária da escola sabia trabalhar bem. Word. - Mentira! - Ela era melhor em adicionar os amigos que nunca conheceu em suas redes sociais - Orkut, ainda não sabia mexer no Facebook. Entrou no próprio Orkut apenas quando não era mais por convites e nem em inglês -. Não ganhou nenhum presente especial, até então, não ganhara nenhum. 12 minutos.

Chegou para dar sua aula. - Surpresa! - Era um amontoado de adolescentes, ou jovens, que fizeram uma festinha. Bolo de chocolate, Coca-cola, salgadinhos... Seria uma recepção calorosa, se a maioria desses alunos não quisessem apenas não ter aula nesse dia. Deu certo. As vezes é bom sair da rotina, usar o que a vida lhe oferece a seu favor. 54 minutos.

Os alunos, porém, não escaparam do segundo horário. Ele não tinha o terceiro. Depois haveria reunião. Chatíssima. Foi cancelada. 3 horas.

Almoçou em um restaurante muito caro. Resolveu gastar aquele dia. Gastou mesmo. Almoço e compras no shopping. Trocou de celular, comprou um relógio, uma carteira, alguns adesivos- pra quê? - roupas... só não usou todo o limite de seu cartão, pois era ilimitado. 4 horas.

No caminho de casa, os familiares ligaram. Iriam fazer uma festinha para ele - uma reunião. Cada um iria levar algo para comer e beber. Casa cheia, cerca de 12 pessoas. Agora sim ganhou presentes. Seus pais te deram um novo liquidificador, ele precisada - e como eu precisava. Ganhou de seu irmão um tablet (único item que não comprou, pois já era presente anunciado). O presente mais surpreendente foi de um primo. Ele deu um livro de auto-ajuda. Afinal, para professor de literatura se dá livros de presente. - Livros?! - Livros! - Livros... O título não lembro, era alguma coisa referente a mito, mitologia, ensinamento chinês, tailandês e o monge... algo do tipo. Festa ao fim. Convidados - que não chamei - indo embora. 3 horas.

Ainda restavam algumas horas do dia para limpar toda a bagunça. Começou. Jogou o liquidificador velho fora, e também a caixa do novo. Odiava guardar caixas e outros badulaques. Odiava quando diziam "Guarde, vai que um dia precisa?" - Se precisar eu compro! O que não vou é encher minha casa de coisas que não preciso! -. Jogou lixo fora, limpou, guardou, lavou... não nessa ordem. Mas fez tudo o que deveria fazer. O que não sabia o que fazer era com o livro que ganhou...

Iria guardar junto a outros, Guimarães, Balzac, Dante, Flaubert, Machado... mas um auto-ajuda não merecia estar ao lado dos grandes, ele sempre retrógrada dizia. Não sabia mesmo o que fazer com o livro. Sem opção, resolveu ler. Virou a noite lendo. leu o livro inteiro em uma noite. Após o fil da leitura jogou o livro longe e foi dormir. Caía de sono. Acordou horas depois. Estava pronto no outro dia para dar aula. Seguiria a filosofia chinesa, japonesa, holandesa e do monge... Parecia boa.

Não abriu o blackout, sequer a janela. Estava escuro. Sem perceber, tropeça no livro que havia jogado no chão. Cai. Bate a cabeça no criado mudo. Ambos nada falam. Naquele dia não foi dar aula, não seguiria a filosofia nova que resolveu adorar e nunca saberíamos o motivo da felicidade do dia anterior. O telefone tocava sem parar aquela manhã. A escola teve que substituí-lo naquele dia, e no dia seguinte e no outro. Os mais bem humorados diziam que ele saiu da vida pra entrar na literatura, em um clichê, talvez uma verdade. Ninguém saberia dizer.



Renato Dering é escritor, mestre em Letras (Estudos Literários) pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), sendo graduado também em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG). Atua como Professor em Literatura pela Universidade Federal de Goiás - Campus Jataí. Desenvolve pesquisas na área de Literatura e Cultura, Contística, Literatura Brasileira Contemporânea e Cinema.




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Entre o sentimento e a necessidade: uma breve análise dos protagonistas do romance Senhora de José de Alencar

       



A literatura romântica de José de Alencar é vasta quando se refere aos perfis de mulher. Em Senhora, o autor tematiza na visão dos mais críticos, a oscilação entre o sentimento e a necessidade material como condicionantes para viver um amor. Em outras palavras, a expressão corriqueira que fazemos uso, “subir na vida”, pode explicar o antagonismo vivido pelos personagens protagonistas do romance. Típico de nossa sociabilidade capitalista, a expressão “subir na vida” denota a manifestação do ter em detrimento do ser. Nessa equação os contrários são contraditórios.

Caracterizado como um romance realista por fazer alusão de uma história que se materializa na vida cotidiana de muitos brasileiros, especificamente da época, a obra de Alencar tem como eixo central a discussão: amor versus condições materiais. Alencar procurar deliberar as desigualdades sociais, fingimento e ambição que permeia a sociedade carioca.

Aurélia e Fernando Seixas são os protagonistas do romance, ambos vivenciam o sentimento (amor) impedido pela ambição valorativa do mundo capitalista. No que se refere à Aurélia, o autor a descreve com traços idealistas, típico da visão ocidental que forjaram as mulheres. Todavia, num segundo momento, o estereótipo de mulher idealizada se desvanece, trazendo a tona um perfil demonizado de mulher. Fernando Seixa, par romântico de Aurélia é descrito por seu caráter dubio o que o faz casar-se por conveniência. Na figura de Seixa é demonstrada com ênfase a vontade de “subir na vida”, o que o caracteriza como ambicioso. E mais, essa relação contraditória ratifica a instituição casamento como um contrato social mercantil, legitimado pela sociedade capitalista. As relações sociais são caracterizadas como fetiche, ou seja, as relações entre as pessoas são tratadas como mercadorias, como “coisas”.

Contudo, ao fim do romance, o sentimento (o amor) é capaz de regenerar o caráter contraditório de Seixas e, Aurélia, a mulher traída, acaba por perdoa-lhe, manifestando assim uma espécie de comoção evidenciando o seu lado “anjo”. A menina, que transformasse em mulher, que era pobre e fica rica, por isso tornando-se uma Senhora. Intrínseco ao título da obra está estampado seu significado irônico, por sua vez. Aurélia tornou-se por ser uma Senhora somente quando ficado rica, enquanto pobre não possuía a nomenclatura nobre, educada, de Senhora.

O ápice da leitura/análise da obra em questão se faz quando entendido a ideologia reinante na mesma, somente assim compreendemos de fato, a mensagem passada pelo autor, o que parece ser uma simples historinha transformasse na representação dos “tipos humanos” da sociedade, e no caso em questão, da sociedade capitalista. Aos menos críticos, restam olhar a obra em sua aparência, não chegando ao ápice, essência.

Bibliografia:

ALENCAR, José de. Senhora. Editora Klick. São Paulo, 1997.





Thaysa Santos é graduanda do Curso de Serviço Social da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB. Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas Gênero, Raça e Etnia e também do Grupo de Pesquisa NATUSS, Natureza, Trabalho, Ser Social e Serviço Social da mesma universidade.



A Contemporartes agradece a publicação e avisa que seu espaço continua aberto para produções artísticas de seus leitores.
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